Por que é que o AccelBio é tão importante para Portugal? O que traz de novo?
Cerca de dois terços dos medicamentos aprovados pelos reguladores europeu e norte-americano (EMA e FDA) têm origem no meio académico, e são depois desenvolvidos por empresas biotecnológicas (muitas vezes start-ups apoiadas por empresas de capital de risco). Apesar desta realidade, os medicamentos inovadores com origem em Portugal são ainda uma realidade muito rara, o que mostra que o país não tem sido capaz de capitalizar a sua produção científica e tecnológica, apesar do reconhecimento da qualidade crescente da investigação portuguesa.
Há varias razões que explicam este desfasamento e incluem, entre outras, a quase inexistência de empresas farmacêuticas com atividades de investigação pré-clínica, a escassez de acesso a capitais especializados e a falta de estruturas dedicadas a identificar, captar e promover oportunidades de transferência de tecnologia entre academia e empresas. A própria abordagem académica aos projetos científicos é pouco focada nos padrões da indústria farmacêutica e conectada com as necessidades regulamentares e de mercado e, salvo exceções, ainda se baseia na produção do conhecimento (pelo conhecimento). Assim, descobertas científicas que poderiam potencialmente beneficiar os doentes são muitas vezes desperdiçadas e nunca chegam a passar da bancada do laboratório.
O AccelBio foi criado com o objetivo de ser uma ponte entre a academia e as empresas e investidores. Focamo-nos na disponibilização de conhecimento específico a projetos altamente promissores, desde as fases iniciais de identificação de novos alvos terapêuticos até à identificação de novos fármacos e a sua validação pré-clínica.
Qual a importância de ligar a academia às farmacêuticas e ao mercado real? É na academia que se fazem as 'grandes' descobertas e é no mercado que está o know-how da comercialização/chegada da terapêutica ao doente?
Sem dúvida. Algumas das grandes descobertas científicas que deram origem a verdadeiras revoluções no tratamento farmacológico tiveram a sua origem na academia, como é o exemplo muito conhecido da descoberta da Penicilina. Em contrapartida, o desenvolvimento de novos fármacos, principalmente a partir da fase de ensaios clínicos (testes em humanos), está associado a investimentos muito elevados, para os quais a academia não tem capacidade. Adicionalmente, requerem um número elevado de pessoas dedicadas em exclusivo a esse propósito. Daí ser tão importante uma colaboração estreita e ágil entre estes atores, alavancando a passagem do conhecimento da academia para o mercado.
Citando a economista e professora Mariana Mazzucato, é cada vez mais necessária uma orientação económica de missão, que faz toda a diferença ao agregar o vasto conhecimento fundamental da academia com a capacidade das empresas de industrializar o conhecimento. Permitindo uma aprendizagem mais sólida e com partilha de riscos e receitas, gerando mais inovação e emprego inovador. Daí ser fundamental ter estruturas como o AccelBio, que ao incorporarem o espírito de missão, ajudarão a simplificar o avanço das Ciências da Saúde em Portugal, dando origem a medicamentos inovadores, com claro benefício para os pacientes.
E qual o papel exato do AccelBio nesta 'mediação'?
A estratégia do AccelBio baseia-se na capitalização da investigação biomédica. Para isso, trabalhamos em três objetivos altamente sinérgicos: apoiamos projetos promissores com origem na academia e nas start-ups, e desenvolvemo-los, em colaboração com os investigadores académicos, de acordo com os padrões da indústria farmacêutica, diminuindo o risco associado e criando ativos fortes capazes de atrair investimento; estabelecemos ferramentas e plataformas inovadoras que promovem a descoberta e o desenvolvimento de novos alvos terapêuticos e medicamentos (plataformas de multiómicas e bioinformática e de organóides), e iremos implementar programas de educação avançada para formarmos a próxima geração de académicos empreendedores, que possam alavancar a atividade de descoberta e desenvolvimento de medicamentos em Portugal.
Como surgiu esta ideia? Que exemplos inspiraram o AccelBio?
