I – Introdução

O poder disciplinar é um dos poderes do empregador público a par de outros, nomeadamente o poder de direção, e está intimamente relacionado quer com os direitos e deveres dos trabalhadores quer com os interesses do Estado – prossecução do interesse público.

O poder disciplinar visa entre outros fins – assegura o bom e regular funcionamento dos serviços e por isso, se num polo encontramos os direitos, as garantias e as obrigações dos colaboradores (trabalhadores com vínculo público) no outro polo encontramos o comportamento dos dirigentes que se deve orientar pela isenção, imparcialidade, e legalidade. Por outras palavras falamos de integridade profissional das partes que se forma e limita nas garantias, direitos e deveres de cada uma das partes.

Como é sabido, nem sempre é possível encontrar o equilíbrio ideal nas relações laborais sendo notório que o conflito laboral está muitas vezes institucionalizado.

Nas relações de conflito mais degradadas assentes na violação dos deveres gerais ou funcionais por parte do trabalhador, o único meio de reação do empregador é o exercício da ação disciplinar no âmbito do seu poder disciplinar e de direção.

É no âmbito do poder disciplinar que o empregador público recorre à suspensão preventiva do trabalhador.

É nesta perspetiva que se aborda a suspensão preventiva de funções de trabalhador com vínculo laboral de direito público com consagração no art. 211.º da LGTFP.

O presente artigo, visa explorar a admissibilidade da aplicação desta medida cautelar de acordo com o regime legal vigente.

Aborda-se de forma sumária, o regime da prevenção preventiva de funções na perspetiva do instrutor e na perspetiva do trabalhador/arguido, fazendo-se apenas referência aos meios de reação ao dispor do trabalhador quando a sua suspensão de funções é ilícita.

II – Princípios orientadores

A aplicação desta medida cautelar está muitas vezes associada a um qualquer facto que possa criar ou que já tenha criado alarmismo social no seio da Instituição ficando excluído do foco os verdadeiros pressupostos da aplicação legítima desta medida.

Quer isto dizer que, a Administração Pública tem tendência a responder em conformidade com a intensidade da repercussão do comportamento ilícito do infrator sem ter em consideração as circunstâncias de facto e a sua inerente subsunção ao normativo aplicável.

A importância deste tema reside na essencialidade da equidade do procedimento disciplinar.

A equidade do procedimento disciplinar encontra-se no cumprimento de todas as garantias do trabalhador consagradas na lei e na observância de vários princípios orientadores da atividade administrativa. Destaca-se aqui, a oportunidade da instauração do processo disciplinar, a adequação do tipo de processo ao caso em concreto, a duração, tal como, a possibilidade legal da aplicação da suspensão preventiva de trabalhador.

O juízo de oportunidade de suspender o trabalhador deve assentar nos princípios: da necessidade, da proporcionalidade e da adequação. O mesmo é dizer que, a aplicação desta medida cautelar não é compatível com erros “grosseiros” que possam implicar a violação dos direitos e interesses protegidos do trabalhador/arguido.

Por isso, no exercício da ação disciplinar, a Administração Pública não pode e não deve agir em desconformidade com as normas legais em vigor, ou seja, não pode ter comportamentos que impliquem um desajuste do que vem definido no direito sancionatório que implique o descrédito por parte dos seus colaboradores.

Assim sendo, no direito sancionatório é exigido que os titulares dos órgãos administrativos atuem ao abrigo do princípio da legalidade e do princípio da prossecução do interesse público, e ainda pelo respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, 1 sem prejuízo de todo o comportamento sancionatório dever estar de acordo com o princípio da eficácia e da segurança jurídica.

Este princípios impedem que, o dirigente máximo do serviço com competência para a ação disciplinar possa agir de forma discricionária, de tal forma que possa, por exemplo, abster-se injustificadamente de instaurar procedimentos disciplinares, como de instaurar processos em situações em que é desnecessário ou de aplicar uma sanção desproporcional / abusiva, ou ainda, que possa decidir pela suspensão preventiva de funções sem que estejam preenchidos os seu pressupostos.

III – Pressupostos da aplicação da suspensão preventiva de funções

Cabe ao instrutor nomeado averiguar se estão preenchidos os pressupostos da suspensão preventiva de trabalhador e para isso basta uma leitura atenta do art. 211.º da LGFTP. 2

São pressupostos:

– Existência de processo disciplinar;

– Necessidade de acautelar as finalidades do processo disciplinar (acautelar bens ou valores jurídicos que a continuação da alegada conduta ilícita do trabalhador poderia afetar/ acautelar o interesse público)

– Na situação que abstratamente seja possível enquadra o comportamento do trabalhador na sanção de suspensão, despedimento ou demissão.

Estes pressupostos são cumulativos, ou seja, a falta de um dos pressupostos implica o afastamento da suspensão preventiva.

