Formado por bactérias, fungos, vírus e protozoários, o microbioma humano é fator determinante para a nossa saúde e bem-estar. “Estas bactérias e outros microrganismos constituem cerca de um a dois quilos do nosso peso corporal, são dez vezes mais do que as células que nos constituem”, sublinha Alexandra Vasconcelos, farmacêutica, naturopata e especialista em medicina biológica integrativa, na abertura da conversa que mantemos tendo como mote o seu livro As Bactérias que Nos Curam (edição Planeta).
A forma como vivemos, nos alimentamos e nos relacionamos com o ambiente permite o crescimento e manutenção destes microrganismos que alteram, influenciam e ludibriam o nosso sistema imunitário. “Bichos” que são, simultaneamente aliados imprescindíveis da nossa saúde. Em suma, estas bactérias podem curar-nos como nos explica Alexandra Vasconcelos, apontando-nos os caminhos para, em pouco tempo, alterar e equilibrar o nosso microbioma.
Uma conversa que viaja até às etapas primeiras da vida - “Hoje, sabemos que o contacto com boas bactérias se faz ainda dentro do útero da mãe” – e também às idades mais maduras: “à medida que envelhecemos torna-se ainda mais importante alimentar convenientemente o nosso microbioma e reduzir tudo o que o possa debilitar”. Oportunidade, ainda, para perceber como bem cuidar do intestino, especialmente o cólon, órgão que concentra mais de 90% do microbioma.
Alexandra Vasconcelos, lisboeta, nascida em 1965, licenciou-se em Ciências Farmacêuticas na Universidade de Lisboa. Entretanto, iniciou estudos em terapias complementares, naturais e biológicas. Desde 2007, dirige as áreas de terapias não convencionais das Clínicas Viver. É autora de vários livros na área da saúde e envelhecimento saudável, nomeadamente O Poder do Jejum Intermitente e O Segredo Para se Manter Jovem e Saudável.
Diz-nos na introdução que faz ao seu livro ser este o seu maior desafio. Porquê?
Foi mesmo o livro mais desafiante que escrevi. Para além do tema ser recente e muito vasto, é também assustador a quantidade de estudos e trabalhos com informações muito relevantes que são publicados quase diariamente.
A identificação da função dos microbioma bem como a correlação de défices ou excesso de determinadas bactérias com doenças é um tema que está a ser cada vez mais estudado e que suscita muito interesse no meio da comunidade científica.
Este mundo secreto que vive dentro de nós ainda é muito desconhecido; acreditamos que faltam atribuir muitas funções a bactérias já identificadas, para além de existirem outros organismos que não sabemos que existem nem qual o seu papel. Em todos os meus livros pauto-me por transmitir as informações com rigor científico e, por outro lado, de forma a poder transmitir da forma mais simples ao meus leitores factos e conceitos validados cientificamente e, assim poderem usufruir de muita informação em prol da sua saúde.
Ao lermos o seu livro somos confrontados com números surpreendentes relacionados com o nosso microbioma. Como o podemos definir e que seres o constituem?
O microbioma é o conjunto das bactérias e outros microrganismos que vivem no nosso corpo e que tem funções inacreditáveis na nossa saúde. Eles constituem cerca de um a dois quilos do nosso peso corporal, são dez vezes mais do que as células que nos constituem e o seu material genético é cem vezes superior ao dos nossos genes. Resumidamente, somos apenas 10%, sendo os restantes 90% microbioma. Estas bactérias assumem funções muito importantes como imunitárias, neuromodulação, produção de substâncias, como neurotransmissores (hormonas que regulam o nosso bem-estar, humor, sono, irritabilidade, fome etc.), vitaminas e outras substâncias como os ácidos gordos de cadeia curta que tem variadíssimas ações benéficas, nomeadamente anti-inflamatória e anticancerígena.
Uma outra função importante das bactérias que compõem o microbioma é a regulação da estabilidade das mucosas, onde encontramos tecido linfoide imunitário. A mucosa intestinal, por exemplo, concentra 80 a 90% do nosso sistema imunitário. O microbioma desempenha assim um papel importante na nossa proteção, pois são as bactérias benéficas que detêm o crescimento de bactérias e outros organismos que nos provocam doenças. As defensinas, pequenas proteínas produzidas por células intestinais e ativas contra bactérias, fungos e vírus envelopados. Quando não há combate aos patógenos intestinais, estes conseguem penetrar na circulação sanguínea, migrando pelo corpo, até atingirem várias partes dele.
