Em Portugal, existe quase um milhão de casos de diabetes tipo 2 registados nos centros de saúde. Crê-se que o número real seja bastante superior. Muitas pessoas desconhecem ser portadoras da doença, que se estima afetar perto de 14% da população portuguesa. A estes números juntam-se mais de 5000 pessoas com diabetes tipo 1, uma variante menos frequente da doença que costuma surgir ainda na infância ou adolescência e que exige tratamento permanente com insulina.
Vera Aleixo, autora do livro Com Todo o Gosto - Viver a Diabetes com receitas low carb (edição Contraponto) foi diagnosticada aos 14 anos com diabetes tipo 1. A partir de então, a insulina e uma alimentação bastante regrada passaram a fazer parte da sua vida. No entanto, com o passar dos anos, percebeu que poderia usar a alimentação como (mais) uma “arma” para gerir a doença. Foi assim que chegou à alimentação low carb que, em conjunto com a insulina, permite, de acordo com a autora, “um melhor controlo da glicemia”.
A pretexto do lançamento do livro de Vera Aleixo, conversámos com a técnica superior de Serviço Social numa unidade da Rede Nacional de Cuidados Continuados. Em 2017, Vera criou no Instagram a página @viveradiabetes_ para ajudar outras pessoas com o mesmo diagnóstico.
A Vera escreve na introdução ao seu livro que pretende “abordar de forma leve alguns assuntos pouco falados, mas muito sentidos”. Que assuntos são estes e de que forma são sentidos?
Sim, no livro procurei trazer à tona algumas das realidades menos faladas, mas muito sentidas, de quem vive com diabetes tipo 1, como as relações sociais e íntimas, o cansaço emocional e até a vergonha que muitas vezes sentimos por causa da doença. Estes temas afetam a nossa vida de maneiras muito profundas e diárias, mas raramente são debatidos de forma aberta. Por exemplo, nas relações sociais e íntimas, existe sempre o receio de ser mal interpretado ou até julgado pelo que comemos, pela nossa saúde, e até pela nossa necessidade de monitorizar constantemente a glicemia. E, claro, há o cansaço emocional – viver com uma condição crónica exige uma energia constante, desde o planeamento das refeições à gestão das hipoglicemias e hiperglicemias. Este cansaço é real, mas muitas vezes invisível, o que pode gerar incompreensão. E finalmente, o sentimento de vergonha que pode surgir em situações sociais ou nos momentos em que a diabetes nos torna mais vulneráveis – é uma realidade que muitos vivem, e senti que era essencial dar voz a esta experiência no livro. Espero que ao partilhar de forma leve e próxima essas vivências, consiga abrir espaço para o entendimento e, quem sabe, aliviar um pouco o peso emocional para quem vive estas situações no dia a dia.
No seu livro abre-se em relação à sua diabetes, ao momento em que lhe foi diagnosticada, às rotinas que foi assumindo, aos contratempos e também às vitórias. Quer partilhar brevemente com os leitores?
No livro, partilho a fundo a minha história com a diabetes tipo 1, desde o momento do diagnóstico até às rotinas e desafios que se foram tornando parte da minha vida. Fui diagnosticada numa fase muito crítica e de forma tardia. Lembro-me bem de chegar à urgência do hospital, praticamente sem reação, já nos braços do meu pai – foi um momento que marcou profundamente o início de uma nova vida. A partir daí, as rotinas que fui assumindo tornaram-se essenciais: administrar insulina, fazer controlos rigorosos de glicémia e ajustar a minha alimentação, o que exigiu muito rigor e dedicação. E, claro, houve muitos contratempos – como a frustração de não conseguir manter sempre os valores ideais de glicémia, algo que é bastante desafiante e, por vezes, desgastante. Mas, com o tempo, também vieram as vitórias. Uma das maiores foi, sem dúvida, aceitar a diabetes e encontrar paz em cuidar verdadeiramente de mim. Com o tempo, descobri que a estratégia nutricional low carb me ajuda a manter uma boa gestão da glicémia e me dá paz e descanso mental no dia a dia. Hoje, o que antes era um desafio passou a ser também uma motivação para continuar a cuidar de mim, com a convicção de que este caminho é possível e vale a pena.
