O Mental-Festival da Saúde Mental, Cinema, Artes e Informação é um festival português que visa a discussão pública para diminuir o estigma de um tema cada vez mais falado: a saúde mental.

A Organização Mundial de Saúde afirma que não há saúde sem saúde mental, e essa é a premissa do Mental: lançar o debate sobre a saúde mental e a sua presença no nosso quotidiano, mesmo que não estejamos (ainda) despertos para a temática.

Como plataforma para a discussão e combate ao estigma, o Festival Mental utiliza a cultura - em particular o Cinema e as Artes - com um Festival de Cinema Internacional, produção literária e espetáculos multidisciplinares.

Após uma primeira edição focada nas problemáticas do borderline, alzheimer e alcoolismo (no dia dedicado às dependências), a organização inova este ano com novas temáticas, espectáculos de dança e teatro.

O Mental inaugura a sua segunda edição dia 15 de novembro e realiza-se em Lisboa e no Porto em três locais: Auditório Orlando Ribeiro (inauguração e dias 16,17 e 18 de novembro), Auditório Carlos Paredes (dia 24 e 25 de novembro) e, já no Porto, Auditório Almeida Garrett (dia 30 de novembro). Esquizofrenia, suicídio, ciberdependência e prevenção/promoção para o público infantil, são os temas que vão estar este ano em debate.

Falamos com Ana Pinto Coelho, diretora e curadora do Mental, para sabermos mais sobre o festival e a saúde mental em Portugal.

Como surgiu a ideia de criar um festival dedicado à saúde mental?
Existem na Europa vários Festivais congéneres e há vários anos. Não fazia a mínima ideia desta realidade quando, na Film House em Edimburgo, folheei a agenda daquele mês de outubro de 2016. Deparei-me com uma página de programação do Scottish Mental Health Arts & Film Festival.

Dada toda a minha experiência profissional e de vida, tudo aquilo fazia sentido. Trabalhei muitos anos na área da produção cultural, da comunicação, até resolver tirar o diploma em aconselhamento em adições químicas e de comportamento. Trabalho na área da saúde mental há seis anos, com conselheira em dependências (profissão que não existe por cá).

Pensando no meu país, no estigma enorme e desconhecimento público do que realmente é a saúde Mental, e tendo a certeza de que o que faz sentido é para pôr em prática, decidi que tinha que fazer um Festival assim em Portugal. A ideia não é minha, portanto. Saúde Mental e Artes andam de mãos dadas há muito tempo, sob a forma de Festivais, mundo fora!

O MENTAL tem é um carimbo próprio quando acrescenta a palavra ”Informação”, ou seja, assumir que sem a comunicação (social) nada disto faz sentido. O papel de serviço público tem que ser conjunto, quando queremos derrubar muros tão altos e tão enraizados.

Saúde mental e cultura, como é que cada uma delas complementa a outra neste contexto do festival?
A cultura é a porta da criatividade, do lazer, da excelência para a passagem de conteúdos. Seja quais forem. Existe uma magnitude de possibilidades nas diversas formas artísticas que não acontece com mais nada.

Ao estar num auditório, sala de espectáculos, de cinema, o público imediatamente entra num espaço de Cultura. Todo o mindset muda para a forma como recebe o que lhe for transmitido. Escolheu ver um Festival de Cinema, um espectáculo de dança, uma performance, uma peça de teatro, ler um livro. Aqui todos estes programas vão ser sobre saúde mental, ou seja, sobre pessoas. Sobre nós: o que sentimos, o que passamos e como passamos.

E sobre outros, os que têm histórias absolutamente incríveis, de beleza, superação, força, para contar, como há poucas, porque em saúde mental estamos sempre a falar do que de mais profundo pode existir no Ser Humano. Em diversas formas. A cultura é, por isto, a maior e a mais bonita das portas para a informação pública sobre saúde mental. E a mais eficiente, a meu ver.

Esta é a 2ª edição, como correu a primeira? E que lições retiraram do primeiro festival?
A primeira edição correu surpreendentemente bem. Quando temos como objetivo ver sentada na plateia a sociedade civil e não os profissionais de saúde mental (que já têm há muito os seus próprios circuitos e atividades), e conseguimos isso logo na primeira edição, sei, porque me disseram produtores congéneres de outros países, que é uma vitória. Muitos demoraram anos a ter nas plateias apenas profissionais!

É certo que a aposta é em salas pequenas. E assim nos vamos manter, por enquanto. Contudo o MENTAL vai muito para além das salas, quando investe seriamente na comunicação, articulada com a sua programação. Daí a importância enorme dos nossos media partners, e do enorme trabalho que temos que fazer para conseguir chegar aos média que ainda nos respondem que “não queremos apoiar esse Festival no nosso canal, porque esse tema não dispõe bem os ouvintes”. Estão claramente mal informados e claramente estigmatizados até à medula.

Aprendemos, portanto e também, que continuamos a ter um longo caminho a percorrer.

Num futuro, este tipo de pensamento passará para um livro de anedotas de mau gosto: por enquanto temos de viver um dia de cada vez, passo a passo, porque pessoas sem informação só podem pensar assim. Não lhes atribuo culpa nem lhes faço juízos. Vamos esperar, caminhando serenamente. É para eles que trabalhamos, também.

