Os idosos detestam ser velhos. Há uma incapacidade de lidar com as palavras. Envelhecem-nos e tiram-lhes a vitalidade, como se a maturidade responsabilizasse o léxico já de si tão comprometido com a palavra.

Saber viver compete com a longevidade, como se a vida se tornasse num jogo em que os mais velhos estão a um passo de ganhar, sabendo de antemão que o preço da vitória pode ser pago com ela. Contam com o presente e com um bonito e repleto passado e, só por isso, partem à frente. Já a maturidade, essa, mistura-se com a sabedoria e ambas com a audácia, talvez espoletada por uma desinibição frontal (quem sabe!), resultando numa batota faseada com o divino. Vão fazendo pedidos a Deus, os mesmos que vão vendo respondidos. "Só queria ver os meus filhos criados", ao que Deus se enche de amor e lhes concede o desejo. "Só queria poder ver os meus netos", protelando Deus os planos e concedendo-lhes, não um, mas dois netos cheios de saúde. "Só queria vê-los na escola", "só queria vê-los na faculdade", "só queria vê-los formados" a que se segue um "só queria ver os meus bisnetos", comprometendo a seriedade do Criador.

Pedem tempo por fases e, sem querer, ganham a vida ao mesmo tempo que enganam Deus e ludibriam a eternidade

Desafiam Deus e, etapa a etapa, ganham tempo - essa moeda de troca da vida. Desde o início das provocações ao Altíssimo, os idosos sabem que amealharam cerca de 30 anos de vida e esse passado vivido já ninguém o tira - porque, quanto ao futuro, é outra conversa. Mas tudo se negoceia. Vivem com a máxima de que, em última instância, paga-se tudo com a existência e salda-se a conta. Quem vive com este desapego só tem a ganhar, como se o seu maior receio se tornasse no seu maior trunfo. Pedem tempo por fases e, sem querer, ganham a vida ao mesmo tempo que enganam Deus e ludibriam a eternidade. Sabem que pedir aos 55 anos para ver os bisnetos é um erro crasso de principiante. Pedir tudo de uma vez, levaria o Criador a encarregar-se de os colocar em fila de espera sem azo à compaixão. Os idosos vão ganhando a vida nos intervalos e vão-se focando em pequenos objectivos, distraindo-se das preocupações e focando-se no quotidiano.

Envelhecer não custa, é uma sorte. As rugas quase nos remetem à dendrocronologia - método que permite saber a idade de uma árvore pelos anéis do seu tronco. Datam a idade pelo sorriso e impedem que esqueçamos tudo aquilo que já sorrimos, reforçando a margem que ainda temos para o fazer. 

A transição marca o envelhecimento e dá-lhe impacto: "o que fui e no que me tornei". Adaptam-se às brancas, à dor e à fragilidade, presentes para avivar a memória de que cá estão de boa saúde para se permitirem reclamar.

"Como ele era e como ele está" - relembram terceiros como se não nos tivéssemos acompanhado no processo. Há uma culpabilização e uma carga negativa depositada em quem envelhece, como se houvesse uma responsabilidade inerente a quem vive em paralelo com o tempo.  Houvesse antes uma celebração da capacidade, cada vez mais difícil, de passar incólume a acidentes, doenças ou tentações.

Os velhos lidam mal com o estatuto. Usar bengala é de velho, credo. Preferem uma canadiana. Acreditam ter na doença o respeito que a idade lhes tira. É mais prazeroso e menos penoso do que a idade. Há um respeito social pela doença e um desrespeito pelos idosos, maior ainda pelos velhos.

Usar duas canadianas é de mau tom. Ser-se muito doente vira o jogo e retira ênfase à pessoa com doença, focando o espectador na patologia e não no seu portador.

No meio fica a virtude, no braço direito uma canadiana e no esquerdo a liberdade, para acenar e forçar o reparo nesta capacidade de se fazerem menos capazes.

A bengala, essa, fica em casa. Antes ser-se um bom doente, independente para as actividades de vida diárias, do que um saudável velho que apenas carrega muitos anos de bonitas memórias às costas, de um tempo que já passou. E, felizmente, ainda passa.