Porquê estudar o parasita que causa a doença do sono?
O encontro com os parasitas aconteceu, por acaso, em Londres durante o meu Erasmus no Imperial College. Foi na disciplina de Parasitologia Molecular. Foi aí que percebi que todos os parasitas, vírus e micróbios são microrganismos que, apesar de muito simples, têm estratégias fantásticas para nos infetarem. Achei essas estratégias interessantes e pensei logo em fazer um Doutoramento para saber mais. O primeiro parasita que eu estudei foi o da malária e esse acabou por ser o âmbito do meu doutoramento em Paris, no Instituto Pasteur. Depois mudei de parasita e fui estudar em Nova Iorque, na Universidade de Rockefeller, o parasita que causa a doença do sono.
Que doença é esta?
Esta doença transmite-se apenas em África, na zona subsaariana, porque o agente que transmite a doença é a mosca tsé-tsé que só existe neste continente. A doença é fatal. Se as pessoas não forem tratadas, morrem. Mas felizmente existem fármacos que juntamente com campanhas de saúde pública permitem-nos julgar que a doença seja eliminada como um problema de saúde grave nos próximos anos. Era para ser em 2021, mas a pandemia atual atrasou essa meta. Neste momento a doença está muito controlada em humanos. No entanto, este parasita também provoca doença veterinária e aí a situação é mais difícil. Os fármacos não são muito bons e isso tem um impacto brutal na pecuária e agricultura, porque não há animais para ajudarem nas técnicas agrícolas. Nestas regiões, as populações têm dificuldades de subsistência e são muito pobres. Portanto, a doença veterinária é aquela que mais nos preocupa neste momento.
O que gostaríamos de fazer no futuro era identificar essas moléculas, saber como funcionam e talvez utilizá-las como uma forma de ajudar as pessoas a perder peso
Como é que este parasita sobrevive no corpo humano?
O parasita aloja-se no sangue e também vive em órgãos, como o cérebro, daí ficarmos com problemas de sono. Nós estudámos como o parasita consegue sobreviver em humanos e animais e vencer os seus sistemas imunitários... A nossa dúvida prende-se com as estratégias que ele utiliza para prender-se ao organismo. Temos várias abordagens. Uma mais clássica que tenta perceber como é que o parasita engana o sistema imunitário, ou seja, o parasita disfarça-se e as defesas deixam de o reconhecer. Isso permite que o parasita viva muito tempo. Por outro lado, descobrimos que os parasitas se alojam em vários órgãos, como o tecido adiposo. Essa descoberta foi feita no iMM. Sabemos que numa pessoa infetada um dos sintomas é o sono, mas existe um outro que é a perda de peso. Portanto, talvez o facto do parasita se esconder no tecido adiposo esteja relacionado com a perda de massa gorda. Há aqui ligações que ainda não conhecemos muito bem. Queremos saber qual é a vantagem do parasita em esconder-se num determinado tecido.
Será que essa descoberta pode conduzir-nos a um tratamento para a obesidade?
Esse é o outro lado. Começámos mais recentemente a explorar o lado do hospedeiro, porque até agora centrei-me no parasita. Sabemos que o parasita torna o animal muito magro e pensamos que seja porque liberta moléculas que vão obrigar o hospedeiro a perder peso. O que gostaríamos de fazer no futuro era identificar essas moléculas, saber como funcionam e talvez utilizá-las como uma forma de ajudar as pessoas a perder peso. Estamos a falar de moléculas que já não seriam infecciosas. É um lado muito exploratório, mais excitante. Sim, a partir dessas descobertas poderíamos pensar num tratamento para a obesidade.
Qual é a sua descoberta em ciência de que mais se orgulha de ter feito?