Assim, se um trabalhador for objeto de processo disciplinar e que deste processo resulte em abstrato a aplicação de uma pena de multa, a entidade empregadora pública está proibida de suspender o trabalhador.

Dito de outro modo, a lei faz depender a suspensão preventiva ao grau de culpa do agente infrator, ou seja, a sua aplicabilidade pressupõe negligência grave ou dolo.

Dá-se nota que a suspensão preventiva de funções não se confunde com a sanção disciplinar de suspensão. 3 A primeira é uma medida cautelar provisória e a segunda é uma sanção disciplinar.

Aqui chegados, o primeiro cuidado a ter é na avaliação da deliberação que nomeia o instrutor que, em regra, identifica o tipo de processo instaurado. A LGTFP consagra o processo disciplinar comum e os especiais, sendo o processo de inquérito um processo especial. 4

É aconselhável que, o instrutor identifique a situação no sentido de se saber se é exigível um processo prévio de inquérito ou se deve ser iniciado de imediato o processo disciplinar. (Quem tem competência própria para o exercício da ação disciplinar muitas vezes utiliza expressões que denotam falta de rigor, exprimindo – “processo de inquérito” com o significado de “processo disciplinar” opondo-se à classificação legal de processo disciplinar comum e especial com as consequências legais que daqui decorrem. O desconhecimento da terminologia correspondente a conceitos e procedimentos diferentes e específicos têm consequências nefastas no procedimento, nomeadamente impedir a aplicação de determinada sanção disciplinar por motivos meramente processuais.)

Assim, torna-se essencial que o instrutor domine o procedimento disciplinar, já que, só assim evitará que o processo seja inquinado por violação de lei e em consequência disso, seja nulo ou anulado impondo-se a consequência pratica – a não penalização do trabalhador infrator.

A verticalidade das Instituições da Administração Pública passa entre outros aspetos por assegurar que as suas decisões sejam vinculadas à lei quando a lei assim o determine não havendo espaço para decisões arbitrárias por maior impacto que a infração tenha na paz social da Instituição e na Sociedade.

IV – Exigências procedimentais

Este incidente autónomo exige a notificação prévia do trabalhador/arguido sobre os fundamentos e motivos da necessidade do afastamento do trabalhador do local de trabalho.

É aplicável esta medida cautelar quando a presença do trabalhador pode dificultar a instrução, designadamente no que respeita à aquisição, conservação ou veracidade da prova.

Por vezes, pode ser aplicada quando existe séria probabilidade de o trabalhador continuar a atividade ilícita, ou ainda, quando a presença do trabalhador possa interferir de forma negativa na imagem da Instituição.

No que concerne ao procedimento surge em primeira linha a notificação prévia do trabalhador /arguido.

Da notificação deve constar: a duração previsível e a indicação dos seus efeitos (não repercussão da suspensão na remuneração auferida). 5

No âmbito das garantias de defesa do trabalhador/arguido, há quem defenda a exigibilidade da realização da audiência prévia a par da notificação como uma garantia essencial com fundamento no duplo direito de audição e de defesa. 6

Num acórdão bastante recente, o STA veio a decidir em sentido contrário, ao defender que não é necessário a realização da audiência prévia desde que se tenha realizado a notificação prévia da decisão devidamente fundamentada. 7

Acompanha-se o sentido acolhido pelo STA atentos à natureza cautelar e provisória desta medida e ainda, ao facto de o trabalhador ter sempre forma de reagir a este incidente: por impugnação administrativa ou judicialmente 8 tal como, poder intentar uma providência cautelar. 9

V – Duração da suspensão preventiva

A lei estabelece o limite máximo de 90 dias para a duração da suspensão preventiva.

Dá-se nota que, no caso de a suspensão decorrer de decisão judicial, em sede de processo-crime, a duração pode ser superior a 90 dias.10

VI – Trabalhador agente de crime

-conhecimento do MP –

Nos casos em que, o trabalhador é agente de um crime cujo julgamento seja da competência do tribunal de júri ou tribunal coletivo, a lei limita-se a determinar a obrigatoriedade de comunicação do despacho de pronúncia, por parte do Ministério Público, ao órgão ou serviço em que o trabalhador desempenha funções. 11

A comunicação do MP permite ao dirigente máximo do serviço com competência disciplinar, conhecer do despacho de pronúncia e decidir sobre a necessidade ou não de instaurar procedimento disciplinar e aferir da necessidade de suspender preventivamente o trabalhador do exercício de funções.

Assim, só com a instauração do respetivo processo disciplinar por conduta a consubstanciar ilícito criminal e disciplinar, o dirigente máximo do serviço com competência disciplinar pode ponderar a necessidade de suspender o trabalhador tendo em atenção o caso em concreto.

A ideia central é a de que, tratando-se de infração disciplinar ou infração disciplinar e criminal, a suspensão de funções exige sempre a abertura de processo disciplinar.