Se queremos ser saudáveis, não há dúvida de que este equilíbrio é fundamental. Sabemos que em muitas doenças (tanto agudas como crónicas) existe um sobrecrescimento de microrganismos patogénicos. Sobre este tema, partilho a minha experiência no último capítulo do livro. É importante entender que estes organismos devem existir de forma equilibrada e a proporção entre as várias cepas deve ser mantida. O microbioma (microrganismos e os seus genes) é já considerado um órgão.
O microbioma é o conjunto das bactérias e outros microrganismos que vivem no nosso corpo e que tem funções inacreditáveis na nossa saúde.
De que forma se relaciona o microbioma com o nosso bem-estar?
Atendendo a que muitas substâncias que regulam a nossa atividade metabólica, neurológica, psicológica e imunitária são produzidas pelas bactérias intestinais, é fácil entender que, se estas não existirem em quantidade e variedade necessárias, vamos ter desregulações de toda a ordem.
Estes seres que silenciosamente vivem dentro de nós controlam a nossa saúde, bem-estar, o nosso comportamento e condutas, para além das substâncias por eles produzidas poderem assumir um papel epigenético importante, ou seja, determinam ou não a expressão dos nossos genes associados a doenças.
Já é conhecida a composição do microbioma em pessoas com doenças e/ou desequilíbrios, apresentando muitas diferenças qualitativas e quantitativas relativamente ao microbioma de pessoas saudáveis.
O nosso comportamento/estilo de vida afeta positiva e negativamente o microbioma? Pode dar-nos alguns exemplos?
Seguramente que o ambiente constitui um dos grandes agressores do nosso microbioma. Para alem da alimentação, outros fatores como a exposição excessiva aos variados tóxicos que existem nos produtos que comemos, de higiene, que usamos na indústria, no ar, os medicamentos, amálgamas dentárias, e tantos outros, vão contribuindo para a debilidade progressiva destas bactérias benéficas e muitas vezes dão lugar ao crescimento de outras que estão associadas a efeitos prejudicais.
Dormir mal, viver sempre em stress, ser sedentário, pessimista, conflituoso são modos de estar e estilos de vida que não contribuem em nada para a saúde do microbioma. Tudo isto explico no meu livro, bem como oriento com dicas práticas de forma a poder ir melhorando todos estes aspetos.
Refere no seu livro que há fatores externos que afetam o microbioma. Temos controlo sobre estes de forma a minimizar as agressões?
Sim, claro. Passa por uma consciencialização e convicção da importância da mudança. A gestão emocional é muito importante e fundamental neste processo. Geneticamente nenhuma pessoa é dotada de defesas exaustivas e permanentes para conflitos e bloqueios emocionais, bem como suportar stress crónico ou noites sem dormir. Estou mesmo convicta de que estas bactérias que nos curam não gostam nada deste terreno [ambiente do corpo] que existe nas pessoas que vivem desta forma. É importante mudar a alimentação, mas o mindset é fundamental, até para querer adotar novos hábitos. À mediada que o microbioma fica mais equilibrado, os nossos comportamentos, ansiedade, fome, tranquilidade e determinação nas escolhas do dia a dia são também regulados. No meu novo livro As bactérias que Nos Curam explico como podemos reduzir a exposição a todos estes fatores agressores do nosso intestino, mucosas e microbioma que inevitavelmente conduzirão a debilidade imunitária e a doenças crónicas.
Dormir mal, viver sempre em stress, ser sedentário, pessimista, conflituoso são modos de estar e estilos de vida que não contribuem em nada para a saúde do microbioma.
O microbioma humano é anterior ao nascimento do bebé, ainda ao período da gestação?
