Apesar de ser uma forma de cancro pouco frequente, o cancro do pâncreas é um dos tumores mais mortais: apenas 5 a 8% dos pacientes sobrevivem 5 anos depois do diagnóstico.
Os médicos Pedro Marques da Costa, da direção da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG), e Tato Marinho, presidente da SPG, reuniram e trataram dados oficiais publicados pelo Instituto Nacional Estatística (INE) em colaboração com a Direção-Geral da Saúde (DGS) sobre a mortalidade do cancro do pâncreas.
Entre 1991 e 2015, o número absoluto de mortes por neoplasia do pâncreas duplicou (de 701 mortes em 1991 para 1415 em 2015) tendo já em 2017 ultrapassado as 1500 mortes anuais (1535) o que corresponde a um aumento médio anual de 2,85% durante o período de estudo. Entrevistámos Pedro Marques da Costa.
A mortalidade por cancro do pâncreas aumentou nos últimos 25 anos e prevê-se que aumente mais 50% nas próximas duas décadas. Porquê?
De facto, a mortalidade por neoplasia do pâncreas tem vindo a aumentar consistentemente nos países ocidentais, mas também em várias partes do mundo, de forma muito associada aos índices de desenvolvimento de um país: quanto mais desenvolvido um país, maior a taxa de mortalidade por neoplasia do pâncreas.
Em 2017 ultrapassámos já a fasquia das 1500 mortes anuais (n=1535). Nestes 25 anos (1991-2015) a taxa de mortalidade ajustada à idade (que toma em consideração a variação de tamanho da nossa população e o envelhecimento acentuado que se observou) aumentou também em 22,8%. Isto corresponde, em média, a um aumento anual da taxa de mortalidade ajustada à idade de cerca de 1% (0,91% mais concretamente) o que é inteiramente sobreponível com os dados publicados de outros países como os Estados Unidos da América e a França.
Uma das características associadas à neoplasia do pâncreas é a de tendencialmente se manifestar com sinais e/ou sintomas numa altura tardia e já avançada da doença
Quanto ao futuro, e se a tendência de crescimento se mantiver inalterada, os modelos estatísticos permitem estimar que nas próximas duas décadas, ou seja até 2035, assistiremos a um aumento de 51% do número absoluto de mortes.
Estimando-se que cada morte por neoplasia do pâncreas corresponde, em média, à perda de 11 anos de vida útil.
A que se deve esse aumento da mortalidade global associada ao cancro do pâncreas?
A explicação para estes dados parece residir na elevada prevalência dos principais fatores de risco para o cancro do pâncreas, registada nos países desenvolvidos, como o tabagismo, obesidade, diabetes mellitus e hábitos dietéticos, bem como no envelhecimento da população. Dito isto, não se prevê uma melhoria significativa da prevalência da maioria destes fatores de risco nas próximas décadas. Alguns, por exemplo a obesidade, deverão mesmo aumentar em prevalência no futuro próximo.
Destes, o tabagismo parece ser o mais impactante, atribuindo um risco duas vezes superior e estimando-se ser diretamente responsável por um quarto dos casos de cancro do pâncreas.
Existem outros fatores de risco desta doença?
Potencialmente, o consumo alcoólico e os hábitos dietéticos pobres em vegetais e ricos em carne e gorduras saturadas podem também ser fatores de risco modificáveis no cancro do pâncreas.
Existem também fatores de risco não modificáveis. O mais relevante é a idade avançada (99% dos cancros do pâncreas são registados acima dos 40 anos de idade e o pico de incidência ronda os 75 anos) e portanto, o envelhecimento da população vai constituir um dos principais elementos de risco no futuro. Outro fator de risco é o género masculino, já que os homens apresentam taxas de incidência e mortalidade consistentemente superiores às do sexo oposto. Por fim, pode definir-se ainda um risco familiar (por vezes associado a síndromes genéticos específicos e identificados, outras vezes sem uma mutação identificada e só com uma história de vários cancros do pâncreas na família), mas que no global representa uma percentagem pequena dos casos.
Existe o risco dessa mortalidade continuar a aumentar?
Se nas próximas décadas como até aqui, permanecermos sem impactantes avanços terapêuticos que melhorem consideravelmente a sobrevida desta doença, ao mesmo tempo que a incidência aumenta consistentemente, num futuro próximo poderemos vir a falar do cancro de pâncreas como uma neoplasia frequente, altamente mortal e com um impacto muito negativo sobre a sociedade.
Quais os sintomas mais frequentes? A que sinais estar atento?
Infelizmente, uma das características associadas à neoplasia do pâncreas é a de tendencialmente se manifestar com sinais e/ou sintomas numa altura tardia e já avançada da doença.
Dito isto, os sinais mais frequentes são os associados à obstrução (causada por compressão direta pelo crescimento tumoral) da drenagem de bilis que se faz por um pequeno canal anatómico que vindo do fígado e da vesícula biliar, atravessa uma porção do pâncreas chamada “cabeça do pâncreas”. Assim, mesmo pequenas lesões desta zona do pâncreas podem provocar a obstrução deste canal, impedindo a drenagem da bilis o que produz três sinais característicos: coloração amarelada da peles e dos olhos – chamada icterícia; urina de cor escura como o vinho do porto – chamado colúria; e por vezes também, fezes brancas tipo "maça de vidraceiro" – chamada acolia. A obstrução prolongada pode levar à infeção do canal obstruído e produzir sintomas de febre e mal-estar geral associadas a infeção sistémica grave.
