Fez parte da equipa do primeiro hospital em Portugal com a certificação “hospital amigo dos bebés”. O que vamos encontrar numa unidade com esta certificação?
Um hospital com a certificação amiga dos bebés indica-nos que as práticas são assentes numa cultura de amamentação visando a sua promoção, proteção e apoio através do cumprimento de dez passos que levam a potenciar as taxas de aleitamento materno, num momento tão crítico com o nascimento e primeiros dias.
Indica ainda que todos os profissionais fizeram formação em aleitamento materno obrigando assim a serem alteradas práticas e cuidados de rotina que prejudicavam a amamentação e, inclusive, conduzem ao desmame precoce, como é o caso de separarem o bebé da mãe após o parto quando a díade se apresenta estável.
Nas instituições certificadas sabemos que têm práticas que fomentam e protegem o aleitamento materno e desta forma conseguem dar uma resposta mais efetiva a mães e bebés que podem e pretendam amamentar contribuindo para o seu sucesso.
Atualmente, a Iniciativa Amiga dos bebés da UNICEF Portugal cessou, mais precisamente desde dezembro de 2023, sendo organizada pelo Governo uma Comissão para a Promoção do aleitamento Materno que tem a missão de implementar práticas que promovam e favoreçam o aleitamento materno nas instituições de saúde.
É formadora de Conselheiros em Aleitamento Materno pela Organização Mundial da Saúde e pela UNICEF. Quais são, neste momento, as áreas em que forma? Qual o papel destes conselheiros?
Aproveito toda a formação e competência no aleitamento materno para manter a minha equipa atualizada nas boas práticas, faço também formação a colegas através da Associação Portuguesa dos Enfermeiros Obstetras (APEO), da qual faço parte e presido a Comissão de Aleitamento Materno. Também ministro cursos a mulheres grávidas, casais e famílias que têm como projeto amamentar.
O papel do conselheiro visa apoiar a mães e seu(s) bebé(s) a amamentar dotando-os de estratégias que promovem o aleitamento materno.
A abrir o seu livro, a médica Graça Gonçalves deixa uma pergunta: “Porque é que ainda se sente a necessidade de escrever livros sobre amamentação?”. No caso concreto da Patrícia Sancho, porque sentiu essa necessidade?
É verdade, ainda se sente necessidade de escrever sobre amamentação que é um processo natural e inerente à condição de sermos mamíferos. Há, inclusivamente, estranheza de quem não é da área ou não viveu na primeira pessoa os desafios de querer amamentar e não ter suporte para o conseguir com todo o sentimento de angústia e de expectativas defraudadas inerente. Foi por isso que lancei este livro, com o grande objetivo de promover a literacia nesta área, não só à comunidade, mas às mulheres que pretendem amamentar ou querem compreender por que não foi possível fazê-lo. Desconstruo muitos mitos e inverdades mantidos ao longo de anos e anos e que condicionaram e ainda continuam a condicionar tantos projetos de amamentação levando-os ao insucesso. Pretendi dotar as mulheres de ferramentas para aumentarem a confiança no processo e ultrapassarem as dificuldades mais comuns e partilhei também o que é esperado de um bebé que é amamentado, um outro ponto que muitos de nós, enquanto sociedade, também desconhecemos.
A pergunta envolve uma resposta complexa. De qualquer forma, pergunto-lhe quais as principais razões que concorrem para que, no mundo desenvolvido, tantos bebés se vejam privados de mamar?
Vários são os fatores que concorrem e muitos deles estão explanados no primeiro capítulo do meu livro. Temos fatores pessoais, sociais, culturais, económicos e políticos. As taxas de aleitamento materno não deixam grandes dúvidas, estamos aquém do que são as recomendações da Organização Mundial da Saúde e da UNICEF. E o que estamos verdadeiramente a fazer para mudar? Será que o Governo, por exemplo, prioriza verdadeiramente o aleitamento materno, será que valoriza a amamentação como um ganho inclusive para a economia? Ter uma política de proteção nos países desenvolvidos com legislação que verdadeiramente reconheça o valor deste ato é absolutamente imprescindível. Na amamentação, precisamos de políticas protetoras que apoiem as famílias e os profissionais a quem estas recorrem.
