As pessoas em Portugal estão suficientemente sensibilizadas para o cancro da bexiga?
A maior parte das pessoas não conhece a existência do tumor da bexiga. Em parte por ser um tumor que é menos frequente que os tumores de pele, gastrointestinais, mama ou próstata. Por outro porque a sua ocorrência está fortemente associada ao tabagismo e, quando se fala de tumores associados ao tabaco, acabamos por falar de pulmão, laringe ou cavidade oral sem nos lembrarmos de referir a forte relação com os tumores das vias urinárias. Assim, iniciativas como esta são importantes para reforçar a perceção da população para alguns sintomas e sinais de alarme que permitem um reconhecimento mais precoce dos tumores das vias urinárias.
O que é o cancro da bexiga e como se manifesta?
O tumor da bexiga é um tumor urotelial. O que significa que tem origem no urotélio, tem origem nas vias urinárias. Falamos de tumores das vias urinárias quando nos referirmos aos tumores da camada que reveste os órgãos por onde passa a urina - o urotélio. Por este motivo a localização dos tumores uroteliais varia: árvore caliciais dos rins, ureteres e bexiga (a localização na bexiga corresponde a 95% dos tumores uroteliais).
A manifestação mais importante do tumor da bexiga é a ocorrência de hemorragia urinária (hematúria) visível (também designada de macrocópica) sem outros sintomas associados. Por exemplo, ocorrer esta emissão de urina vermelha, eventualmente com coágulos (flocos castanho escuros ou pretos), sem dor ou outros sintomas urinários.
Mesmo que o episódio de hematúria seja isolado, mesmo que a pessoa tome um anticoagulante (medicamento para deixar o sangue “mais fino” que pudesse justificar a hemorragia), mesmo que se suspeite de infeção urinaria, a ocorrência de hematúria macroscópica indolor tem sempre de desencadear investigação. Não significa que todos os episódios de hematúria se devam a neoplasia, mas a oportunidade de reconhecimento precoce não deve ser perdida.
Outros sintomas menos comuns são os sintomas irritativos urinários. Estes são designados de sintomas de armazenamento, porque, na verdade, perturbam a normal armazenamento de urina na bexiga. Ainda assim, é menos comum o aparecimento destes sintomas sem a ocorrência prévia de hematúria, pelo que a maior parte das pessoas que têm sintomas de aumento de frequência urinária, urgência urinária ou mesmo incontinência urinária têm algum outro tipo de diagnóstico.
Quais são os fatores de risco mais comuns?
Tabagismo, mesmo que passivo e mesmo para os extra-fumadores. O contacto ocupacional com alguns agentes químicos das indústrias automóvel, têxtil e tintas. E o risco genético (por exemplo Síndrome de Lynch) também é relevante.
Qual a prevalência da doença em Portugal? A incidência deste cancro é significativamente maior nos homens do que nas mulheres. A que se deve essa disparidade?
Em Portugal ocorrem cerca de 2000 casos por ano de tumor da bexiga e a grande maioria destes são tumores não metastizados na apresentação. Três em cada quatro, destes tumores ocorrem em homens mas esta diferença de género tem-se vindo a esbater pelo aumento de tabagismo nas mulheres nas últimas décadas. Ainda assim, os homens predominam pelo facto de serem mais fumadores e terem um maior exposição ocupacional. Neste ponto é preciso fazer uma distinção fundamental. Há vários tipos de tumor da bexiga e, como sempre, podemos usar dois vetores para categorizar a doença oncológica: o estádio e o grau.
Cerca de metade dos tumores de bexiga são estádio Ta baixo grau; a outra metade são estádio T1 (ou maior) ou alto grau. Estes último grupo é problemático porque corresponde a doença mais agressiva que implica vigilância apertada. Vai exigir uma combinação de tratamentos a nível local: cirurgia e adjuvância vesical com instilações com medicamentos ou agentes de imunoterapia (o medicamento é introduzido na bexiga por via de uma sonda).
Já o tumor vesical Ta baixo é menos preocupante mas tem tendência para recidivar. De facto, após o primeiro tratamento da doença localizada, apenas 40% dos doentes não necessitam de mais tratamento. Os restantes vão necessitar de pelo menos 2 cirurgias ou tratamento adjuvante.
Assim, do ponto de vista da sua genética e consequentemente do fenótipo existem dois tipos principais de tumor da bexiga: menos agressivo mas recidivante (por vezes com doentes a necessitarem múltiplas intervenções ao longo dos anos); mais agressivo e progressivo (com risco de doença loco-regional ou metastática).
Qual a importância do diagnóstico precoce e quais são os métodos de deteção disponíveis?
À semelhança de todos os outros tumores sólidos, o tumor da bexiga é curável se for tratado cirurgicamente. Mas, só pode ser tratado cirurgicamente se a cirurgia for possível. Assim, é fundamental o diagnóstico numa fase em que essa opção pode ser oferecida ao doente.
Como primeiro método de deteção pode ser utilizada uma ecografia renal e vesical.
A confirmação do tumor implica a realização de uma endoscopia. Endoscopia significa olhar dentro de uma cavidade, o que no caso corresponde à bexiga - daí chamar-se cistoscopia. O segundo exame relevante é a realização de pesquisa de células (citologia urinária) ou genes (marcadores epigenético ou de DNA) na urina.
