Conciliar a felicidade e o trabalho e olhar para o emprego como mais do que um salário no fim do mês, apresentam-se como desafios de superação. Para mais, quando vivemos novos tempos, difíceis, como os que nos tem exposto a pandemia de COVID-19 e subsequentes realidades laborais como o teletrabalho.
Cassiana Tavares, Psicóloga do Trabalho, reflete sobre o mundo da atividade profissional. À conversa com o SAPO Lifestyle, a propósito do lançamento do seu livro “A Bíblia da Carreira” (edição Manuscrito), a autora aponta-nos os pilares do bem-estar profissional, os mecanismos para a mudança, e caminhos para o estabelecimento de pontos de contacto entre trabalhadores e organizações.
De acordo com a coordenadora científica e docente em formações avançadas em Psicologia do Trabalho e Gestão de Recursos Humanos no Instituto Português de Psicologia e Outras Ciências, terá de existir “uma participação efetiva dos profissionais nos processos de mudanças”.
Há que criar estratégias de superação num mundo laborar onde as incertezas são muitas, as adaptações rápidas e sucessivas. “Muitas pessoas estão em burnout ou no limite”, sublinha Cassiana Tavares, que nos aponta metas para detetar problemas e avançar com respostas às adversidades.
E, nunca esquecer de colocar as perguntas certas: “Porque estou neste trabalho? O que faço realmente? Posso viver a vida que desejo com esta atividade?
O mundo do trabalho tratado na primeira pessoa por Cassiana Tavares.
É uso dizer-se que desligamos do trabalho quando chegamos a casa. É possível fazer esta separação tão vincada? Não haverá “contaminação mútua”?
Realmente, o trabalho vai connosco quando vamos para casa. Provavelmente, apanhamo-nos a trabalhar mentalmente, muitas vezes. Faz parte da carga mental de um trabalho. E sim, podemos estar no trabalho a pensar na vida privada.
Penso que é importante, termos estratégias, como reservar um bloco de tempo no fim do dia para arrumar as ideias no trabalho. Assim, quando nos sentirmos preocupados podemos lembrar-nos que já organizamos as coisas para o dia seguinte. Isto para deixar um exemplo prático do que temos de fazer ao longo do tempo, para conseguirmos descansar quando estamos em casa.
Penso que é importante, termos estratégias, como reservar um bloco de tempo no fim do dia para arrumar as ideias no trabalho.
Vivemos um tempo diferente, o teletrabalho assume maior protagonismo. Onde estão as virtudes e os perigos neste formato de trabalho?
Há muitas vantagens, quando temos autonomia para o fazer. Permite-nos usar o tempo de viagens para hábitos de vida mais saudáveis, poupar o dinheiro das deslocações e das refeições fora. Ainda podemos viver onde quisermos e prestar serviço para o mundo global. Porém, o revés da moeda é que pode tornar-se mais difícil aprender e partilhar conhecimento em equipa, perde-se companheirismo. E com uma oferta de mão-de-obra global, o valor pago pode ser negociado por baixo. Há ainda o risco de nos desorganizamos e termos um estilo de vida menos saudável e muito misturado com a vida privada – há estudos que nos mostram que os profissionais em casa se sentem obrigadas a apoiar mais a família e os amigos, porque têm um trabalho flexível.
Na verdade, a percentagem de pessoas que tem potencial para realizar o seu trabalho completamente a partir de casa é baixa: segundo o ex-secretário de Estado Pedro Martins, 9%. E as profissões com potencial significativo representam 26,4%- na União Europeia esse potencial médio e alto para o teletrabalho é de 37%. Isso diz-nos que outros fatores, além da tecnologia, têm de ser considerados. Porque já a usamos todos os dias nas organizações.
Ao passar para casa, para dominar o teletrabalho, os objetivos, os meios, as dinâmicas entre as pessoas têm todos de ser revistos, com grande apoio de quem lidera. A maioria de nós tem de transformar a forma de produzir para conseguir trabalhar com sucesso.
Quais são os pilares do bem-estar profissional?