Quem trabalha nesta área tem um sentimento de andar a “correr atrás do prejuízo”, com os bebés e as mães, numa primeira instância, a sairem lesados. Mas não são só eles, somos todos nós estas taxas não afetam só as famílias, mas a própria sociedade. Teremos real consciência disso? Parece-me que não. Por isso, e tratando-se de um problema que impacta a saúde publica, penso que seria interessante que, enquanto sociedade, cada um de nós aprofundasse o tema, tivesse curiosidade de compreender porque é tão importante recuperar uma cultura de amamentação, confiasse no processo e reconhecesse inclusive que amamentar é um direito e, como escrevo no livro, é dever de todos protege-lo. Não basta formar as mulheres e as famílias que pretendem amamentar, apesar de já ser um excelente motor de mudança, é necessário formar quem as forma sendo idealmente um requisito, é necessário oferecer condições de acessibilidade a todas as famílias para que consigam amamentar.
Para além do ato de alimentar, a amamentação expressa-se noutras dimensões. De que são privados os bebés e as mães quando afastamos a amamentação?
Amamentar permite oferecer o alimento mais adequado ao bom desenvolvimento do bebé, contribuído para o crescimento e desenvolvimento de todos os órgãos e sistemas de forma mais salutar. O suporte imunitário oferecido pelo leite humano é inigualável e contribui, inclusive, para a redução do risco de infeção, quando contraída pode mesmo ajudar a encurta a duração, reduz tempo de hospitalização e confere proteção contra tantas outras doenças como por exemplo, diabetes, asma e obesidade. Permite ainda um melhor desenvolvimento neurológico desde bebé.
Todas as horas de contacto com a figura de vinculação, todo a contenção, cuidado e atenção implícitos neste processo são fundamentais para o desenvolvimento de pilares essenciais como a confiança, segurança e afeto com impacto, inclusive, no cérebro do bebé, na forma como se relaciona com o meio que o rodeia. A amamentação é a forma natural de se conseguir num único ato apoiar a maturação do sistema nervoso, construindo os pilares de resposta ao stresse de forma mais sólida. As próprias hormonas implicadas na produção e ejecção de leite apoiam o neurodesenvolvimento da criança, pois relaxam-na, reduzem-lhe o nível de stresse, baixam os níveis de cortisol. Os bebés amamentados estão mais atentos às interações sociais, o que está relacionado com menores problemas de comportamento e uma melhor adaptação social.
Também na mãe que amamenta, a amamentação oferece inúmeros benefícios não só em saúde, conferindo uma proteção contra o cancro de mama, por exemplo, e outras doenças tais como diabetes, hipertensão e obesidade. Amamentar protege ainda a saúde mental melhorando a resposta ao stresse, oferece um papel relevante em mulheres com transtorno de ansiedade e contribui para a prevenção da depressão pós-parto. A amamentação funciona como um neuromodelador, assumindo um papel importante na empatia, confiança e reconhecimento. Tem igualmente uma função importante no comportamento materno protegendo o vínculo entre a mãe e o bebé. Considero ainda que amamentar é uma ótima maneira de mudar o mundo.
O livro da Patrícia Sancho também visa derrubar mitos e preconceitos em torno da amamentação. Quer expor alguns desses mitos e desmontá-los?
Sim. A minha intensão, não só através do meu livro como do meu podcast, é dar palco à verdade e tornar os mitos cada vez mais silenciosos, até deixarmos de os veicular. São inúmeros, mas partilho de uma forma muito resumida os mais frequentes, como é o caso do leite fraco que ocupa quase quatro páginas no meu livro, exatamente porque é necessário parar de uma vez por todas de dizer esta enorme inverdade. Acho pouco provável que depois de realizada a leitura do livro ainda se ache que há leite fraco, mas, se acontecer, garanto que não fez uma leitura atenta, recomendo que a repita.
A mãe não ter leite suficiente para o seu bebé é o fator que mais contribui para o desmame precoce. Sabemos que menos de 5% se deve a causa primária e, mesmo assim, com um bom acompanhamento, pode conseguir-se optimizar. A verdade é que a maioria das mulheres tem leite em quantidade suficiente, o que falta é apoio efetivo para garantir que a sua produção seja mantida e não destruída. A implicância com a forma das mamas e mamilos levanta inúmeros mitos e crenças que não passam disso mesmo. Outros tantos em relação ao tempo que o bebé passa na mama. O amamentar ser desnecessário em crianças que já comem de tudo é outro mito, quando sabemos que um terço da dose diária recomendada de proteínas e calorias se obtém através do leite humano e mais de metade de fontes minerais. O igualar a mama a uma zona exclusiva de alimentação é outro mito, quando sabemos que o conceito é bem mais abrangente, entre tantos outros que continuam a retirar a confiança no processo e a impedir que a amamentação assuma o lugar de primazia de onde nunca deveria ter saído.