A colonização pelas primeiras cepas é feita durante a gestação. Até há bem pouco tempo, pensava-se que o útero era estéril e a colonização do bebé se fazia na altura do nascimento. Hoje, sabemos que o contacto com boas bactérias se faz ainda dentro do útero da mãe. Por isso, o microbioma da mãe é tão importante e contribuirá definitivamente para a composição das microbiotas do bebé durante a sua vida. O parto pélvico, bem como a amamentação são formas necessárias para uma microbiota saudável. O bebé herda as bactérias benéficas da mãe através da passagem no canal vaginal. O leite materno é o melhor alimento do mundo, extremamente rico em tudo o que o bebé necessita, nomeadamente bactérias importantes, como os Lactobacillus, Staphylococcus, Enterococcus e Bifidobacterium.
Que aspetos devem cuidar os pais para favorecer o bom funcionamento do microbioma do bebé e mais tarde da criança de tenra idade?
Como já referi, o parto pélvico vaginal, a amamentação, a alimentação e o controlo no uso de excesso de medicamentos são fundamentais e determinam a saúde do bebé no futuro. A qualidade do microbioma da mãe obviamente que irá influenciar tudo, por esta razão é importante as mulheres pensarem numa abordagem integrativa com apoio de profissionais especializados, ainda na fase da pré-conceção.
A alimentação, redução de substâncias tóxicas, bem como o uso de medicamentos apenas quando estritamente necessário, prática de exercício, qualidade do sono, redução do stress, são algumas medidas que a mãe deve adotar mesmo antes de engravidar. No meu novo livro o leitor pode consultar uma série de medidas que deverão ser adotadas por quem está a pensar em engravidar.
Quais são as principais transformações no microbioma à medida que envelhecemos?
À medida que envelhecemos o nosso microbioma também vai ficando mais pobre e vai perdendo atividade e especificidade. Perdemos bactérias que compõem grupos funcionais importantes, para além de haver uma grande redução na qualidade e quantidade do microbioma. Neste sentido, à medida que envelhecemos torna-se ainda mais importante alimentar convenientemente o nosso microbioma e reduzir tudo o que o possa debilitar. Durante a vida o corpo vai dando diversos sinais, que muitas vezes desprezamos ou não os sabemos interpretar, por isso, deve ficar mais atento. Ao longo do livro, chamo diversas vezes a atenção para este aspeto e apresento dicas simples para cada situação.
Alterações específicas do microbioma estão já correlacionadas com diversas doenças. Por esta razão e por achar muito útil, no fim do livro apresento uma tabela com estas relações de forma que todos saibamos quais as bactérias que podemos suplementar sob a forma de probióticos, correlacionados com o nosso problema de saúde ou queixas. Por exemplo, pessoas com infeções urinárias de repetição ou candidíase crónicas apresentam défices na microbiota muito específicas que, se corrigidos, contribuem de forma eficaz para o controlo deste tipo de infeções. Cada vez mais o conceito é matar menos, usando menos antibióticos e outras substâncias químicas para o efeito, mas pelo contrário focar no reforço das bactérias que nos defendem e focar nas causas que permitiram essa infeção.
À medida que envelhecemos o nosso microbioma também vai ficando mais pobre e vai perdendo atividade e especificidade.
Refere os microrganismos patogénicos que vivem dentro de nós. Quais as doenças que podemos associar diretamente a estes microrganismos?
Este é o nosso grande desafio. Muitas revisões sistemáticas apontam para a relação de uma série de doenças crónicas como cancros, doenças autoimunes, degenerativas do sistema nervos, cardiovasculares, com a presença de disbiose e de alguns microrganismos patogénicos que influenciam e desviam o padrão normal da nossa defesa imunitária. Maioritariamente, estes microrganismos, nomeadamente vírus e algumas bactérias, desregulam a nossa resposta imunitária por diversos mecanismos e estão na origem de uma série de doenças. A quase todas as doenças autoimunes já se relaciona uma possível reativação viral ou alguma bactéria patogénica que induz produção de anticorpos. Muitos destes organismos têm no seu material genético sequências de nucleótidos similares ao complexo de histocompatibilidade que existe no cromossoma 6 do nosso DNA. Por mimetismo molecular entre os “bichos” e partes do nosso corpo, o nosso sistema imunitário que se encarrega de nos defender, acaba por atacar estas partes do corpo.