Houve algumas inesperadas e essas são sempre marcantes. Esta descoberta do parasita no tecido adiposo foi completamente inesperada. Nós estávamos a estudar a localização dos parasitas no cérebro e por descargo de consciência decidimos incluir na experiência outros órgãos. Foi um espanto ver muitos parasitas no cérebro, mas ainda mais no tecido adiposo. Isso abriu uma nova linha de pesquisa no laboratório e já se formaram pessoas nesse sentido. Por isso, talvez esta seja uma das descobertas de que mais me orgulho, porque foi muito produtiva.
Considera esse o melhor momento na sua carreira?
Talvez elegesse outro: o momento em que soube que ganhei o financiamento do European Research Council (ERC), porque é uma bolsa generosa e prestigiosa, mas que resultou do trabalho de uma equipa. Estávamos todos a trabalhar para o mesmo. A equipa estava muito junta para eu conseguir esse financiamento.
Quem é o seu/a sua cientista favorito(a)?
Aqueles que fizeram a minha formação marcaram-me imenso, mas uma das pessoas que mais admiro é o Caetano Reis e Sousa, um imunologista que trabalha no Crick Institute. Ele é muito inteligente, sabedor e inspirador. As suas apresentações fazem-nos ter vontade de estudar outras áreas. Ele interessa-se muito pelo trabalho das outras pessoas. Faz perguntas difíceis, mas de uma maneira cordial. Consegue ser brilhante sem ser arrogante.
Considera a humildade uma característica importante na ciência?
Sem dúvida. Há humildade a vários níveis. Devemos estar disponíveis para falar com todos, sem distinções ou superioridades... Mas é preciso ser humilde em relação à ciência. Temos momentos em que fizemos descobertas fantásticas, em que temos um nível de conhecimento ótimo, para logo a seguir percebermos que não sabemos absolutamente nada sobre outras coisas. Isso é fazer ciência. Aquilo que sabemos é muito pouco em relação àquilo que não sabemos.
Já viveu em Londres, Nova Iorque, em Paris e agora em Lisboa. Onde mais gostou de viver?
Nova Iorque. Provavelmente agora não seria a minha cidade favorita, mas eu vivi lá numa altura em que não tinha filhos. Tinha uma vida fantástica com o meu marido. Tínhamos trabalhos muito estimulantes: eu na ciência e ele na banca. Tínhamos poder económico para aproveitar a cidade com culturas e hábitos diferentes. Por outro lado, Nova Iorque é uma cidade muito especial. Tem cientistas muito bons. Semanalmente estávamos em contacto com o que os melhores cientistas do mundo estavam a fazer. Estava a navegar em cima da onda. Não eram só os chefes de laboratório, mas também as outras pessoas. Os estudantes de Doutoramento têm uma qualidade completamente assustadora. São muito bons. Eu estava a fazer o pós-doutoramento e achava-os bem melhores do que eu. Foi outro banho de humildade.
Não acha que esse tipo de pensamento é muito português: os outros são sempre melhores que nós?
Talvez. Se eu comparar universidades portuguesas com outras norte-americanas encontramos coisas boas e más numas e noutras. Mas a Universidade Rockefeller é especial. A qualidade é muito, muito boa, e foi por isso que eu aprendi imenso.
Foi lá onde mais gostou de fazer ciência?
Sim, foi. Foi o mais difícil. Achei inicialmente que não iria estar à altura, mas depois convenci-me que iria conseguir. Decidi que teria de trabalhar mais, estudar mais, ler mais artigos, fazer mais questões e intervenções... Mas consegui e foi um sucesso, porque depois consegui vir para o iMM onde as coisas estão a correr muito bem.
Olhando para o seu passado, ou para as pessoas que já passaram pelo seu percurso, de quem mais sente falta?
Dediquei a minha tese de Doutoramento ao meu professor da escola primária e isso responde à sua pergunta. Ele era extremamente exigente. Sempre fui boa aluna e não tinha problemas de disciplina... Mas ele ensinou-me a ter métodos de trabalho e a tentar até conseguir. Os professores hoje são mais flexíveis. Dão importância a outras coisas que também são relevantes... Mas ele foi uma pessoa que teve um enorme impacto no meu percurso e no rigor do meu trabalho. A educação é a base de tudo e disso não tenho dúvidas absolutamente nenhumas.
