Pode a caligrafia ser a nova meditação? Há quem garanta que sim! Além da sua virtude estética, parece trazer benefícios ao nosso bem-estar. Ao longo da tarde, as folhas espalhadas pelas mesas enchem-se de caracteres góticos. Traçadas a pincel, em tons de sépia ou a negro, a nascerem das canetas de aparo cortado, as letras multiplicam-se em folhas que repetem à exaustão palavras aleatórias e até versos do tema «Dunas», um dos maiores êxitos dos GNR.
O workshop de caligrafia, na Faculdade de Arquitetura de Lisboa, vai a meio das 100 horas previstas e os alunos de design passam as tardes de segunda-feira num ambiente descontraído, a reviver uma tradição com centenas de anos. Desde que começou o workshop, os serões de Beatriz Henriques tornaram-se mais animados. «Os amigos pedem-me para lhes escrever o nome ou frases no tipo de letra que aprendi e há sempre conversa», revela.
Inês Alves sempre quis experimentar e já fez os cartões da última Páscoa caligrafados. Revelou-se um talento natural, para admiração de colegas como Tessy Marques que, por ser canhota, demora mais tempo até dominar a técnica. Tessy Marques vê a caligrafia como um futuro hobbie. Já Pedro Fonseca, ao seu lado, aproveita o que aprende no workshop para enriquecer o trabalho como tatuador. Todos reconhecem que é uma atividade relaxante.
Uma atividade que se torna…. viciante!
João Brandão, designer e professor de caligrafia que dirige o workshop, concorda e vai advertindo que esta é uma prática que pode tornar-se viciante. Dá aulas de caligrafia desde os 27 anos e insiste que qualquer pessoa pode aprender. «É uma técnica que se treina, tal como o desenho», refere. Por norma, os principiantes desenham as primeiras letras com canetas de aparo cortado ou pincéis grandes e com as letras romanas, aprendendo dominar as inclinações da caneta que darão os ângulos e os traços finos e grossos.
Só depois aprendem os caracteres itálicos e góticos. «Passado uma hora, já desenham o A e, ao fim do primeiro dia, já conseguem desenhar o nome», garante João Brandão. Os indivíduos canhotos têm mais dificuldades. Não só o material não está pensado para eles, como o próprio desenho das letras está concebido para destros. «O que eu aconselho aos meus alunos é que girem a folha na vertical», diz João Brandão.
Isto permite desenhar mais facilmente cada letra e evita que a mão passe por cima do trabalho já feito, borrando a tinta fresca. Embora grande parte do trabalho de um designer seja feito a computador, os conhecimentos em caligrafia são uma vantagem. Ao permitirem a criação de fontes (tipos de letra) mais rica, valorizam os trabalhos que podem ir da criação de um logótipo, ao menu de um restaurante, passando pelo convite para um casamento ou para o evento de uma casa de alta-costura.
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Tão bom como ioga
Em Espanha, na China e no Japão, a caligrafia é um hobby popular, apreciado tanto pela arte como pela sua eficácia no combate ao stresse. Joana Fonseca, psicóloga clínica da Oficina de Psicologia, confirma as suas potencialidades. «A caligrafia tem efeitos ao nível do relaxamento e regulação de stresse. E tem sido aplicada, também com resultados positivos, em crianças com autismo, hiperatividade, debilidade mental, assim como em casos de Alzheimer, AVC, sintomas psicossomáticos, hipertensão, diabetes e perturbações psiquiátricas», explica.
Um estudo publicado na China, em 2014, que procurava perceber os efeitos da caligrafia em crianças que sobreviveram ao terramoto de 2008, revelou que esta era usada como ferramenta terapêutica e foi eficaz para reduzir níveis de stresse. A explicação reside na maior consciência do corpo que a caligrafia exige, um efeito que pode ser comparado à prática de ioga.
«O corpo é convidado a tornar- se o maior aliado para que, em sintonia com a mente, seja possível colocar no papel aquilo que está no pensamento. É este contacto com o corpo e o aumento de consciência no momento presente que é responsável pelo relaxamento e redução da ansiedade», explica a psicóloga. A isto, a caligrafia junta ainda a vantagem de desenvolver o funcionamento cognitivo a nível da percepção visual, da motricidade fina e da orientação espacial.
Paixão pela arte e materiais
Quem se dedica à caligrafia apaixona-se também pelos materiais. João Brandão tem várias canetas dos anos das décadas de 1930 e 1940, todas com aparo de ouro. É o ouro de 14 quilates que dá a flexibilidade ao aparo, essencial à caligrafia. «A partir de 60 euros já se compra uma boa caneta em segunda mão», garante o designer. Os modelos mais recentes (dos anos das décadas de 1950 e 1960) não têm aparos flexíveis e, por isso, não servem.
Das mailing lists das grandes marcas de roupa, aos menus dos restaurantes, passando pelo lettering das campanhas de publicidade, a estética vintage associada à caligrafia está cada vez mais em voga. O recurso a uma escrita caligrafada conquistou suportes tão improváveis como as paredes das cidades ou a pele de quem as habita. As tatuagens contêm frequentemente palavras caligrafadas. Na street art, nomes como o do artista holandês Niels Shoe Meulman, que em 2007 lançou o conceito de calligraffiti, que une o grafiti e a caligrafia, deram uma maior projeção a esta arte.
E, se ainda não existem tantos cursos como na vizinha Espanha, há já várias universidades em que é possível frequentar aulas, como os institutos politécnicos de Torres Vedras e das Caldas da Rainha e o ESAB de Matosinhos. Além disso, existem os apaixonados de caligrafia como José Brás, «o calígrafo», que divulgam a arte. Existem ainda regularmente iniciativas como o workshop de caligrafia japonesa da Faculdade de Belas Artes de Lisboa ou o verão na ULisboa, onde é possível ter um primeiro contacto com a arte a que os gregos chamavam de «escrita bela».
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A aplicação para iPad que permite fazer o gosto ao dedo
Tudo é feito com o indicador e o dedo médio. A largura entre dedos define a grossura do traço e o movimento os ângulos pretendidos para cada letra. A simplicidade e potencial da Calligraphy Practice, aplicação para o iPad criada por João Brandão, valeram ao projeto o Prémio Nacional de Indústrias Criativas, secção Conteúdos e Novos Media, em 2014.
Com várias pautas que permitem aprender a caligrafar diferentes tipos de letra, a aplicação, dá ainda a possibilidade de exportar os trabalhos para computador em formato vetorial, o que a torna apetecível para designers, além dos entusiastas amadores. Para saber mais sobre este projeto, consulte o site.
Texto: Susana Torrão
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