Do geral para o particular: estar num trabalho adequado à vida que queremos viver, ter um estilo de vida saudável e trabalhar com meios adequados, objetivos realistas, num ambiente propicio à aprendizagem e à melhoria continua. É um alinhamento dos motivos para o trabalho com hábitos de saúde e com as condições adequadas. Tudo isto muito dinâmico. Nunca estacionamos no sítio certo. A vida é um jogo de forças, em que estamos sempre a alternar entre momentos de estabilidade e momentos de mudança.
Para estarmos bem, na carreira, ao longo da vida, temos de trabalhar sobre ela. Penso que esta é uma das principais mensagens do livro. É como no casamento, quando desistimos de lutar, não conseguimos ser mais felizes. Na carreira, há que manter o trabalho vivo, dinâmico, vibrante.
Como no casamento, quando desistimos de lutar, não conseguimos ser mais felizes. Na carreira, há que manter o trabalho vivo, dinâmico, vibrante.
A Cassiana Tavares aborda no seu livro os ângulos mortos na carreira. O que são e como fazer destes momentos oportunidades?
Vem no seguimento do que falávamos, porque nós tendemos a cristalizar numa determinada forma. E as organizações também. Então, deixamos de prestar atenção ao que precisa de ser mudado. Na condução, sabemos que os ângulos mortos existem e podemos lidar melhor com eles, ajustando antecipadamente os espelhos e adaptando durante condução a posição da cabeça, quando queremos ultrapassar.
Para avançarmos no trabalho, há que prestar atenção ao que nos é invisível e causa erros, repetição do trabalho que outros já fizeram, dificuldades na tomada de decisão, erros de gestão. Quantas vezes, há uma mensagem a circular que leva as pessoas a agirem de determinada forma e afinal não foi nada disso que se pediu. Ou, faltam meios e insiste-se por exemplo na motivação, quando precisávamos era de reorganizar as condições. É trazer o holofote para o sítio certo.
Se olharmos para os ângulos mortos, encontramos respostas que são oportunidades de progredir, de ultrapassar. E isso implica a colaboração entre colegas e com os decisores.
Da experiência de contactos que traz com trabalhadores, como sintetizaria as principais angústias no trabalho?
Atualmente, a incerteza é a principal. Já vínhamos a falar de mudança sucessivamente, mas havia uma lógica de transição para algo novo e melhor. Apesar das ansiedades em relação à revolução digital, o horizonte soava a progresso. Agora, o presente é incerto. Quanto mais o futuro. Isto obriga-nos a funcionar por hipóteses e a precisar de fazer adaptações muito rápidas e sucessivas, que se traduz em cansaço. Muitas pessoas estão em burnout ou no limite. Estão muito preocupadas com quanto tempo vão conseguir aguentar.
E depois, ainda há uma diferença muito grande entre a definição do que tem de ser feito e a realidade diária. No público, isto é ainda mais grave, mas mesmo no privado, desenham-se objetivos e oferecem-se meios, que depois não permitem às pessoas trabalharem bem. E isto angustia muito os profissionais.
Diz-nos no seu livro: “um emprego é mais do que um salário ao fim do mês”. Não será precisamente este, o salário, o que mais obsta a encetarmos a mudança?
Penso que é o obstáculo por defeito – tal como quando vamos comprar uma coisa, o preço é por norma uma objeção. Porém, se formos honestos, é mais do que isso. Não sabemos se vamos encontrar um lugar melhor; se temos a qualificação; vamos ter de conhecer pessoas novas e adaptar-nos a um novo ambiente; podemos ficar à experiência, em vez de termos algo garantido.
Mas eu pergunto, quando não saímos de um sítio na altura certa, que tipo de pessoa nos tornamos naquele ambiente? Continuamos a ser pessoas que se desenvolvem e têm satisfação? Que contribuem para o bom trabalho? Ou começamos a gerar prejuízo para a organização e para nós próprios, porque nos sentimos definhar?
Que perguntas nos devemos colocar para percebermos o conforto/desconforto face ao emprego que temos?