Julgo que por vezes se dá mais importância a uma ideia que é transmitida por um homem. É uma forma de discriminação
Como é fazer ciência no feminino?
Tenho a sorte de ser chefe de laboratório e chegar a esta fase da minha carreira em Portugal. No iMM, a atual diretora é mulher e a antiga diretora também é mulher. Um terço das chefes de laboratório no iMM são mulheres. Francamente não sinto discriminação.
Mas já foi discriminada pelos seus pares?
Às vezes pode acontecer que eu tenha uma ideia, a expresse e não seja ouvida ou tida em conta. Na mesma ocasião, pouco depois, um homem dá a mesma opinião, talvez mais ou menos elaborada, e aí a ideia já pode parecer melhor. Julgo que por vezes se dá mais importância a uma ideia que é transmitida por um homem. É uma forma de discriminação.
Sente-se com menos oportunidades por ser mulher?
Nunca vou saber isso. Há determinadas coisas que nunca saberei. Não sei se não cheguei a um determinado patamar ou função por ser mulher, portuguesa ou por trabalhar em parasitologia. De facto, existem tetos de vidro. Nós não os vemos e não sabemos.
Esses tetos de vidro podem ser impostos pelas próprias mulheres?
Durante uns anos organizei um grupo dentro do iMM que se responsabilizava por garantir que os alunos de pós-doutoramento tinham a sua carreira enquadrada e atividades científicas no instituto. Organizou-se uma reunião anual onde eram apresentados os resultados à comunidade do iMM. Selecionaram-se os mais interessantes para se fazer uma apresentação oral. Isso dá uma enorme visibilidade aos investigadores. Mas o que eu reparei foi que dois terços desses trabalhos eram de homens. Aquilo não me convenceu. Fui perceber porquê. O que eu observei foi que no momento da candidatura, em que foi perguntado aos investigadores se preferiam apresentar oralmente o trabalho ou em poster, quase todos os rapazes disseram que queriam uma apresentação oral e quase todas as raparigas optaram por apresentar em poster. Portanto, foram as próprias mulheres a cortar as suas próprias pernas. Nenhuma mulher individualmente pensou que poderia estar a discriminar-se e prejudicar-se a si própria.
Não se permitindo brilhar...
Exatamente. Muitos rapazes com trabalhos menos bons foram mais ousados e arriscaram. Se eventualmente estivesse ali uma pessoa a recrutar investigadores, as mulheres teriam menos oportunidades. Portanto, as pessoas colocam-nos esses tetos de vidro, mas por vezes somos nós próprias a fazê-lo. Temos mais medo de nos expor.
Acha que é também por isso que é preciso haver o Dia Internacional da Mulher?
Sim, que é para se falar nestes assuntos. Esperemos que daqui por uns anos, este já não seja um assunto. Mas ainda é. É preciso dar exemplos de mulheres que conseguiram ter tudo o que quiseram. Nós também podemos ser modelos de sucesso. Eu com os meus filhos, de 7 e 11 anos, educo-os nesse sentido.
Onde se vê daqui a 10 anos?
Espero que continue a fazer investigação em Portugal. Adoro o meu trabalho. Provavelmente terei uma equipa diferente, porque em investigação as pessoas estão sempre a mudar. Por isso espero que daqui a 10 anos as nossas festas de Natal do iMM, que são sempre grandes, sejam ainda maiores, com muitos alunos e ex-alunos.
O que gostaria de descobrir?
Tanta coisa. O nosso ponto de vista atual é o parasita. Mas cada vez mais quero saber como é que o hospedeiro reage. Gostava de perceber muito melhor o lado do hospedeiro, ou seja, do animal ou pessoa que é afetada. A doença que temos resulta do facto de os parasitas terem estratégias que nos causam danos, mas eu gostava de perceber como é que o sistema imunitário se defende. Quero investigar melhor essa interação entre o parasita e o hospedeiro.
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