Uma das mais conceituadas editoras técnicas do mundo, a Elsevier Academic Press, publicou recentemente o livro Police Psychology - New Trends in Forensic Psychological Science, cuja coordenação ficou a cargo de dois psicólogos portugueses.

O Diretor Executivo da CEPOL, a Agência da União Europeia para a Formação Policial, Detlef Schröder, aceitou inaugurar o livro com a redação do Prefácio, enaltecendo a riqueza de capítulo e o profundo trabalho de coordenação dos dois psicólogos nacionais.

Estivemos à conversa com os coordenadores do livro, Paulo Barbosa Marques, Psicólogo Clínico e Forense, e Mauro Paulino, Psicólogo Clínico e Forense e Coordenador da Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense.

Que contributos pode a "Police Psychology" dar no quotidiano das forças policiais, considerando aspetos internos às próprias forças, como a prevenção do burnout e suicídio, recrutamento e seleção, lidar com eventos críticos que desestabilizam o agente?

Paulo Barbosa Marques: A aplicabilidade das ciências psicológicas no quotidiano das organizações policiais e dos seus profissionais é inegável. As funções de um psicólogo ao serviço de uma Força ou Serviço de Segurança não se reduz, ao contrário do que muitos ainda pensam, à administração de testes no recrutamento e seleção dos candidatos mais aptos. Aliás, se nos propuséssemos a desenhar uma fita de tempo do trabalho do psicólogo numa organização policial, o seu papel começaria aí ou ainda antes, mas iria acompanhar o profissional de polícia em todo o seu percurso. A sua atuação é essencial na formação inicial e contínua; na intervenção em eventuais incidentes críticos experienciados pelos profissionais de polícia; no desenvolvimento de programas de prevenção/intervenção endereçados às problemáticas da fadiga por compaixão, burnout, suicídio; no aconselhamento psicológico e psicoterapia; entre tantas outras possibilidades que beneficiam da especialidade da Psicologia Policial.

Mauro Paulino: Na verdade, a Psicologia Policial vai ainda mais além naqueles que são os seus domínios de atuação não se focando apenas no indivíduo, mas igualmente no funcionamento da própria organização, ao identificar e reduzir os riscos psicossociais nas organizações policiais e inerentes às próprias funções. Ou seja, o psicólogo promove um ambiente profissional mais saudável e produtivo.

E quais os contributos no dia a dia das forças policiais ao nível da interação com o cidadão, como policiamento, lidar com doença mental, acorrer a uma situação de violência doméstica ou sexual?

Paulo Barbosa Marques: A qualidade e alcance dos serviços prestados pelas organizações policiais aos cidadãos depende, efetivamente, em muito da componente formativa, mas também da relevância atribuída à Psicologia dentro das respetivas entidades. Não é por acaso que, internacionalmente, a Psicologia Policial é reconhecida como uma área de especialização, devido aos seus inúmeros contributos para as Forças e Serviços de Segurança, para os seus profissionais e, por inerência, para os cidadãos.

São inúmeros os exemplos internacionais em que as instituições policiais direcionaram a sua atenção para a evidência científica no domínio das ciências psicológicas para resolver problemas associados à sua atividade operacional. Desde logo, refira-se o contributo de Harvey Schlossberg que, ao serviço do New York City Police Department (NYPD), afirmou a negociação policial como instrumento para a resolução pacífica de incidentes críticos e ocorrências de tomada de reféns. Poucos anos mais tarde, mas também na década de 70 do século passado, o profiling criminal ganhou relevo na investigação de homicidas em série pela unidade de análise comportamental do FBI. Praticamente uma década mais tarde surge a entrevista cognitiva, um método de entrevista policial que, baseando-se nos estudos sobre a memória, permite a obtenção de testemunhos mais completos e fidedignos. Olhando para estes três avanços que derivam da Psicologia, facilmente se depreende quantas vidas humanas terão sido salvas em incidentes críticos ou quantas investigações policiais chegaram a bom porto graças a estes conhecimentos.

No panorama nacional também encontramos excelentes exemplos que são igualmente referenciados na nossa obra. O Euro 2004 serviu de laboratório para uma das mais importantes evoluções no domínio da psicologia das multidões e do policiamento de ordem pública. Um outro exemplo foi o desenvolvimento e formação dos profissionais da PSP e GNR num instrumento de avaliação de risco de violência doméstica (RVD), que, naturalmente, se baseou nos fatores de risco identificados sobretudo por psicólogos.