Dedica um capítulo do seu livro ao tema, “Diabetes, aquilo que não nos contam”. Presentemente, ainda falta informação e esclarecimento junto dos portadores de diabetes?
Sim, falta ainda muita informação clara e completa para quem vive com diabetes, e isso foi uma das razões que me levou a dedicar um capítulo do livro a “Diabetes, aquilo que não nos contam”. Receber um diagnóstico de diabetes é um momento pesado e marcante. Trata-se de uma condição para toda a vida, e o que percebo é que muitas equipas de saúde, na tentativa de aliviar esse peso inicial, acabam por omitir informações que seriam importantes a longo prazo. Por exemplo, a nível alimentar, é comum ouvirmos que podemos comer de tudo – o que é verdade no sentido de que nada é absolutamente proibido, mas esta liberdade nem sempre é o caminho mais seguro. A realidade é que, por uma questão de saúde, quem vive com diabetes deve fazer escolhas muito criteriosas, afinal, tratar-se de uma doença autoimune exige uma gestão alimentar mais cuidada. Outro ponto que considero crucial é o da contagem dos macronutrientes. Geralmente, o foco recai quase exclusivamente nos hidratos de carbono, mas é fundamental perceber que também as proteínas e as gorduras têm um impacto, embora mais tardio. Muitas vezes, estas fontes energéticas contribuem para uma subida da glicémia que é difícil de controlar e, sem sabermos a razão, pode causar frustração. Acredito que, se estas informações fossem passadas desde o início, as pessoas com diabetes poderiam sentir-se mais preparadas e confiantes para gerir a sua condição. Adicionalmente, uma abordagem mais holística e detalhada ao tema ajudaria os diabéticos a viver com menos frustração e mais autonomia, permitindo que cada um tenha o conhecimento necessário para gerir cada decisão com mais segurança e saúde.
Uma parte substancial do livro da Vera incide sobre a alimentação low carb. Muitos leitores não estarão familiarizados com esta alimentação. Quer dar-nos um enquadramento à mesma?
A alimentação low carb é uma abordagem nutricional que prioriza o consumo reduzido de hidratos de carbono, focando-se em alimentos ricos em proteínas, gorduras saudáveis, legumes e fibras. É importante esclarecer que low carb não significa zero hidratos de carbono. Esta abordagem visa, acima de tudo, reduzir as oscilações de glicose e ajudar a manter valores de glicemia mais estáveis, o que é fundamental para pessoas com diabetes e também para quem quer manter uma alimentação mais equilibrada. Ao limitar os hidratos de carbono – como o pão, o arroz, as massas e até algumas frutas – reduzimos a quantidade de açúcar que entra na corrente sanguínea, o que facilita o controlo da glicemia. Em vez disso, focamo-nos em alimentos mais ricos em proteínas e em gorduras de boa qualidade, como carnes magras, peixes, ovos, abacate, frutos secos e azeite.
Os legumes e as verduras também são uma parte essencial, pois além de fornecerem nutrientes e fibras, têm um impacto muito baixo nos valores de glicose. Este tipo de alimentação permite, além de um controlo mais previsível das glicemias, uma maior saciedade e uma relação mais tranquila com a comida. O que pretendo com o livro é, além de explicar os princípios da alimentação low carb, mostrar que este tipo de escolha alimentar não precisa de ser uma restrição; pelo contrário, pode ser uma forma de ampliar opções de pratos saborosos, nutritivos e adequados a uma rotina mais saudável.
De que forma tem a alimentação low carb um impacto positivo na diabetes?
