Quando é que podemos começar a viver sem qualquer restrição por causa da pandemia?

Esta é “a pergunta importante”, não é?

A pergunta de um milhão de euros...

Sim, sem dúvida. Vai depender muito do decurso do processo de vacinação, mas sobretudo na entrega de vacinas. Esperemos que em julho a maioria das restrições tenham sido reduzidas em toda a Europa e possamos ir às compras de novo ou ver a família, por exemplo. Mas provavelmente será necessário manter várias precauções, como o distanciamento físico e o uso de máscaras em situações em que não é possível manter o distanciamento. Este tipo de medidas não deve desaparecer tão cedo. Eventualmente vão deixar de ser necessárias, mas a verdade é que quando todos estivermos vacinados vamos ter de continuar a ter cuidado.

Porquê?

O vírus continuará em circulação e não teremos vacinas suficientes para vacinar 100% da população mundial. Por isso, algumas precauções continuarão a ser necessárias, embora possamos voltar às nossas vidas com bastante mais liberdade do que a que temos agora.

O vírus vai continuar a infetar-nos. O SARS-CoV-2 não vai desaparecer. Vamos ser infetados em média uma vez a cada dois ou cinco anos

Quando é que podemos esperar que toda a população esteja imunizada?

É difícil fazermos previsões desse género, especialmente porque sabemos que há problemas na produção de vacinas e na sua entrega na Europa. O Reino Unido está a sair-se muito bem nesse processo, por isso no final de julho todos os cidadãos deste país deverão ter pelo menos uma dose da vacina. Na Holanda essa meta deverá ser atingida em setembro segundo as previsões do Governo. Em Portugal fala-se em 70% da população no final do verão. Em todo o caso, se as pessoas dos grupos vulneráveis já estiverem vacinadas nessa altura estaremos numa situação muito melhor. Portanto, se estas metas forem atingidas é provável que toda a população nestes países esteja vacinada até ao final do ano.

Marc Veldhoen
Marc Veldhoen, imunologista e investigador do iMM créditos: Gonçalo Ribeiro/iMM

Mas, entretanto, surgiram as novas mutações do vírus. Precisaremos de uma vacinação anual?

Um coronavírus não é a mesma coisa que um vírus da gripe que pode mutar muito facilmente. O mesmo não acontece com os coronavírus que têm a famosa proteína Spike. Sabemos que este agente patogénico não é um vírus humano e não começou no ser humano. Saltou entre espécies e foi bem-sucedido nisso. No último ano, temos assistido ao aparecimento de mutações e isso acontece para que este se adapte ao ser humano e se multiplique melhor. Mas o denominador comum é a proteína Spike que se mantém à superfície do vírus. Sem ela, este coronavírus não se liga ao ser humano. Ainda que haja mais mutações, elas não serão completamente diferentes, nem demasiado rápidas, ao ponto de os anticorpos que existem no ser humano – decorrentes da vacinação ou de uma infeção prévia – não as consigam identificar. É por isso que eu acho que não precisaremos de vacinações anuais.

Em segundo lugar, o vírus vai continuar a infetar-nos. O SARS-CoV-2 não vai desaparecer. Vamos ser infetados em média uma vez a cada dois ou cinco anos. As outras proteínas que estão neste coronavírus, para as quais os seres humanos desenvolveram resposta imunitária, também vão manter-se no vírus. Por isso, mesmo que sejamos infetados no futuro pelo vírus SARS-CoV-2, os anticorpos que já temos no organismo vão conseguir atacar a invasão desse agente infecioso e provavelmente não vamos ficar doentes. Ou se ficarmos doentes, vamos desenvolver poucos sintomas, semelhantes a uma constipação.

Quem é Marc Veldhoen?

Marc Veldhoen formou-se em Biomedicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Utrecht, na Holanda, e doutorou-se em Imunologia pelo National Institute for Medical Research (NIMR) em Londres, Reino Unido.

Marc Veldhoen fez ainda um pós-doutoramento no NIMR onde estudou o processo de diferenciação de um tipo de glóbulos brancos, os linfócitos T-helper.

Em 2010, mudou-se para Cambridge onde iniciou o seu grupo de investigação independente no Babraham Institute. Desde então, estuda a biologia dos linfócitos T nas mucosas.

Mudou-se para Portugal em 2016 onde assumiu o cargo de ERA Chair e investigador principal no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM).

Por isso não será necessário uma nova vacinação?

Claro que haverá exceções. Se houver novamente uma grande incidência da doença, talvez seja recomendado que pessoas em condições extremas, como os transplantados ou portadores de determinadas doenças crónicas, sejam de novo vacinados. No entanto, não acredito que venha a ser necessária uma vacinação anual contra o SARS-CoV-2. Eventualmente acredito que, em determinados casos, possa ser útil uma terceira dose de vacinação, sobretudo para os mais vulneráveis, mas ainda não sabemos.

Quando a população estiver toda vacinada, poderemos abandonar o distanciamento social e o uso de máscara?

Acredito que sim, mas em alguns países, como no Reino Unido e Estados Unidos, as autoridades de saúde já vieram alertar para a possibilidade de no próximo inverno ser necessário de novo o uso generalizado de máscaras e o distanciamento físico. No entanto, se conseguirmos avançar com o processo de vacinação e estendê-lo a toda a população, talvez essas medidas não sejam necessárias.