Esquizofrenia, suicídio, ciberdependência e prevenção/promoção para o público infantil, são os temas que vão estar este ano em debate. Pode adiantar como é que cada tema vai ser abordado no festival?
Cada tema é abordado no formato do Mental, ou seja, através das nossas M-Talks. As M-Talks são constituídas por oradores especialistas em cada tema, moderadas por jornalistas de excelência, de forma a que, mais uma vez, a comunicação chegue ao público sob uma forma imediata e aberta. Nada de discursos académicos, nada de elitismos. E cada orador sabe que o tema que é falado tem como base um filme – o “Filme da Noite” - e discute-se a temática nesse contexto. Portanto, é o cinema que serve a conversa.

O jornalista/moderador, tem mais uma vez um papel fundamental, que é fazer a ponte com o público, tanto em termos de discurso “permitido” (não deixar resvalar para o técnico ou académico), como de integrar a participação do público. No ano passados as perguntas do público foram imensas! O difícil foi cumprir o horário estipulado. Há, de facto, muito para falar e discutir!

As dependências e a prevenção/promoção para as crianças são temas âncora do MENTAL, ou temas “residentes”. Em 2017 nas dependências conversámos sobre alcoolismo, este ano será a ciberdependência (englobando internet, smartphone addiction, solidão, cibersexo, ciberjogo, etc).

As M-Talks passam depois para o nosso canal no Youtube, par poderem ficar como registo e como serviço público, para todos. Incluindo além fronteiras, pois serão mais para a frente, todas legendadas em inglês. O estigma corre nas veias de toda a Europa – e Mundo. Se o que aqui for dito ajudar alguém, seja onde for, estamos a cumprir o papel que queremos.

A saúde mental continua a ser um estigma?
Tanto aqui como pelo mundo fora. Se lhe contasse alguns comentários que ouço às vezes em relação ao MENTAL, não iria acreditar!

Neste encontro com as pessoas, através do cinema e das artes do espetáculo, o que vai acontecer é um despertar óbvio. É esse despertar, esse novo olhar, esse mindset informado que vai mudar totalmente mentalidades. De pessoas crivadas de estigma, passamos a ter pessoas informadas, serenas, capazes de entender o que se passa com elas em vez de fugirem para o café para maldizer o mundo.

Vai demorar, sobretudo em Portugal, onde nos confrontamos ainda com graves problemas de mentalidade – refutados, ainda por cima, o que significa que nos debatemos com mecanismos de defesa bem ativos! Acredito também que o Programa Nacional para a Saúde Mental está a desenvolver um grande esforço para fazer a sua parte neste processo.

O que falta fazer em Portugal ao nível da Saúde Mental junto dos cidadãos (no sentido de desmistificar)?
Será fantástico conseguir ter o Festival Mental a circular pelo país, em forma de tournée. Ano inteiro, por todas as capitais de distrito e não só. O objectivo é ir para o terreno, junto das pessoas. É preciso que haja um financiamento que está muito longe do necessário. Quer para nós, quer para quem pode governamentalmente mudar políticas na saúde mental. Acredito que claramente esta não é uma prioridade nem política, nem social, nem económica. Sem investimento a sério, é muito difícil fazer um trabalho à altura das verdadeiras necessidades do país.

Continuamos no “pequenino” e “pobrezinho”, envoltos nos discursos das “solidariedades” e nada é mais perigoso. A Saúde Mental tem que ter apostas fortes, convictas, com atitude e sem olhar para o lado. A sociedade está a sofrer, anda doente (se olharmos em perspectiva, é muito fácil perceber, basta ver, por exemplo, o comportamento agressivo com que as pessoas comunicam, ou discutem, nas redes sociais…).

Comparo Portugal, nesta matéria de investimento em Saúde Mental, com outros países e fico embaraçada. Aqui tem-se vergonha em falar de dinheiro. Parece que todos têm obrigação de trabalhar pro-bono, nesta matéria. É inacreditável. Sem investimento não se vai conseguir fazer esse trabalho de forma consistente.

Os jovens estão cada vez mais vulneráveis às ciberdependências. Sendo um quadro recente, estamos preparados para lidar com elas (contexto hospitalar e médico)?
Não é um quadro assim tão recente! E tenho a certeza que não estamos preparados. A ciberdependência é uma dependência comportamental, como tantas outras. Inscreve-se no quadro clínico da adições (do ponto de vista de vários profissionais da saúde, no qual me incluo).

Acredito, como conselheira em dependências, no papel da terapia e aconselhamento específico. Não país evoluído (ou dito evoluído) que não tenha counselling em todas as escolas, universidades, até prisões. E consultórios, associações profissionais, … Toda uma intervenção a este nível que em Portugal está completamente bloqueada e até boicotada.

O interesse dos que sofrem da doença da adição (até aqui, já há profissionais a discutir o óbvio), não está, de forma alguma salvaguardado. Há lobbies, há quintais, e as coisas não podem avançar assim. Afinal, um problema muito típico em Portugal, não só neste setor!

Contudo, os doentes são cada vez mais. E não devemos associar a ciberdependência apenas aos jovens. É algo muito errado. Há uma grande quantidade de adultos dependentes do ciberjogo e do cibersexo (porque ficam em casa e a questão da vergonha ou pudor deixa de se pôr, quando se está à distância de um clique), e também dos smartphones. O problema é bem maior e mais generalizado do que se pensa e fala. E há uma lacuna enorme no nosso sistema de saúde para responder a isto. Sem dúvida nenhuma. E não acredito que esteja presente numa qualquer agenda política.

Os jovens também vão a este festival?
Totalmente. A edição deste ano ainda mais do que a anterior! Basta verificar a programação, entre a programação de cinema, os espetáculos e as M-talks, é um festival totalmente para os jovens.