Saliente-se que nas relação laborais privadas reguladas pelo Código do Trabalho, a suspensão preventiva do trabalhador, em regra, acontece com a notificação da nota de culpa (instauração do processo disciplinar) mas a lei permite que a suspensão possa ocorrer nos 30 dias anteriores à notificação da nota de culpa desde de que devidamente fundamentada. 12

Relembrar que cabe ao instrutor, o dever de atender ao princípio da presunção de inocência mesmo quando está em causa a aplicação de uma medida cautelar, tal como, a verificação dos seus pressupostos, e concretizar objetivamente o conceito indeterminado «inconveniente para o serviço» para que o afastamento do trabalhador /arguido não venha a ser ilícito e no limite, em algumas situações ser a entidade empregadora pública acusada de violar o direito à ocupação efetiva. 13

Em conclusão:

As entidades empregadoras públicas no âmbito das suas responsabilidades inerentes ao poder de direção e disciplinar devem nomear instrutores que dominem as regras do direito sancionatório público de forma a evitar que os processos disciplinares comuns ou especiais sejam anulados ou nulos, conforme o vício que lhe deu origem colocando em causa a finalidade do direito sancionatório e a sua imprescindibilidade na instituição.

Numa época em que cada vez mais os trabalhadores estão cientes dos seus direitos e deveres, o empregador público deve abster-se de todo tipo de comportamento que possa conduzir a sentimentos de injustiça por parte dos seus colaboradores, designadamente por violação do princípio da igualdade e da imparcialidade no tratamento dos agentes infratores no seio da Instituição.

Na aplicação da suspensão preventiva do trabalhador com vínculo laboral de direito público é essencial conhecer os seus pressupostos sendo um deles, a existência de um processo disciplinar.

Cabe ao instrutor a preocupação de encontrar o equilíbrio entre o direito do empregador aplicar a suspensão preventiva, por um lado, e a salvaguarda dos direitos do trabalhador, por outro, pois, só desta forma a suspensão preventiva é lícita.

Da leitura de várias decisões dos Tribunais Administrativos observa-se um número significativo de processos disciplinares e processos de inquérito que seriam evitados se tivesse existido a preocupação de respeitar o previsto na lei.

Os erros procedimentais no direito sancionatório são acima de tudo injustos, visto que, permitem que o trabalhador infrator não seja penalizado, já que, o processo acaba por ser nulo ou anulado denotando-se a fragilidade da Instituição em matéria disciplinar contribuindo para o enfraquecimento do poder disciplinar da entidade empregadora pública.

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  1. 266.º da CRP e art. 3.º e 4.º do CPA.
  2. Artigo 211.º – Suspensão preventiva: 1 – O trabalhador pode, sob proposta da entidade que tenha instaurado o procedimento disciplinar ou do instrutor, e mediante despacho do dirigente máximo do órgão ou serviço, ser preventivamente suspenso do exercício das suas funções, sem perda da remuneração base, até decisão do procedimento, mas por prazo não superior a 90 dias, sempre que a sua presença se revele inconveniente para o serviço ou para o apuramento da verdade. 2 – A suspensão prevista no número anterior só pode ter lugar em caso de infração punível com sanção disciplinar de suspensão ou superior. 3 – A notificação da suspensão preventiva é acompanhada de indicação, ainda que genérica, da infração ou infrações imputadas ao trabalhador.
  3. 186.º da LGTFP
  4. 195.º a LGTTP
  5. A notificação deve observar o previsto no n.º 1 e 3 do art. 110.º do CPA articulado com a al. c) e e) do n.º 1 do art. 61.º do CPP.
  6. Segundo Paulo Veiga e Moura, «Consideramos, por isso, que a aplicação de qualquer medida cautelar que lese direitos ou interesses legalmente protegidos do trabalhador, incluindo a suspensão preventiva, só será constitucionalmente licita se for precedida da audição do arguido (…)» E acrescenta: (…) Entendemos, como tal, que o despacho que determine a suspensão preventiva do arguido tem de ser precedido da audiência do arguido, sob pena de se estar perante um ato nulo por violação do direito de audiência consagrado no n.º 3 do art. 269.º da CRP e no n.º 1 do art. 203.º da presente lei». Paulo Veiga e Arrimar, Cátia, Comentários à Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, 1º Volume, Almedina., p. 605.
  7. Neste sentido o Ac. STA de 06/07/2023, proc n.º 034/23.7BALSB, no âmbito do EMP.
  8. 224.º da LGTFP. Sobre a admissibilidade dessa impugnação, CARVALHO, Raquel, Comentário ao Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, p. 235.
  9. 112.º e ss do CPTA.
  10. Artigo 199.º, artigos 218.º e 215.º todos do CPP
  11. Ver o n.º 1 do art. 179.º da LGTFP.
  12. 354.º do CT. () Ac. TR Coimbra de 12/04/2018, proc. n.º 8637/17.2T8CBR.C1.
  13. Ver no âmbito do direito privado o TR Évora de 02710/2018, proc n.º 461/18.1T8STR.E1.