Filipe, Catarina e o filho de ambos, o Guilherme, vão dar a volta ao mundo a partir de março. "Será um ano de aventura", garantem. Mas Filipe é insuficiente renal e tem de fazer hemodiálise três vezes por semana, sete horas por noite. Sofre de Nefropatia por IgA, uma doença renal progressiva e sem cura.

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"Temos uma forma de ver a vida diferente de muitas pessoas e somos gratos pelo que somos e pelo que temos. Lamentar as adversidades nunca foi o nosso forte. Preferimos usar os nossos exemplos para inspirar e ajudar outras pessoas a nunca desistir. Acreditamos que cada um pode ser e fazer o que quiser", começa por dizer Catarina.

Há dois anos, Catarina e Filipe perderam um bebé, o Francisco, ao fim de cinco meses de gravidez. Não desistiram e dois meses depois, o Guilherme já crescia na barriga da mãe. Eles nunca desistem. "Tínhamos medo de pôr em palavras aquilo que o nosso coração nos perguntava diariamente: quando os rins decidirem parar, a vida do Filipe para também? Um, tinha medo de morrer. O outro, tinha medo de perder o amor da sua vida", resume Catarina o que dificilmente se resume em palavras.

A doença não tem de ser o fim de nada e pode, sim, ser o início de muitas coisas boas

"Procurámos vários especialistas e compreendemos o papel da diálise nestes casos. Diziam-nos que perto dos 40 anos os rins poderiam começar a falhar. Falharam antes, bem antes e, a uma semana do Guilherme nascer, o corpo do Filipe precisou do primeiro tratamento. Ele vive, porque tem uma máquina que assim o permite. Induzimos o parto para garantir que o Filipe estaria presente num momento tão importante para as nossas vidas", recorda Catarina.

Veja algumas fotos das viagens

Catarina deixa para trás um trabalho de 10 anos. O Filipe, guia turístico há três anos, encostou o Tuk Tuk. Venderam a casa e decidiram "partir à aventura". "Por nós e por todos aqueles que precisam do nosso exemplo para voltarem a viver. Queremos mostrar que é possível viajar com crianças pequenas. Queremos mostrar que, mesmo que a nossa empresa seja perfeita, nunca é demasiado perfeita para deixarmos de correr atrás dos nossos sonhos", assevera Catarina.

Filipe, como é viajar e estar dependente de um tratamento médico?

É sempre um desafio, mas não quis deixar que a vida que tinha anteriormente fosse limitada pela doença. Tenho de ter uma preparação que não tinha. Agora não é só viajar, antes tem de ser feito "o trabalho de casa" para garantir que as clínicas estão disponíveis para nos receber e tem de ser tudo muito bem planeado.

Não posso faltar a um tratamento nem atrasá-lo pois isso pode comprometer a minha saúde e até a minha vida. Diariamente, e já em viagem, o mais complicado é gerir a parte de visitar o país já no terreno tendo em conta que, pelo menos, metade do meu dia é passado na clínica, em tratamento. Uma semana de viagem traduz-se em quase metade desse tempo. Os custos associados aos tratamentos são outro desafio. Se viajar para fora da Europa os tratamentos têm o valor, em média, de 250 euros, o que acaba por se tornar limitador quando planeamos viajar para alguns destinos.

Filipe faz hemodiálise três vezes por semana. Mas isso não o impede de dar a volta ao mundo
Filipe durante um tratamento de hemodiálise créditos: All Aboard Family

Sempre gostou de viajar... Como foi ter o diagnóstico?

Viajar permite-nos crescer pessoal, social e culturalmente. Nunca esteve fora dos meus planos deixar de fazê-lo. É algo que me completa a mim e à minha família por ser, também, um escape à rotina. O diagnóstico veio, inicialmente, criar frustração por querer viajar e acreditar que já não era possível.

Não existe muita informação sobre como é viajar tendo esta ou outras limitações. Depois de ler muito e de me informar com todos os especialistas que me foram acompanhando, fui percebendo que era algo que não seria impossível e aí foi mais simples lidar com o diagnóstico. O facto de ter sido pai há pouco tempo também me obrigou a focar-me na vida e menos na doença.

Em Toronto, paguei o maior valor por tratamento que alguma vez paguei na vida e foi a pior clínica onde estive

Sente receio cada vez que entra num avião?

Existem sempre receios e medos associados. Afinal, se algo falhar, posso estar a colocar a minha vida em risco e prefiro não pensar muito nisso. Acredito sempre que tudo vai correr bem e, antes de viajar, garanto também que as clínicas para onde vou têm as condições certas para nos receber. Existem também dias em que não viajo para, no caso de existirem atrasos nos voos, para não comprometer os meus tratamentos.

A sua doença permite-lhe ter contacto com sistemas de saúde do mundo inteiro. Há alguma comparação inevitável que queira fazer?

Ao contrário do que pensava, os países menos desenvolvidos foram onde encontrei as melhores condições ao nível de clínicas. Tinha receio do que ia encontrar em Bali apesar de ter visto muitas fotos da clínica antes de lá chegar. Foram muito atenciosos, cuidadosos, a clínica era extremamente limpa e com máquinas de hemodiálise bastante boas. Os enfermeiros e médicos eram excelentes profissionais e estavam sempre comigo a perguntar como me sentia e se estava tudo bem. Já em Toronto, paguei o maior valor por tratamento que alguma vez paguei na vida e foi a pior clínica onde estive. Apenas tinha um enfermeiro, eu era o único paciente e a forma como a clínica estava organizada fazia-me acreditar que era uma clínica que existia apenas para ser utilizada em situações pontuais. Isso não quer dizer que o trabalho do enfermeiro não tenha sido o correto, contudo, pelo valor pago, os tratamentos e a clínica não corresponderam às condições mínimas.