A solução passa por identificar e controlar estes microrganismos patogénicos, reforçando o nosso microbioma e sistema imunitário de forma a não permitir cargas exageradas de microrganismos patogénicos. Apesar de faltar ainda muita evidência e estudos que identifiquem os mecanismos pelos quais estas reações cruzadas ocorrem, temos de estar atentos e identificar estas situações em doentes crónicos ou mesmo em pessoas cujo estado de vitalidade é repentinamente e inexplicavelmente alterado.
O seu livro dá uma especial atenção ao microbioma intestinal. Porquê?
O intestino, especialmente o cólon, concentra mais de 90% do microbioma e é onde existe maior diversidade de microrganismos. Por outro lado, o intestino dispõe de um sistema nervoso entérico próprio, tendo por isso uma estreita relação com o cérebro. Já falei, mas nunca é demais repetir que 80 a 90% do nosso sistema imunitário está no intestino, e é aqui que existe maior concentração de células imunocompetentes do corpo humano.
A grande maioria das pessoas tem problemas intestinais que muitas vezes se manifestam fora do intestino como eczemas, asmas, alergias, depressão, ansiedade, debilidade imunitária, obesidade, entre tantos outros.
Por estas razões, acredito que as doenças começam no intestino e por isso lhe dedico mais atenção.
O sistema imunitário está no intestino e, por isso, o microbioma é determinante para uma boa resposta imunitária e manutenção do terreno.
Não destitui o microbioma intestinal da questão da imunidade, relaciona-o, por exemplo, com a longa COVID. O leigo pode não fazer essa associação direta. Pode explicar-nos?
O sistema imunitário está no intestino e, por isso, o microbioma é determinante para uma boa resposta imunitária e manutenção do terreno (ambiente do corpo) equilibrado de forma que microrganismos patogénicos, como os vírus, não se multipliquem demasiadamente e que o sistema imunitário nos possa defender rápida e corretamente.
Uma das conclusões que tiramos desta pandemia, é indubitavelmente o conceito de terreno. Verificamos que pessoas com terreno biológico equilibrado não apresentam sinais severos de COVID nem tão pouco longa COVID-19. Tal como o nosso microbioma, muitas vezes o terreno está silenciosamente desequilibrado. Inflamação silenciosa de baixo grau, oxidação, alterações de pH, grau de toxicidade, desequilibram o terreno e numa fase inicial são situações silenciosas. A infeção por SarsCov2 vem evidenciar e exacerbar muitos compromissos já existentes no terreno.
Todos os estudos mostram que pessoas que desenvolvem COVID severo ou longa COVID têm alterações intestinais, nomeadamente disbiose [desequilíbrio da flora intestinal], inflamação silenciosa das mucosas - pulmonar, intestinal entre outras - com alteração da sua própria permeabilidade, efeito barreira e resposta imunitária.
Há alimentos proibidos quando a questão é cuidar de uma microbiótica saudável?
Há alimentos que infelizmente enchem os nossos supermercados que são verdadeiras balas para as bactérias que nos curam. Chamo sempre a atenção que muitas vezes o problema não é o alimento, mas a forma como a indústria alimentar o apresenta e os aditivos que incluem na forma como são apresentados.
A alimentação moderna, reúne excesso de proteína, açúcares e outros alimentos refinados, os fritos, que vão alimentar e dar força a bactérias que não devem dominar este ecossistema intestinal.
Em sentido contrário, que alimentos devemos ingerir?
Legumes, frutas, fermentados, fibras, entre muitos outros que apresento detalhadamente no meu livro, bem como uma série de ideias e receitas para poder tirar o melhor partidos dos alimentos top para o seu intestino e microbioma.
Quer, sucintamente, explicar-nos os princípios que norteiam o plano de 14 dias que nos apresenta para equilibrar o microbioma e reforçar o sistema imunitário?
Como qualquer programa de saneamento ou recuperação, é necessário primeiro limpar, reparar e depois regenerar. Estas são as fases do programa BioReset 21d® que agora apresento mais dirigido para saneamento e equilíbrio intestinais. Este programa surgiu em consequência do Bioreset 21d® já publicado anteriormente no meu livro Jovem e saudável em 21 dias.
Nestes 14 dias são dadas indicações fáceis, práticas e úteis para ter um intestino saudável, que equilibram e reforçam o microbioma de forma que estas bactérias possam assumir um papel determinante nas suas saúde e envelhecimento saudáveis.
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