A ideia surgiu no Instituto de Medicina Molecular (iMM), um dos nossos associados, que produz ciência de excelência e, tendo já uma estrutura profissional de transferência de tecnologia, percebeu que muitas das invenções criadas não são capitalizadas, porque ainda estão numa fase muito inicial do seu desenvolvimento. Isso acontece essencialmente devido ao elevado risco associado, mas também porque muitas das experiências realizadas em contexto académico não correspondem às necessidades dos investidores e das empresas farmacêuticas. As perspetivas simplesmente não são as mesmas. É, portanto, necessário trabalhar com os investigadores no sentido de convergir num plano que vá ao encontro do que a indústria procura, e que valide de forma sustentada e mais rápida as suas invenções.
O AccelBio bebeu alguma da sua inspiração, em iniciativas semelhantes que já se fazem noutros países e que, apesar de serem relativamente recentes, já estão a dar resultados consideráveis na translação de descobertas científicas, e em programas de descoberta de medicamentos. Alguns exemplos são o LifeArc e o Medicines Discovery Catapult no Reino Unido, o TDI nos Estados Unidos, o VIB Discovery Sciences na Bélgica ou o SciLifeLab na Suécia. Temos também o exemplo do Calibr, e do paradigmático Scripps Research em San Diego responsável por 11 medicamentos aprovados pelo FDA e criação de 50 spin-offs. Estas organizações inspiraram-nos a criar o AccelBio. Serão também um exemplo a seguir nas melhores práticas, dando linhas orientadoras para superar muitos desafios que possamos enfrentar, principalmente nos primeiros anos.
O que traz este laboratório de diferente face aos outros CoLAB em Portugal?
Em Portugal, não identificámos até hoje uma entidade que reúna as capacidades do AccelBio, que tem como membros fundadores parceiros do sistema académico (iMM, Universidade de Coimbra e Instituto Superior Técnico), start-ups (TargTex, BSIM Therapeutics, CellmAbs e LiMM Therapeutics), empresas farmacêuticas e biotecnológicas (Roche e Vertical Sentinel), e o único parque tecnológico especializado em ciências da vida em Portugal (Biocant). Estes associados reúnem no seu conjunto todas as capacidades e conhecimentos necessários para desenvolver com sucesso programas de desenvolvimento de medicamentos, desde as fases de descoberta até à fase pré-clínica, e de acordo com os padrões e requisitos da indústria farmacêutica.
Adicionalmente, o nosso modelo de negócio está fortemente ancorado na valorização do enorme potencial científico existente em Portugal, um terreno muito fértil por explorar. Uma das componentes da nossa missão é a de gerar ativos que se refletirão em programas de desenvolvimento com interesse comercial. Esses ativos poderão ser depois licenciados a empresas já existentes no mercado, ou mesmo levar à criação de novas empresas de capitais independentes.
Esse é um dos grandes objetivos estruturais do AccelBio: diminuir os riscos para a academia e indústria, gerando valor financeiro e humano com ganhos consideráveis a longo prazo, sempre alinhado com o ciclo de inovação na descoberta de fármacos.
O AccelBio está focado em algumas doenças ou áreas terapêuticas em específico?
O AccelBio concentra-se em três áreas terapêuticas específicas: Oncologia, Neurociências e Imunologia. São áreas que ainda têm variadas necessidades médicas não preenchidas e associadas a uma procura elevada por parte de empresas e investidores. Essas áreas também estão alinhadas com as capacidades e os interesses dos nossos associados. Ainda assim, não excluímos alargar o âmbito da nossa atuação de acordo com o nosso crescimento e evolução das necessidades médicas.
Há pouco falou na escassez de acesso a capitais especializados. Por que motivo o financiamento especializado de capital de risco na área de saúde na Europa é significativamente menor do que nos EUA, e ainda menor em Portugal?
O financiamento através de capital de risco foi iniciado nos EUA, o que já é uma vantagem. Além disso, a disponibilidade de dinheiro nos EUA é maior e mais diversa do que na Europa.
A parte cultural também tem influência. O país tem a sua génese num conjunto de pioneiros e posterior crescimento exponencial com a emigração, o contribuiu para uma aceitação maior do risco por parte dos investidores americanos, levando a que invistam mais e mais rápido (quer capital de risco, quer filantropia), em comparação à realidade europeia. De uma forma geral, os EUA têm uma cultura que é altamente otimista, enquanto a UE tem uma cultura mais cética. Esta capacidade dos EUA de gerar mais investimento conduz à criação de mais inovação, o que gera maiores retornos, tornando-se num um ciclo vicioso. Também nos EUA existem mais empresas capazes de absorver essa inovação que na Europa.