Mas isso não vos impede de continuar a viajar. Durante um ano, não é? Que projeto é este?

O All Aboard Family (@allaboardfamily no Instagram) foi criado por um conjunto de histórias. Somos três em casa e todos nós contamos uma história diferente. Eu sempre fui muito aventureiro e nunca me fez qualquer confusão viver longe da minha família e amigos (apesar de os adorar e de saber que vou ter muitas saudades). Já a Catarina, minha mulher, sempre precisou de ter uma casa e uma família lá dentro. Sempre foi muito apegada aos pais e custava-lhe muito pensar como seria viver longe e sem o apoio deles. Trabalhou 10 anos num serviço de apoio ao cliente, numa multinacional, e como era um emprego que gostava nunca pensou em sair dele. Eu chateava-a muito para embarcarmos numa aventura, fosse ela dar a volta ao mundo ou ir viver para Bali. Um dia a Catarina chegou a casa, muito chateada com o trabalho depois de um dia mau, e disse-me que queria dar a volta ao mundo. Nesse dia fui comprar um mapa e começámos a planear tudo para vermos se seria possível ou não.

Vendemos tudo, a casa, o recheio da casa, o Tuk Tuk

Não têm medo de "deixar tudo"?

Não. Todos sabemos que existe um receio associado aos pais quando se fala em viajar com crianças. Ora surge o tema da saúde, ora surge o tema da comida ou até mesmo do dinheiro. Vamos querer desmistificar isso e ajudar os pais a planificar e a verem, por experiência própria, que é algo que tem tudo para correr bem e que só faz bem a todos. Por outro lado, ao ínicio, questionei muito se seria possível viajar sendo insuficiente renal. Agora que descobri que se pode planificar tudo, quero partilhar com outras pessoas com a mesma condição, ou idêntica. A doença não tem de ser o fim de nada e pode, sim, ser o início de muitas coisas boas. Além disso, a história da Catarina se ter despedido ajuda outras pessoas a procurar os seus sonhos e a não ter medo de deixar tudo para trás, seja um trabalho que adorem, como ela, ou um trabalho que não gostam mas que, como é garantido, vão ficando. Vendemos tudo, a casa, o recheio da casa, o Tuk Tuk e procuramos também alguns parceiros que se queiram associar à nossa aventura para nos ajudar a torná-la real.

Filipe faz hemodiálise três vezes por semana. Mas isso não o impede de dar a volta ao mundo
A família em Bali créditos: All Aboard Family

Que países já visitaram?

Em hemodiálise já visitei a Alemanha, República Checa, Itália, Indonésia, Singapura, Estados Unidos da América e Canadá.

Quais os próximos destinos?

Vamos começar pelas Bahamas, Cuba e México. Mas já temos planos para o ano inteiro. Queremos visitar países como a Jordânia, Israel, Austrália, Nova Zelândia, voltar à Indonésia entre outros tantos dentro e fora da Europa.

É fácil viajar com uma criança pequena? 

Até aos dois anos não se paga voos nem hotéis e aproveitamos esse fator para viajar o máximo possível com o Guilherme. Ele dorme e come bastante bem por isso nunca foi uma questão. Nos dois primeiros dias nos locais onde os horários são muito diferentes de Portugal, o Guilherme acaba por acordar sempre por volta das 04h00 mas nós também. Nos dias seguintes já está super adaptado e tem uma rotina idêntica à que tem em casa, mas menos rígida. Neste momento também não existem a obrigatoriedade de estar na escola logo nós pensamos muitas vezes se existirá melhor escolar que o Mundo…

Mas e quando ele for mais crescido?

Quando o Guilherme tiver a idade certa para as salas de aula não o iremos privar disso por compreendermos que é algo fulcral para o seu desenvolvimento. Ao nível da saúde, o Guilherme tem uma pediatra bastante presente e disponível. Além de nos aconselhar antes de qualquer viagem, também nos esclarece durante a viagem caso precisemos. Levamos sempre uma farmácia na mala com todos os medicamentos (incluindo antibióticos) que possa vir a precisar. Não achamos que seja difícil viajar com crianças, contudo é diferente de viajar a dois. Temos de pensar que também temos de respeitar o espaço deles, então procuramos viagens que sejam boas para todos.

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Quais são as limitações?

Não podemos ficar o dia todo numa praia, por exemplo, mas também é algo que não gostamos muito de fazer. Preferimos andar o dia todo a passear e o Guilherme acaba sempre por dormir as sestas no carrinho que levamos connosco. É algo que flui muito bem e a rotina é a mesma daquela que temos se viajarmos para dentro de Portugal.

Já viajaram por vários países. Sente que já fez muitas conquistas pessoais?

Muitas mesmo, para todos nós. Jamais pensaria estar a desenvolver um projeto destes com a minha família. Nunca pensei que a Catarina se conseguisse despedir e enfrentar de uma forma tão bonita todos aqueles que se atravessaram a dizer que não era boa ideia. Respeitou todas as opiniões e, em nenhum momento, recuou. Cresceu muito enquanto pessoa com todo este processo e pensa agora mais nela do que naquilo que poderá ferir susceptibilidades. Eu consegui enfrentar uma doença. Nunca pensei conseguir fazê-lo de forma tão positiva e ainda tornar a minha experiência em algo bom para ajudar outras pessoas. Tivemos alguns "não", tivemos muitos "sim", mas ainda precisamos de apoios e de parcerias que nos consigam ajudar em todo o projeto que, acreditamos, ser bastante bom para todos. Daqui a um ano seremos pessoas melhores, temos a certeza.