Na década de 60, quando os fármacos psicadélicos se começaram a revelar como uma nova e promissora via médica para o indivíduo com doença psiquiátrica, a forte deriva recreativa e as abordagens menos sérias rapidamente se sobrepuseram ao imenso potencial da descoberta. A vertente clínica foi posta em causa e sofreu as consequências das barreiras que se foram levantando para combater as utilizações mais levianas — veja-se, a este propósito, a popular série da Netflix How to Change Your Mind, um caso em que um produto da cultura popular pode servir como ponto de partida para aprofundar este debate mais sério.
Agora, no século XXI, numa altura em que a saúde mental se apresenta cada vez mais como uma urgência e em que mais de mil milhões de pessoas no mundo sofrem com algum transtorno mental (segundo o estudo da Organização Mundial de Saúde publicado em Junho de 2022), e em que, além disso, em Portugal se assiste a um desinvestimento na investigação dedicada a alguns destes problemas mais sérios (como é o caso da depressão resistente ou das dependências), não podemos permitir que a história se repita. Ou seja, não podemos admitir que abordagens recreativas, sem suporte científico e médico, ou um vazio de regulamentação adequada ameace aquela que é uma das mais inovadoras e esperançosas soluções a surgir nas últimas décadas, associada a um composto com efeitos psicadélicos: estou a falar da Psicoterapia Assistida por Ketamina.
Sei bem, por prática diária, os desafios que se apresentam hoje em dia não só aos profissionais da psiquiatria e à classe médica na área da doença mental como aos psicólogos e psicoterapeutas no acompanhamento de pessoas em elevado sofrimento psicológico. Com as soluções existentes e com todas as «armas» científicas que têm ao seu dispor, os psiquiatras portugueses têm feito um extraordinário trabalho perante desafios que eram impossíveis de imaginar, como as consequências a longo prazo provocadas por uma pandemia mundial e pelo inevitável impacto dos confinamentos a larga escala. Sabemos todos muito bem como é preciso persistir na procura de novas soluções, como é essencial que haja investimento em investigação e o quanto seria um erro voltar costas a uma nova perspectiva de intervenção terapêutica com tanto potencial como o já cientificamente demonstrado pela associação entre psicoterapia e ketamina.
Mas para que esta oportunidade única não se perca, é essencial cerrar fileiras em prol de um uso regulamentado, baseado em evidências científicas e práticas clínicas com evidências sólidas, e supervisionado por profissionais de saúde mental qualificados, também, nesta área específica de intervenções com recurso a substâncias que modificam estados de consciência. No que diz respeito à saúde mental e à defesa dos direitos e interesses das pessoas em sofrimento, há que convocar o rigor científico, mas sobretudo uma prática clínica caracterizada pelos mais elevados valores éticos de respeito e cuidado.
Só por via do rigor na prática clínica em saúde mental, do debate aberto, da informação, da investigação e da evidência científica, a Psicoterapia Assistida por Ketamina pode existir em prol do indivíduo com doença psiquiátrica e em prol dos profissionais de saúde mental também, e é só assim que nos interessa que ela exista em Portugal. Tal como nos parece essencial que a investigação científica se desenvolva a nível nacional, em concreto, com parcerias sólidas, como já foi estabelecido com o ISPA – Instituto Universitário e com o ISBE – Instituto de Saúde Baseado na Evidência, tomando como exemplo aquilo que, a nível internacional, a Awakn Life Sciences já faz com entidades como o Imperial College, a Universidade de Exeter ou o NHS (o serviço nacional de saúde britânico, que pode aqui server de referência).
Sabemos que não há milagres, não os podemos prometer. E sabemos que este tratamento, infelizmente, não é uma resposta para todas as pessoas e todos os problemas de saúde mental — é essencial haver uma avaliação médica inicial e que os pacientes tenham todos os dados para exercer um consentimento informado. Mas sabemos também que traz uma inovação incontornável, que há casos de sucesso, que pode haver acesso à inovação de forma segura, que é possível trabalharmos todos no desenvolvimento de critérios elevados de actuação, e que, nos casos em que outras soluções já falharam, para pacientes que enfrentam problemas complexos que resistiram a outras abordagens terapêuticas, a Psicoterapia Assistida por Ketamina, quando exercida com elevados padrões de prática clínica e com supervisão médica e psicológica ao longo de todo o processo, é uma nova esperança e é um valor acrescido para a sociedade.
Victor Amorim Rodrigues é médico psiquiatra, professor universitário e autor de várias publicações. Tem formação em Awakn Life Sciences em Psicoterapia Assistida por Ketamina e é o diretor clínico na The Clinic of Change.
Comentários