Temos de realçar, no entanto, que a diferença entre Europa e EUA tem vindo a atenuar-se nos últimos anos. Em parte, resultado de várias iniciativas da Comissão Europeia (por exemplo, a criação do Conselho Europeu de Inovação), que têm dado um forte apoio e impulso à investigação em tecnologias emergentes, fomentando a criação e a expansão de start-ups e pequenas e médias empresas.
No caso particular de Portugal, e falando da nossa área em específico, há pouquíssimo capital de risco disponível e nenhuma empresa da área se pode cingir apenas a investidores portugueses. De qualquer forma, há que criar condições para atrair investidores, e isso passa por apoiar e estimular mais a translação da inovação académica, dando as condições para que projetos com grande potencial sejam industrializados, e se tornem geradores de negócio. Há uma correlação direta, entre o número de casos de transferência de tecnologia e empresas criadas, o que atrai mais investidores e fundos de investimento para o país.
Que exemplos de sucesso existem em Portugal fruto deste tipo de parcerias?
Infelizmente, ainda temos poucos casos de sucesso em Portugal na área Farmacêutica e Biotecnológica. Destacamos a empresa Lymphact, spin-off do iMM, um dos nossos associados, que foi adquirida por uma empresa britânica em 2018 e posteriormente pela empresa Takeda, uma das maiores farmacêuticas Japonesas do Mundo. A Lymphact desenvolveu uma terapia celular para cancro que está em ensaios clínicos nos EUA.
Temos outros casos de sucesso em Portugal como o GenIbet recentemente adquirida pela Recipharm, e que é uma spin-off da Nova e ITQB, a Alfama Sciences adquirida em 2018 pela Proterris Inc, uma empresa internacional, ou spin-offs da Universidade de Coimbra como a Luzitin com produtos em ensaios clínicos.
Fora da área da saúde, temos o exemplo da Critical Software gerada na Universidade de Coimbra, e que trabalha com a NASA e com grandes empresas multinacionais.
O próprio AccelBio tem associados que são start-ups, apoiadas por capital de risco, que nasceram de descobertas científicas feitas em Portugal e que apresentam um percurso promissor, com casos particulares de produtos que deverão entrar em ensaios clínicos brevemente.
E que outros poderão surgir na área da saúde? Já há alguma novidade que se possa divulgar no contexto do AccelBio?
O AccelBio está a desenvolver projetos em diferentes áreas e com diferentes objetivos. Neste momento estamos a trabalhar no desenvolvimento de fármacos em áreas tão díspares como a Doença de Alzheimer, Doenças Autoimunes e Melanoma. Estes projetos estão em diferentes fases de desenvolvimento, mas todos têm grandes probabilidades de promover o desenvolvimento de novos terapias e alguns deles serem a base de novas empresas. Os investigadores do AccelBio estão já alinhados com os centros de investigação primários, para definir o plano de desenvolvimento mais adequado a cada um deles e o respetivo plano de exploração. Queremos alargar o nosso espectro de ação e, num futuro próximo, vamos abrir um concurso, para todos os investigadores em Portugal, para identificar e selecionar novos projetos com potencial científico e comercial, para que integrem a rede de translação do AccelBio.
Estes projetos são também apoiados pelas nossas plataformas tecnológicas, nomeadamente a plataforma de organoides, modelos que mimetizam de forma mais próxima os tecidos humanos, diminuindo a experimentação animal. Esta tecnologia permite-nos testar a eficácia e segurança de fármacos. Adicionalmente, temos outras plataformas como a de multiómicas, que permitirá caracterizar e identificar características especificas de grupos de doentes para uma medicina mais personalizada, ou doenças órfãs, e medicamentos mais eficazes e seguros.
A missão fundamental do AccelBio é a promoção e exercício de iniciativas e atividades de investigação orientadas para a capitalização de resultados científicos na área biomédica. Com este propósito, pretendemos alavancar o desenvolvimento de medicamentos com origem em Portugal, para que possamos ser um motor de desenvolvimento de mais e melhores terapias que impactem a saúde humana.
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