Os cinco sentidos dão-nos a percepção do mundo tal e qual como ele é. Há toda uma descodificação que nos permite perceber e interpretar o que nos rodeia. Não são estanques, tampouco isolados, nem se focam em si mesmos. Há uma integração para que tudo se traduza em momentos. Comer não é só o processo de obter e assimilar nutrientes por forma ao nosso organismo cumprir as suas funções vitais. É uma experiência holística que envolve o paladar e tudo o que nos circunda, que abarca aquele determinado momento, aquele tempo específico. O mesmo acontece com a visão, a audição, o olfacto e o tacto.
Lembro-me da primeira vez que comi uma bola de berlim no Algarve. Tenho a ideia de que (quase!) me lembro disso. É uma certeza de que (quase!) estou certo, porque a nossa mente tende a atribuir um momento específico quando o sente importante. Gosto das bolas de berlim do Algarve, mas não só das bolas em si. Gosto de as comer onde as comi a primeira vez. Sabem-me a família, a sol, a praia, a mergulhos no mar, a ser feliz sem pedir autorização. Sabem ao culminar do cansaço de fazer castelos na areia, depois de comer uma sandes que só agora soube que gosto. A massificação das bolas de berlim desvirtua este processo. Comer uma delas no norte, soa sempre a um quase: quase me relembra esses tempos, quase me sabe ao Algarve mas nunca à bola de berlim do Algarve. Os sabores estão associados aos sítios. Não só ao sítio em si, mas ao que há lá, ao que já lá houve, a quem esteve connosco e já não está. Esses sabores nesses sítios, aproximam-nos de quem já foi e de quem já fomos. Aproximam-nos de quem só não está fisicamente connosco. Se gostava de ter o Algarve no norte? Estou certo de que, se calhar, sim. Na impossibilidade, forçá-lo só incita a desilusão.
É como o perfume não ser só um cheiro bom. É o odor que atribuímos a um momento que, no futuro, lhe toma a forma. Ainda me lembro do cheiro do primeiro beijo e basta experienciar aquele mesmo perfume para ainda o sentir. Não é o cheiro do perfume que me faz chorar, sorrir, ausentar-me dali, não. É aquilo a que esse odor me reporta. Como a tua pele. Ah, caramba. A pele. O toque da tua pele macia. O cheiro de um creme que não encontro mais, mas que o sabia fazer, percebesse eu de engenharia química.
O cheiro e o sabor da chicla que adorávamos e que não pude mais provar, por sabê-la de cor. Sim, é por isso. As pipocas do Arrábida e o caril de frango que passei a não comer, por gostar tanto do seu sabor. O problema dos sentidos é esta capacidade de nos reportarem a momentos partilhados, com a força de lá ficarmos sozinhos.
Ver um idoso a cambalear como a minha avó (que já conhecia pelo som do corredor), um arroz de tomate com o travo aos almoços de domingo, uma lenga-lenga que me lembra a milésima vez que o meu avô as contava, sempre com o entusiasmo e empenho da primeira. O som do carro a entrar em casa e o cheiro a óleo daquela garagem onde brincávamos e éramos felizes, sem saber porquê. É que, quem sabe mesmo brincar, nem tempo tem para pensar. Brincar é intenso e exige o melhor do nosso físico e imaginação.
Ver alguém com umas feições que me lembram as tuas. Ouvir o timbre da tua voz no meio da multidão. Viro a cara e não estás. Como se lá tivesses estado e fugido quando me viste. Nunca lá estiveste, nunca lá estiveram. Resta-me esta lembrança avivada pelos sentidos. Os cinco, no sítio certo. E as bolas de berlim no Algarve, sempre.
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