A alimentação low carb pode ter um impacto muito positivo na gestão da diabetes, principalmente porque ajuda a manter os valores de glicose no sangue mais estáveis. Ao reduzir a ingestão de hidratos de carbono, diminuímos os picos da glicemia após as refeições, o que facilita o controlo e pode reduzir a quantidade de insulina necessária para corrigir essas oscilações. Isto é particularmente benéfico para pessoas com diabetes tipo 1, como é o meu caso, uma vez que ajuda a evitar o “efeito montanha-russa” — os altos e baixos frequentes da glicemia que muitas vezes causam desconforto e cansaço. Além disso, ao focar-se em proteínas e gorduras saudáveis, e em hidratos de carbono de baixo índice glicémico, como os vegetais, a alimentação low carb permite sentir saciedade por mais tempo e evita quebras súbitas de energia. Isto, em conjunto, contribui para uma gestão mais previsível da glicemia e uma maior autonomia no dia-a-dia, o que é essencial para viver com menos stress e mais qualidade de vida ao gerir a diabetes.
No caso concreto da Vera, como contactou com esta alimentação e de que forma impactou na gestão da sua diabetes?
No meu caso, a descoberta da alimentação low carb começou a ganhar forma quando passei a usar o sensor Libre. Esta tecnologia permitiu-me ter uma leitura contínua da glicemia, o que considero uma das melhores evoluções tecnológicas na gestão da diabetes. Com ele, comecei a fazer testes e experiências que me mostraram de forma clara como diferentes alimentos impactavam os meus valores de glicemia. Alguns alimentos mantinham a minha glicemia estável, enquanto outros causavam verdadeiras montanhas-russas. A minha procura por uma alimentação saudável levou-me a encontrar a Alessandra Losacco, que me guiou através de mentorias sobre como me alimentar corretamente do ponto de vista nutricional. É crucial que mudanças alimentares sejam feitas com acompanhamento profissional, e por isso sempre recomendo esse suporte. Antes disso, a minha aprendizagem foi reforçada com o Sérgio Louro, que me ajudou e ensinou sobre insulinas basais e rácios. Ter essa base sólida de conhecimento é fundamental para lidar com as mudanças na alimentação de forma segura e eficaz. Esse conhecimento permitiu-me não só ajustar a minha alimentação, mas também entender como agir em resposta às flutuações da glicemia, tornando a gestão da diabetes mais eficaz e menos stressante.
É uma alimentação fácil de implementar no dia a dia? Pode dar-nos alguns exemplos, por favor?
A alimentação low carb pode ser fácil de implementar no dia a dia, especialmente quando se tem um plano e algumas ideias claras em mente. A chave está em fazer escolhas alimentares conscientes e planeadas, sem sacrificar o sabor ou a variedade. Para começar, é fundamental organizar a despensa com alimentos que se alinham com uma alimentação low carb. Ter sempre à mão proteínas, como ovos, carnes e peixes, é uma boa estratégia. Além disso, é importante incluir vegetais frescos, como brócolos e couve-flor, que são ótimos para fazer refeições nutritivas. Não se deve esquecer das gorduras saudáveis, como azeite, abacate e frutos secos, que ajudam a aumentar a saciedade. Outra opção é ter farinhas low carb, como farinha de amêndoa, linhaça ou de coco, que podem ser usadas em receitas para substituir as farinhas tradicionais.
Preparar refeições low carb pode ser rápido e prático. Por exemplo, para o pequeno-almoço, uma omelete com espinafres e queijo ou iogurte grego com nozes e frutos vermelhos são ótimas opções. No almoço, uma salada com frango grelhado, abacate e sementes, onde o uso de legumes em vez de cereais torna a refeição mais rica em nutrientes e baixa em hidratos. Para o jantar, peixe assado com legumes salteados ou uma sopa de legumes e carne são escolhas saborosas e saudáveis.
A alimentação low carb também pode ser adaptada para diferentes idades e estilos de vida. Para crianças, por exemplo, é possível substituir massas tradicionais por esparguete de curgete ou fazer pizzas com base de couve-flor, permitindo que elas consumam pratos que gostam, mas com menos hidratos. Adolescentes podem ter snacks saudáveis, como palitos de cenoura com húmus ou frutos vermelhos com manteiga de amendoim, que são práticos e deliciosos.