Há uma abordagem que detalha no seu livro, a de que a mulher que não consegue amamentar tem sentimento de culpa. Ora, o sentimento de culpa decorre do contexto social, pessoal, familiar que nos rodeia. No caso concreto da amamentação, o que contribui para este sentimento de culpa?
Esta culpa nasce de expectativas que foram fracassadas. No fundo, a mulher coloca-se em causa ao considerar que não foi capaz de dar ao bebé aquilo que ele precisava e culpa-se. O sentimento de culpa assenta em vários pilares como descreve e bem e sabemos também que a culpa desse eventual fracasso se deve ao contexto de desamparo e falta de apoio em que esta mulher teve e que não lhe permitiu responder em pleno às necessidades do seu bebé. E, por isso, nenhuma mãe deve propor-se a carregar a culpa sozinha pois, se ela não conseguiu e sente que fracassou, isso só me indica que esta mulher não foi suficientemente apoiada.
Há pouco tocou na questão da falta de apoio e acompanhamento das mulheres e famílias no tema amamentação. Gostaria de a ouvir tendo como base a seguinte expressão que retirei do seu livro: “Amamentar é um direito e é um dever de todos apoiar”.
Do meu ponto de vista, Portugal não valoriza a amamentação. Apresento três razões que justificam a minha opinião. Nos currículos de formação graduada e pós-graduada de profissionais de saúde não consta formação especifica na ciência da lactação com uma carga horária mínima de 20 horas, sendo uma recomendação da OMS/UNICEF. A própria legislação espelha o desvalor e a prova é que as políticas de apoio à parentalidade não têm prevista a licença remunerada a 100% nos primeiros seis meses de vida, o tempo previsto de aleitamento materno exclusivo. Portugal continua a permitir o marketing abusivo e pouco ético da indústria de fórmulas infantis com o impacto negativo que tem no processo de amamentação, conduzindo muitas mulheres a desistirem de amamentar. Além da legislação que regula a publicidade dos leites artificiais ser omissa em relação às fórmulas de transição.
Há, então, nesta indústria uma força poderosa a afastar as mulheres da amamentação?
Esta indústria pretende vender uma alternativa ao leite humano, não pretende promover o leite humano nem oferecer estratégias para o conseguir disponibilizar a todos os bebés e crianças. Caso contrário, teria de mudar de ramo e nem seria tão lucrativa como é. Seria útil, sim, se se limitasse a ser utilizada para os casos realmente necessários, mas as evidências não nos mostram isso e subtilmente entra em todas as casas das mais variadas formas. Se todo o dinheiro investido em estratégias de marketing utilizados por esta indústria fossem os utilizados para promover, apoiar e suportar a amamentação, todos teríamos mais benefício.
Será um direito que assiste à mulher não querer amamentar? Ou é um ato de egoísmo?
As mulheres têm o direito de decidir. Quem manda no seu corpo é a mulher, portanto a decisão será sempre dela. O que interessa focar aqui é o contexto em que essa decisão é tomada, pois sabemos que amamentar é um comportamento fortemente cultural. Assim, considero que deverá ser oferecida à mulher informação atualizada, baseada na evidência, para que possa ficar devidamente esclarecida e assim decidir em consciência. Amamentar quere-se prazeroso para os intervenientes não um momento forçado e nenhuma mulher deve ser forçada a algo que não quer. Considero que é fundamental respeitar qualquer que seja a decisão da mulher e apoiar a sua escolha não só com informação, mas com estratégias garantindo o menor dano à saúde.
No livro sublinha a expressão “pessoa que amamenta”. Quer, com esta obra que dá aos escaparates introduzir na questão da amamentação o tema da inclusão?
Sim, cada vez mais temos novos tipos e estruturas familiares e por isso restringir a amamentação ao conceito de família cisnormativo não faz sentido, pois deixa muitas pessoas de parte. Assim, neste livro, quero incluir também pessoas que não viveram uma gravidez, mas pretendem saber sobre o tema e até amamentar como, por exemplo, os processos de adoção e a própria comunidade LGBTQIA+. Esta mudança de paradigma é essencial e está, inclusive, espelhada nas várias sociedades científicas.
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