Como é que a sensibilização e a educação podem prevenir esta doença? O que é preciso fazer ainda nesse aspeto em Portugal?
A medida mais importante é a evição tabagica. Mas também devemos reforçar as medidas de segurança no trabalho de forma a evitar alguns riscos de exposição profissional.
A principal necessidade em Portugal passa pelo reforço de cuidados de saúde primários (especialidade de Medicina Geral e Familiar) e da estrutura hospitalar pública (especialidades de Urologia, Anestesiologia, Oncologia Médica) dado que se pode tornar muito difícil assumir um compromisso de acompanhamento de um doente de tumor da bexiga no contexto privado.
É fundamental deixar claro ao doente que a caminhada do tratamento do tumor da bexiga pode rapidamente exaurir um seguro de saúde seja por tumor menos agressivo mas que pode implicar múltiplas intervenções (a repetição torna-se onerosa), seja por um tumor mais agressivo mas que exige tratamentos complexos e caros logo na primeira abordagem. Falamos de tratamentos superiores 5.000 euros para os casos simples (por exemplo para cada episódio de Ta de baixo grau), e superiores a 100.000 euros para os casos mais complicados (por exemplo para cistectomia com adjuvância com imuno-oncologia).
Todos os médicos que tratam tumores da bexiga reconhecem que o tumor da bexiga é caro de tratar pelo que esta realidade deve expressa ao doente na primeira consulta. Torna-se difícil, se não impossível, ao sistema público acomodar doentes a meio da sua jornada quando ao mesmo tempo se tem de garantir equidade de resposta àqueles doentes que procuraram ajuda dentro do SNS numa primeira abordagem.
Por outro lado, a demora no tempo de primeira consulta, incluindo para o médico de família, faz com que o início deste percurso no SNS seja lento e até perigoso para o doente. São muitas as necessidades e as linhas de abordagem necessárias mas deixo aqui uma ideia-chave: dado que os recursos técnicos para o tratamento do tumor vesical são dominados pela especialidade de Urologia, é crucial manter a retenção de talento jovem na estrutura hospitalar onde o rendimento de tratamento de patologia oncológica é maior do que no contexto privado. Esse maior rendimento do Urologista do SNS deve-se ao facto de haver uma triagem pre-especialidade.
Dito de outra forma, no sistema público, o urologista recebe um doente triado pelo Médico de Família, enquanto que a consulta no privado é aberta à marcação por qualquer pessoa. Essa possibilidade, de marcar diretamente uma consulta para especialidade no sistema privado, cria uma “sensação” de acesso à especialidade. Mas satura a capacidade de trabalho do Urologia no sistema privado pelo simples facto de se perder a oportunidade da consulta de primeira vez não ter sido feita pela especialidade de Medicina Geral e Familiar. Como consequência há um elevado “custo de oportunidade” para a consulta de especialidade de Urologia.
Atualmente a especialidade de Urologia é a que tem maior tempo de espera a nível nacional (nalgumas regiões do país) e isso deve-se à perda de recursos humanos para o sistema privado. Não se deve à existência de poucos urologistas, dado que, nunca fomos tantos como hoje. Para a maioria dos portugueses que ou não têm seguro de saúde ou este tem um plafond médio-baixo, se considerarmos o tratamento da doença oncológica do princípio ao fim, um urologista no sistema privado é um urologista sub-aproveitado.
Se olharmos o sistema privado como o ideal para abordar o início amigável da doença, e deixarmos o público para o complexo e exigente, os nossos decisores terão de ser mais eficazes na criação de estímulo para a retenção de jovens urologistas, que, de outra forma, facilmente, optam por seguir para o sistema privado onde poderão ser melhor premiados com patologia menos complexa. É uma win win situation: no privado têm patologia menos pesada e melhor remuneração porque quando a situação se complica - porque a doença agrava ou o seguro acaba - o SNS acaba por ter de receber o doente, atrasando ou mesmo bloqueando o normal tratamento dos doentes que começaram o seu tratamento no SNS. É uma enorme injustiça para uns e para outros. Porque cada doente complexo exige muito mais recursos que um doente mais simples, inicial. Para o sistema privado é bom porque os doentes mais simples, em fase inicial, têm alta rotatividade e permitem uma atividade mais lucrativa.
Quais são as opções de tratamento para o cancro da bexiga?
O tumor da bexiga é considerado um dos tumores mais caros porque mais de metade dos doentes necessitam de múltiplos tratamentos. O seu percurso é ou recidivante ou progressivo. Para o tumor mais indolente mas recidivante é necessário fazer vigilância e caso ocorra recidiva, nova cirurgia. As cirurgias neste caso são por via endoscópica - resseção transuretral de tumor vesical. Para o tumor agressivo com risco de progressão (por invasão mais profunda das camadas da bexiga) pode ser necessário fazer cirurgias com remoção da bexiga - cistectomia - associados a quimioterapia ou tratamentos de imuno-oncologia.
O tumor da bexiga mata. É uma doença agressiva que importa diagnosticar precocemente. A taxa de cura para a doença com invasão muscular (camadas intermédias da bexiga) ronda os 50%. Na Urologia o tumor da bexiga é o tumor mais perigoso e agressivo.
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