Num discurso pessoal, por vezes humorístico, a pediatra Joana Martins conta-nos como é o dia a dia de uma profissional de saúde em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2. Este é o oitavo episódio:

Quando mergulhámos em estado de emergência, rapidamente percebemos, que apesar de difícil, teríamos que limitar a presença de acompanhantes nos partos. É ingrato, certo. Há 9 meses ninguém sabia que o SARS-CoV-2 existia. Por isso é natural que para quem idealizou o parto com a companhia de alguém de relevo, esta realidade pós-apocalíptica seja particularmente difícil. Mas ainda assim tolerável.

Completamente diferente da questão do acompanhante do parto é a questão da separação da mãe do bebé, que está globalmente preconizada pela Direção-Geral de Saúde (DGS), para o caso de mães suspeitas ou confirmadas com infeção SARS-CoV-2. É certo que a DGS deixa um pouco ao critério das instituições a forma como deverão organizar os circuitos. Há espaço para a tomada de decisões caso a caso. Isto reflete em igual medida a nossa incerteza no que toca às recomendações, bem como a nossa humanidade.

Assim, gostaria de vos pôr a par das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) bem como do Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia (ACOG) e da Academia Americana de Pediatria (AAP). Qualquer uma destas organizações acautela que, desde que o hospital/maternidade disponha de espaço de segurança para permitir que a mãe e o bebé permaneçam juntos e essa for a vontade da família, não se deve separar a díade.

Na prática sabemos que isto é difícil: blocos de parto subdimensionados, quartos de alojamento não individuais, sem casas-de-banho exclusivas, dificultam a possibilidade de uma mãe suspeita ou infetada fique com o seu bebé. Por isso, é frequente em Portugal a prática de isolamento da mãe numa unidade de infecciologia e do bebé na neonatologia. Obviamente que o contexto destas mães e bebés tem vindo a alterar-se nas últimas semanas.

Em hospitais onde era impossível permanecerem juntos, admite-se agora a possibilidade de permanência do bebé junto da mãe, desde que separados por dois metros de distância. Se isto é exequível? Dificilmente. Sobretudo se colocarmos na equação a questão do aleitamento materno. Se a mãe desejar amamentar, quer a OMS, quer a ACOG, quer a AAP não contra-indicam esta opção.

A forma como a amamentação será feita é que terá que ser discutida com cada família: o bebé vai diretamente à mama, com a mãe a usar máscara ou é feita a extração do leite com recurso a uma bomba extratora, sendo depois administrado por biberão por outro familiar saudável?

E quantas vezes precisamente a mãe terá que lavar as mãos? Antes de tocar no bebé, antes de dar de mamar, depois de mamar, antes de mudar a fralda, depois de mudar a fralda, antes de por a chucha que caiu, depois de pôr a chucha, antes de embalar, antes de o por a arrotar... Põe arrotar onde, ao alto, apoiado no pescoço? Como é que isto tudo se faz mantendo o bebé em segurança?

Sei que é um paralelismo abusivo, mas lendo os relatos de quem viveu (e vive) esta realidade, lembro-me das reportagens feitas sobre as leprosarias portuguesas durante o Estado Novo. Como se desconhecia (e ainda se desconhece) a forma de contágio do bacilo de Hansen, mães e bebés eram imediatamente separados após o parto. As mães não podiam tocar nos bebés. Podiam vê-los através do vidro numa sala de espera que se assemelhava ao parlatório das prisões. Tudo isto era motivado pelo desconhecimento. Hoje em dia, apesar de todos os avanços científicos, face a um vírus que não existia há 5 meses atrás, é natural que tenhamos incertezas e que estejamos a pecar por excesso. O que os estudos parecem indicar é que não há transmissão transplacentária do vírus, não há isolamento viral no líquido amniótico nem no leite. Mas vejamos, as maminhas maternas estão mesmo junto à cara, o local de excreção natural do vírus... Tivéssemos nós as maminhas nos joelhos e seria muito mais fácil...

Por outro lado, estes dilemas parecem agudizar-se quando se planeia a alta da maternidade: a mãe vai para casa depois de cumprido o tempo de pós-parto imediato. E o bebé? Fica na neonatologia? Vai para a casa com a mãe? Vai viver noutro local? Casa de familiares? Como manter a questão da separação quando quer mãe, quer bebé, já não estão no hospital? Dir-me-ão que isto é uma não questão, porque eventualmente a mãe ficará curada da sua infeção pelo SARS-CoV-2. No entanto, o que temos vindo a testemunhar nos últimos tempos é que os infetados, mesmo depois de não apresentarem qualquer sintoma, continuam a excretar partículas de vírus (as zaragatoas permanecem positivas), cuja atividade desconhecemos. O que fazemos então? Mantemos a separação entre mãe e bebé até quando?

O que está protagonizado é esperar uma semana e obter 2 testes maternos negativos separados por 24 a 48h antes de retomar o contacto. Mas já percebemos que há quem permaneça com as zaragatoas positivas durante 3-4 semanas... E nesses casos?

É aqui que eu gostaria de tentar comentar exatamente o que se está a passar com estas mães e estes bebés. Os bebés são os mamíferos mais imaturos do grupo dos primatas. Fruto da sua enorme massa encefálica, todos os bebés humanos nascem comparativamente antes do tempo. Estão sensivelmente ao mesmo nível dos mamíferos marsupiais. Ninguém pensaria tirar um bebé canguru da bolsa marsupial da sua mãe e esperar que ele se regulasse sozinho num bercinho, a mais de 2 metros da mãe.

Por outro lado, sabemos que o que se desenvolve naquelas primeiras horas de vida de um bebé é absolutamente vital para o estabelecimento do vínculo entre mãe e bebé. Não quer dizer que mãe e bebé não tenham outras oportunidades de se vincularem um ao outro. Têm. Mas reparem: um bebé passou 40 semanas permanentemente embalado ao som de uma determinada voz. Sai cá para fora e, quer o embalo, quer a voz, desaparecem da face da terra. O que intuirá este bebé? Que a mãe desapareceu? E se eu vos disser que os bebés não têm qualquer noção de ser um ser independente da mãe? Nenhum bebé existe sozinho. Que confusão!

Do outro lado temos uma mãe separada do seu bebé: por muito forte e determinada que seja esta mulher, não vai ser fácil. Nada fácil. Irá conseguir dar de mamar? Como manter a extração de leite sem nunca ter estado pessoalmente com o bebé?

Na mesma medida que temos alguns cuidados com as mães separadas dos seus bebés por motivos de doença materna ou neonatal, estas mães COVID-19 separadas dos seus filhos requerem toda a nossa atenção. São mães que passaram por uma experiência de maternidade que não lembra a ninguém: num minuto são grávidas, no minuto seguinte são mães isoladas, pestilentas, separadas dos seus bebés.

Se uma mãe comum já passa por tanto naquelas primeiras 2 a 3 semanas pós-parto, imaginem estas mães! A solidão, a culpa, o medo de fazerem mal ao seu bebé! Estas mães merecem avaliação formal por risco elevado de depressão pós-parto e tem que lhes ser proposto algum tipo de apoio psicológico. São mães que precisam de ser muito apoiadas. São bebés que precisam, quanto antes, de voltar para os colos das suas mães. São vínculos que temos que propiciar quanto antes, para recuperar todo o tempo perdido.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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