Por outro lado, quando a neoplasia se desenvolve na porção do pâncreas chamada “corpo” ou na “cauda”, a probabilidade de obstruir este canal é diminuta e a tendência é o crescimento da neoplasia promovendo volumosas massas que eventualmente invadem os plexos nervosos locais (estruturas responsáveis pela transmissão de dor). O resultado é um sintoma característico de dor intensa em cinturão (isto é, com irradiação desde a parte anterior do abdómen até às costas) e que só alivia parcialmente com o reclinar do corpo para a frente. Esta dor é também típica dos fenómenos de pancreatite (isto é, de inflamação do pâncreas) o que pode em alguns casos, especialmente acima dos 40 anos, ser uma manifestação inicial de cancro do pâncreas.
A maioria dos casos de cancro do pâncreas manifestam-se inicialmente num estadio avançado e irressecável
Contudo é preciso ser dito que o mais frequente é a pancreatite ser causada por condições benignas como a migração de pedras da vesícula para o referido canal (o que também pode e é frequentemente causa de icterícia) ou o consumo alcoólico.
Mais raramente surgem manifestações chamadas paraneoplásicas ou seja, “à distância” no nosso corpo. O exemplo clássico são os episódios de trombose múltipla de vasos sanguíneos periféricos (ex: veias das pernas) com carácter migratório. Formas raras (e geralmente mais indolentes) de cancro do pâncreas que se desenvolvem em células específicas com função endócrina podem manifestar-se por sintomas metabólicos como níveis muito baixos de glicémia (o açúcar no sangue) ou aparecimento de diarreia.
Finalmente, como em qualquer neoplasia avançada, podem existem manifestações gerais de mal-estar, perda de apetite, perda marcada de peso.
Como é feito o diagnóstico?
É importante referir que atualmente não existe qualquer evidência para a implementação na população geral de uma estratégia de rastreio do cancro do pâncreas, porque a incidência desta neoplasia na população é apesar de tudo baixa e nem o melhor meio de diagnóstico, altamente preciso, poderia tornar rentável e admissível em termos de risco uma estratégia de rastreio. Mesmo em grupos de risco definidos (ex: doentes com síndromes genéticos familiares ou doentes com lesões pré-neoplásicas do pâncreas) é ainda discutível qual a melhor estratégia de vigilância.
Assim, hoje em dia, o diagnóstico de cancro do pâncreas faz-se essencialmente em resposta à presença dos sinais / sintomas que mencionámos. Faz-se com recurso a exames de imagem (ex: ecografia abdominal, tomografia computorizada – TAC) e meios endoscópicos (ecografia por endoscopia; CPRE – uma técnica de endoscopia para aceder às vias biliares) que permitem entre outras coisas a colheita de tecido da neoplasia para exame histológico confirmando a presença e o tipo de células malignas.
Um exemplo de percurso diagnóstico habitual pode ser o doente que se apresenta com icterícia, é observado em contexto de urgência onde realiza uma ecografia abdominal que indica a presença de uma massa no pâncreas obstruindo a via biliar. É então provavelmente internado para realizar uma CPRE que permite aliviar a obstrução e eventualmente colher biópsias de tecido; este exame é complementado com ecografia por endoscopia que permite avaliar a invasão local de estruturas vitais pela neoplasia (essencial para programar uma estratégia cirúrgica) e colher amostras de tecido da massa tumoral. Por fim é geralmente necessária estudar por TAC a invasão local da neoplasia e a presença ou ausência de metástases à distância (ex: fígado e pulmão).
Da conjunção dos resultados destes exames é definido em reunião multidisciplinar (com vários especialistas de várias áreas) o programa de tratamento.
Que tratamentos existem?
O tratamento do cancro do pâncreas é determinado essencialmente pelo estadio da doença, ou seja, pelo grau de invasão local e à distância das células malignas. A invasão de estruturas vitais na proximidade do pâncreas como os vasos sanguíneos que suprem o intestino ou a metastização à distância, podem tornar inviável a opção de ressecar a neoplasia por via cirúrgica. A cirurgia é, atualmente, o único tratamento que oferece uma verdadeira hipótese curativa.
De facto, e como já anteriormente referimos, a maioria dos casos de cancro do pâncreas manifestam-se inicialmente num estadio avançado e irressecável. Estima-se que só 15% dos casos permitam ad initium uma opção cirúrgica. Contudo, os recentes avanços terapêuticos na área da oncologia (quer na quimioterapia convencional associada a radioterapia, quer na chamada imunoterapia e outros fármacos inovadores) tem permitido aumentar, após tratamentos chamados “neoadjuvantes”, essa percentagem de casos operáveis de 15% para perto de 50%. Nos casos irresecáveis ou em que ocorre recorrência da doença após cirurgia, os tratamentos oncológicos de quimioterapia e radioterapia oferecem um prolongamento da sobrevida na tentativa de controlo da progressão local e à distância do tumor.
Em complementaridade, os tratamentos endoscópicos oferecem paliação da sintomatologia. É possível por exemplo manter a drenagem de bílis, evitando a icterícia, com recurso à colocação de pequenas próteses metálicas através de técnicas de CPRE. Outro exemplo será a paliação da dor por técnicas de neurólise (isto é, a destruição controlada das estruturas nervosas responsáveis pela dor) realizadas durante uma ecografia endoscópica.
Comentários