Para adultos, criar uma rotina de preparação de refeições (meal prep), onde as refeições são planeadas e preparadas com antecedência, pode facilitar muito o dia a dia.
Com um pouco de planeamento e algumas trocas inteligentes, a alimentação low carb pode ser uma opção prática e saborosa para qualquer pessoa, independentemente da sua idade ou estilo de vida. O importante é ser flexível e adaptar a alimentação ao que funciona melhor para cada um, sem perder de vista a saúde e o prazer de comer.
Porque escreve a Vera que “devemos ser um pouco o nosso próprio médico”, quando se refere à forma como gerimos a diabetes?
Quando digo que "devemos ser um pouco o nosso próprio médico", estou a enfatizar a importância de assumirmos um papel ativo na gestão da nossa saúde, especialmente no que diz respeito à diabetes. Este conceito é fundamental, pois a diabetes é uma condição complexa e pessoal, que varia de pessoa para pessoa.
Ser o nosso próprio médico significa que, além de seguirmos as orientações dos profissionais de saúde, também precisamos desenvolver um entendimento profundo sobre a nossa própria condição. Isso envolve monitorizar os valores de glicemia, conhecer as respostas do nosso corpo a diferentes alimentos e atividades, e fazer ajustes na alimentação e na administração da insulina de acordo com as nossas necessidades individuais. É crucial entender que não existe uma abordagem única que sirva para todos. Cada um de nós tem diferentes reações a alimentos e situações, por isso, o autoconhecimento é vital.
Além disso, ter esse tipo de proatividade permite que nos tornemos mais informados e capacitados, aumentando a nossa autonomia. Por exemplo, ao monitorizar a glicemia com frequência e fazer uso de tecnologias como os sensores contínuos, podemos observar como a nossa alimentação e o nosso estilo de vida afetam os nossos valores de açúcar no sangue. Este conhecimento pode ajudar a tomar decisões mais informadas sobre o que comer, quando comer e como ajustar a insulina.
Portanto, "ser um pouco o nosso próprio médico" é sobre responsabilizar-se pela nossa saúde, ser curioso sobre o que está a acontecer no nosso corpo e, assim, ter um papel ativo na gestão da diabetes. Com esse entendimento, podemos viver com mais confiança e autonomia, tornando a convivência com a diabetes mais fácil e menos intimidante.
A Vera leva para o seu livro um leque de receitas assentes na alimentação low carb. Quer salientar algumas destas receitas de forma a abrir o apetite dos leitores?
No meu livro, apresento uma variedade de receitas que respeitam os princípios da alimentação low carb, mas que são também simples e deliciosas. Entre as receitas que apresento, destaco o Caldo verde, numa versão saudável deste clássico português, mantendo o sabor rico e reconfortante, mas com uma redução nos hidratos de carbono; a Sopa de peixe, numa explosão de sabor e nutrientes. É leve, mas extremamente satisfatória.
Também saliento a Carne à bolonhesa, onde transformo este prato tradicional num prato nutritivo e baixo em hidratos, que pode ser acompanhado com esparguete de Konjac; o Empadão de atum, numa opção deliciosa e rápida, combinando o sabor do atum com uma base saudável, perfeita para uma refeição em família.
Também gostaria de referir as Barras de coco e chocolate (Bounty), uma indulgência saudável que satisfazem o desejo por doces sem sair da linha; as Bolinhas com pepitas de chocolate (Manhãzitos), pequenas delícias que são ótimas para um lanche saudável; o Bolo brigadeiro, numa versão leve deste doce tão amado, ideal para celebrar momentos especiais; vários pães e bolachinhas.
Estas receitas não apenas tornam a alimentação low carb mais acessível, como também provam que é possível comer bem e de forma saborosa, sem comprometer a saúde.
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