Teremos um ano normal em 2022?

O próximo ano não vai ser normal, porque as pessoas não vão estar vacinadas no resto do mundo. Muitos países continuarão a ter infeções e continuaremos a ter novas mutações a surgir. Mas, sim, poderemos ir de férias no próximo ano, para Espanha ou Grécia, por exemplo.

As pessoas acham que anticorpos é o mesmo que imunidade e julgam que se não tivermos anticorpos é porque não estamos imunes. Isso não é bem verdade

Mas não é seguro marcar férias já este ano?

Eu teria cuidado em marcar férias este ano. A situação ainda é sensível e, na minha opinião, as pessoas devem aguardar até lá.

Quais serão as consequências deste vírus no futuro?

Temos agora mais um vírus a ameaçar a população humana. Isso nunca é bom. Já tínhamos outros quatro coronavírus. Este é o quinto e é mais perigoso. Por isso, no futuro, no caso das pessoas imunodeprimidas ou de idade mais avançada, mesmo tendo feito a vacina há quatro ou cinco anos, a infeção por este vírus juntamente com estas questões poderá contribuir para o aumento da gravidade dos sintomas e da mortalidade. Por isso teremos que estar atentos à sua evolução.

Marc Veldhoen, imunologista e investigador do iMM
Marc Veldhoen, imunologista e investigador do iMM créditos: Gonçalo Ribeiro/iMM

Relativamente à imunidade de grupo em Portugal, o iMM tem feito trabalho de investigação nessa área. O que se sabe até agora?

Como imunologista surpreendeu-me muito ver jornais titularem que, enquanto seres humanos, poderíamos nunca desenvolver imunidade para o SARS-CoV-2. Sabemos há muitos anos que sempre que o ser humano entra em contacto com um corpo estranho desenvolve uma resposta imunitária contra ele. É um dom da natureza. É claro que não sabemos o quão boa essa resposta imunitária é nem quanto tempo durará. Isso dependerá da genética de cada um e das características do agente patogénico. É claro que desenvolvemos anticorpos que atingem um pico cerca de três semanas depois da infeção. Depois disso começam a baixar. Sabemos que diminuem, no entanto vão manter-se alguns anticorpos no organismo. Sabemos de vários estudos, nomeadamente em Portugal, que seis a sete meses depois da infeção 90% das pessoas ainda têm imunidade. Sabemos que com o tempo essa percentagem vai diminuir.

Ter alguns anticorpos é o mesmo que ter imunidade?

As pessoas acham que anticorpos é o mesmo que imunidade e julgam que se não tivermos anticorpos é porque não estamos imunes. Isso não é bem verdade. Ainda que tenhamos anticorpos, que são importantes, nós também temos as células B, ou linfócitos B, que são as células que criam anticorpos. Depois também temos as células T, que atacam as células que estão infetadas. Estes dois tipos de células não se medem através dos anticorpos e mantêm-se no organismo durante muito tempo. Ou seja, o nível de anticorpos contra o SARS-CoV-2 após uma infeção ou vacinação até pode baixar ou desaparecer, mas estes tipos de células vão manter-se e por isso vão poder gerar uma resposta imunitária mais rápida e eficaz no caso de uma nova infeção.

Então não fará sentido esperar para ser vacinado com um fármaco que abranja novas estirpes?

Exatamente. Não vale a pena esperar para ser vacinado por uma nova vacina. Não mesmo. Não recomendo, porque estas vacinas atuais que estão a ser utilizadas já vão ajudar a desencadear uma resposta imunitária segura. As pessoas até poderão contrair a infeção, mas não terão sintomas ou, se tiverem, serão muito leves.

Mas alguns laboratórios anunciaram que vão testar novas vacinas que abranjam as novas variantes...

Claro, isso é o mais correto, porque embora estejamos convencidos que as vacinas que já existem nos conferem proteção, ao sabermos que elas podem ter um pouco menos de proteção para estas variantes, devemos adaptá-las para otimizar esse nível de resposta imunitária. No entanto, uma nova versão da vacina não significa que a vacina antiga já não funciona. É melhor ter já uma resposta imunitária basal, do que não ter qualquer resposta imunitária. Dou um exemplo: imagine que é infetado mesmo estando vacinado. Nesse caso, a sua infeção será praticamente assintomática e produzirá poucas partículas virais, logo a probabilidade de infetar outras pessoas será muito baixa. Não vale a pena esperar por uma vacina mais evoluída. Não, de todo.

Podemos confiar na ciência no que toca ao combate a esta pandemia?

Devemos confiar no sistema científico. Muitas vezes os cientistas usam uma linguagem que pode parecer hesitante. Em ciência, nós temos a hipótese e depois testamos a hipótese. Enquanto vamos ganhando mais e mais confiança na hipótese testada, pode surgir uma nova descoberta que pode levar ao ajuste da hipótese. Por isso, em ciência, somos cautelosos e usamos muito expressões como “pode”, “talvez”, “não podemos ter a certeza”, mas essa é a forma como os cientistas produzem conhecimento. No entanto, podemos estar confiantes quando dizemos que temos boas vacinas que nos dão bons anticorpos e uma boa resposta imune. Disso não há dúvidas.

A entrevista foi conduzida em inglês e traduzida pelo jornalista para português.