Longe vão os tempos em que pouco havia a fazer face ao impacto da doença neurológica aguda ou degenerativa. A espasticidade está entre as sequelas da doença neurológica e estas são normalmente abordadas de forma abrangente pela especialidade médica da Medicina Física e de Reabilitação. O objetivo final das intervenções em reabilitação passa pelo aumento da qualidade de vida das pessoas que vivem com esta enfermidade.
Algumas das doenças neurológicas que podem cursar com espasticidade são o Acidente Vascular Cerebral (AVC), a Paralisia Cerebral, a Lesão Medular, o Traumatismo Crânio Encefálico, a Esclerose Múltipla, entre outras. Em comum, estas entidades, têm o facto de se associarem a lesões do sistema nervoso central (cérebro ou medula espinhal). A espasticidade pode estar presente em até 50% das pessoas que sofrem AVC aos 6 meses pós evento, sendo mais frequente em casos de maior gravidade e afetação motora.
A espasticidade, de uma forma simplista, pode ser definida como uma forma de hipertonia muscular, especificamente de um aumento da resistência muscular à mobilização passiva de uma articulação. No entanto, não é só a resistência à mobilização passiva que pode ser prejudicial; frequentemente espasmos musculares, posturas desadequadas, fenómenos de co-contração muscular e clónus acompanham o quadro clínico e constituem fenómenos de hiperatividade muscular. Noutra perspetiva, mesmo a dor pode estar associada a estes quadros de hiperatividade muscular e deve ser tratada de forma dirigida, após o diagnóstico etiológico adequado.
O diagnóstico da espasticidade deve ser precoce e é importante o acompanhamento por profissionais experientes na área da reabilitação e a educação de doentes e familiares sobre a espasticidade e suas consequências. Um diagnóstico e abordagem precoce da espasticidade pode diminuir as suas complicações a médio-longo prazo como úlceras cutâneas, retrações musculo-tendinosas irredutíveis, dor crónica e perda de mobilidade e de autonomia nas atividades de vida diária.
Existem diversos fatores de agravamento da espasticidade que são de forma recorrente reportados pelos doentes; frio, infeções urinárias, traumatismos e úlceras cutâneas são alguns dos mais descritos. Medidas são habitualmente tomadas para prevenção e tratamento destes fenómenos, tendo em vista a diminuição da espasticidade.
A espasticidade em si, pode e deve ser tratada quando interfere com a função do doente, seja esta função ativa ou passiva. A abordagem multidisciplinar da espasticidade é altamente recomendada. O tratamento da espasticidade pode ser farmacológico ou não farmacológico.
No que respeita ao tratamento não farmacológico, o programa de reabilitação coordenado pelo médico especialista de Medicina Física e de Reabilitação com intervenção de diversos outros profissionais como fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e enfermeiros de reabilitação, envolve a utilização de diversos tipos de termoterapia, cinesiterapia, massoterapia e eletroterapia com intuito de reduzir o tónus muscular. Este tratamento tem sido classicamente usado com benefício e forma a base comum do tratamento da espasticidade. Muitos casos de espasticidade grave focal ou regional, no entanto, são difíceis de tratar de forma eficaz apenas com estes métodos.
O tratamento farmacológico pode ser oral ou administrado de forma minimamente invasiva. Os fármacos orais entre os quais o baclofeno e a tizanidina são alguns dos medicamentos relaxantes musculares que podem ajudar no controlo da espasticidade. Eles são particularmente benéficos em casos de espasticidade generalizada ou regional. Como desvantagem, este método está em alguns casos associado a efeitos secundários de sonolência e confusão mental que podem levar à suspensão do seu uso ou ao uso de doses menores e mais bem toleradas com potencial redução da eficácia do tratamento. Um tratamento usado mais raramente, utiliza baclofeno através da implantação de um dispositivo a nível subcutâneo, normalmente no abdómen, que está ligado por um cateter à zona intra-tecal junto à medula espinhal e que liberta o fármaco nesta zona diminuindo os efeitos secundários do uso oral. Apesar disso, este é um tratamento que tem benefício sobretudo em casos de espasticidade mais evidente de forma bilateral nos membros inferiores, e sendo assim, é utilizado numa percentagem pequena dos casos.