Mauro Paulino: Aliás, o flagelo da violência doméstica demonstra muito bem essa necessidade. Estamos a falar de um crime que em Portugal ascende, anualmente, mais de 20 mil denúncias, com dezenas de mortes e um número expressivo de crianças que pela exposição à violência são igualmente vítimas. Isto levanta necessidades muito concretas no que respeita à capacidade de atendimento por parte dos agentes de segurança, de forma transversal e não apenas nos núcleos específicos de atendimento, em que as ferramentas de intervenção em crise são cruciais; no que respeita à avaliação e gestão de risco, como o caminho necessário para priorizar a proteção da vítima e delinear um plano de segurança adequado às necessidades do caso concreto e evitar que surjam situações de maior gravidade ou de homicídio; no que respeita à atuação policial perante a presença de crianças; entre outras aptidões que podem e devem ser desenvolvidas e formadas por profissionais de psicologia.

São vários os estudos, mas também os relatórios de equipa de análise retrospetiva de homicídio em violência doméstica, que colocam a nu as fragilidades existentes nesse atendimento, avaliação e encaminhamento, tendo a Psicologia um papel crucial na reformulação dessas matérias.

Como aqui já foi referido, reforçamos que são diversos os contributos, mesmo na comunicação com doentes mentais ao permitir uma adequada ponderação da utilização da força, ou recurso de outras estratégias para evitar uma escalada da violência ou de outros incidentes, cujos custos financeiros podem ser menores, como demonstrado no nosso livro.

Paulo Barbosa Marques: A ciência psicológica tem amadurecido e muito os seus contributos nestas matérias policiais, em prol das próprias forças e serviços de segurança, mas também da comunidade.

Capa do livro
Capa do livro "Police Psychology - New Trends in Forensic Psychological Science"

Da vossa experiência, qual é o “estado da arte”, do ponto de vista prático, desta disciplina, atualmente, no quotidiano das forças de segurança portuguesas, sobretudo no que toca à formação que os próprios agentes têm para usar os princípios da ciência psicológica na relação na relação com os cidadãos?

Paulo Barbosa Marques: A formação nas organizações policiais é uma matéria de enorme complexidade. Tive a oportunidade de abordar essa questão num importante estudo sobre as perceções dos profissionais das Forças e Serviços de Segurança em relação à sua formação e práticas na utilização da entrevista cognitiva na recolha de depoimentos. Na altura, o que foi possível concluir é que os elementos policiais desejavam receber formação nesta área, mas que a mesma era residual, tanto ao nível da formação inicial como contínua. Estamos a falar de uma aptidão central na atividade operacional e que merecia uma abordagem idêntica à que foi tida com a normalização do RVD, a tutela a impulsionar a adoção de um modelo comum de entrevista investigativa e promover a consequente formação de formadores para depois difundirem esse conhecimento para o efetivo policial - tal como ocorre no Reino Unido que é um exemplo nesta matéria. Naturalmente que a formação em técnicas de entrevista investigativa não se pode basear em módulos essencialmente teóricos e com carga horária insuficiente. Além disso, é nestas áreas que mais apelam ao imaginário cinematográfico de pretensos profilers e detetores humanos de mentira, que se vê a pseudociência infiltrar-se nas organizações policiais quando trazem às suas salas de formação conteúdos que carecem de suporte científico e formadores que não possuem uma base científica sólida no domínio das ciências psicológicas.

Mauro Paulino: Não é possível dotar um órgão de polícia criminal das ferramentas necessárias para intervir em contexto de crise (com os seus pares ou com o cidadão), das aptidões necessárias para lidar com pessoas portadoras de doença mental, das estratégias comunicacionais para reduzir a escalada do conflito com indivíduos que podem ou não já ter cometido um ilícito criminal, das capacidades para perceber a multidão e aplicar importantes princípios que permitam gerir a multidão de forma eficaz, de conhecimentos no domínio da psicologia cognitiva que lhes permitam obter relatos mais completos e fidedignos das pessoas com quem intervêm, e todo um vasto conjunto de ensinamentos, reservando num período de 9 a 12 meses de formação, uma carga horária que se situa, lamentavelmente, entre os 1.5% e os 5% num cenário muito otimista para a aprendizagem destes conteúdos.

Paulo Barbosa Marques: Esta disparidade no enfoque que é dado às competências comportamentais e interpessoais por oposição às competências técnico-jurídicas é suscetível de se traduzir na formação de profissionais mais aptos a resolver problemas jurídicos, mas não necessariamente hábil na resolução de problemas sociais ou interpessoais tão frequentes no quotidiano policial.

O livro reúne mais de 30 autores internacionais, todos eles de inquestionável reputação, desde académicos, a profissionais do terreno, os quais se debruçaram sobre temáticas relacionadas com o papel da psicologia na cultura policial e nas suas respetivas áreas de atuação, bem como em matéria de investigação criminal.