A toxina botulínica é o tratamento de eleição para a melhoria da espasticidade focal e regional, bem como para muitas das situações de hiperatividade muscular descritas anteriormente. Este é administrado localmente sob a forma de injeção intramuscular seletiva dos músculos espásticos que interferem com a função. A toxina botulínica é um fármaco usado há algumas décadas e é considerado seguro e eficaz quando planeado de forma individualizada e executado por profissionais experientes.
O tratamento da espasticidade com toxina botulínica deve ser feito por objetivos que sejam específicos, mensuráveis, realistas, relevantes e definidos no tempo. Podemos dividi-los em dois grandes grupos: os objetivos para melhorar a função ativa e os para melhorar a função passiva. A melhoria da função ativa no membro superior, pode permitir melhorar o posicionamento do braço no espaço, melhorar a destreza manual e o uso do movimento de pinça nos dedos; no membro inferior pode melhorar o equilíbrio, o padrão e velocidade de marcha. A melhoria da função passiva pode incluir a facilitação de cuidados de posicionamento, de higiene, de vestir e prevenção de feridas e úlceras, é possível inclusivamente diminuir os espasmos e outras formas de atividade muscular involuntária que podem ser causa de desconforto ou interferir com a função. O tratamento da dor associada à espasticidade com toxina botulínica tem sido também alvo de investigação intensa. Mecanismos de ação para a sua potencial eficácia como o bloqueio da transdução nociceptiva ou a redução da inflamação neurogénica foram propostos. O tratamento da dor associada à espasticidade, nomeadamente a abordagem da dor do ombro hemiplégico, conta com múltiplos estudos a demonstrar redução da intensidade da dor com a infiltração de músculos adutores e rotadores internos do ombro. Outro aspeto importante a focar é o do potencial benefício do uso de diferentes técnicas instrumentadas de orientação da infiltração. De um modo geral o uso de técnicas instrumentadas, como a ecografia ou electroestimulação, para orientação da infiltração dos músculos parece apresentar benefícios adicionais significativos nos resultados. Após tratamento com toxina botulínica é normalmente recomendada uma intensificação dos tratamentos complementares de alongamentos muscular para maximizar o seu efeito. A maioria dos doentes tratados com toxina botulínica recebem o tratamento mais de 6 meses após o evento da lesão neurológica inicial. No entanto, começa a existir evidência que este tratamento poderá ser efetuado de forma segura mais precocemente se identificado e considerado clinicamente relevante. Quando o tratamento é eficaz, habitualmente a duração da eficácia é temporária tornando necessária nova administração do fármaco dentro de alguns meses para manter os benefícios encontrados.
No futuro, o desenvolvimento de novos subtipos de toxina botulínica, alguns em fases avançadas de ensaios clínicos, com diferente duração de ação do fármaco. De relevar que outro tratamento, a radiofrequência, tem sido amplamente usada no tratamento de dor crónica, através da interrupção temporária ou definitiva da transmissão nervosa de nervos sensitivos; no tratamento da espasticidade existe também a perspetiva que a radiofrequência poderá ser utilizada para interromper a comunicação entre nervo motor e músculo e em consequência diminuir a atividade muscular indesejada. Estes poderão ser um avanço futuro para maximizar resultados e abrir novas portas de intervenção.
Em suma, a espasticidade é uma entidade que é importante conhecer e divulgar dado o seu potencial efeito negativo na funcionalidade dos doentes neurológicos. Não menos importante é que a sua identificação precoce e o seu tratamento corretamente orientado permitem contribuir para melhorar a qualidade de vida destas pessoas e dos seus cuidadores.
Um artigo do médico Hugo Couto Amorim, Especialista de Medicina Física e de Reabilitação no Centro Hospitalar de São João.
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