Porque estou neste trabalho? O que faço realmente? As minhas ações são porque sempre se fez assim ou porque quero fazer da melhor forma? Tenho margem de manobra para fazer melhorias no que faço ou limitam os meus contributos? Posso viver a vida que desejo com esta atividade? Se não posso é por causa da atividade em si e das condições que me autorizam ou, porque eu próprio não estou a viver da forma que deveria? Estas são algumas perguntas genéricas, que aprofundo nos capítulos. Inclusive, no capítulo cinco, abordam-se os problemas de violência laboral, que às vezes, se suportam porque tudo já nos é familiar ou não vemos uma saída.
Coloquemos a questão do lado das organizações. Como podem estas promover um ambiente motivador e de crescimento para o trabalhador?
Cinco condições: tempo, transferência de conhecimento, meios adequados, gestão no terreno e dinâmicas de grupo saudáveis. Dar tempo às pessoas para aprender em conjunto, oferecer os meios de produção adequados, ter os líderes no terreno real do trabalho e promover dinâmicas que incluem todos e dividem o poder. A combinação destas condições cria o potencial para que o profissional seja um agente de transformação do seu meio laboral. As organizações estão muito pressionadas pelo discurso do talento. Querem contratar e reter o talento. Em vez de criar o ambiente que referi para que as pessoas possam crescer, em contexto. Se mudássemos esta visão, haveria mais desenvolvimento.
Hoje, mais do que antes, preparamo-nos, saímos e voltamos a entrar no mercado, quantas vezes forem precisas
Em síntese, quais são as principais competências que tem de apresentar um trabalhador neste início de século XXI?
Essencialmente, tem de dominar conhecimentos gerais, conhecimentos técnicos e soft skills. Não dá para deixar nada de fora. Por exemplo, trabalhar hoje num supermercado, obriga-me a saber falar línguas porque há muitos imigrantes. Ser engenheiro, obriga-me a dominar a comunicação, porque vivemos num ambiente multicultural e os estímulos são muitos, não dá para ser chato a apresentar ideias, por exemplo. E ainda, com tanta qualificação disponível, é impensável ser fraco tecnicamente. Claro que há uma camada que une isto tudo, que é o contexto. As competências têm um valor num determinado emprego. Por isso, o que eu diria é que a competência crítica é a capacidade de aprender. E voltar a aprender. Hoje, mais do que antes, preparamo-nos, saímos e voltamos a entrar no mercado, quantas vezes forem precisas – já assim dizia Joaquim Azevedo em 1997. A capacidade para aprender novas competências é uma das oito competências essenciais propostas pela União Europeia.
No seguimento da pergunta anterior, quais são os grandes desafios para os trabalhadores na próxima década?
Começo por dizer que adaptação é a competência mais pedida em anúncios on-line na União Europeia e em Portugal [segundo a ferramenta Skills-OVATE]. Nós somos seres adaptáveis, por natureza. E também precisamos de estabilidade. Só que na próxima década, a velocidade da mudança, que já sentíamos alta, vai ser ainda maior.
A pressão para a digitalização do trabalho é enorme, 50% das horas trabalhadas no país podem ser automatizadas, segundo a Confederação Empresarial de Portugal, temos falta de pessoas (envelhecimento), estamos num mercado global e vivemos uma pandemia.
Porém, a nosso favor, sabemos que as empresas precisam de pessoas qualificadas, que quando temos formação média ou superior temos maior probabilidade de arranjar emprego e que há setores como a tecnologia, a saúde, a educação e a área social que carecem urgentemente de pessoas.
A mensagem que quero deixar é: tenha um fio condutor. Porque a pressão para mudar vai ser tão grande e constante, que tem de saber onde quer chegar. Vai ser como apanhar a corrente para velejar para um sítio novo ao estilo explorador. Ninguém sabe com certeza onde vamos ter, mas vamos ter de ir, perseguindo o que queremos. Daí a importância de pensar a vida que queremos viver e que significado queremos do nosso trabalho. Repare que na exploração marítima, entre outras coisas, queria chegar-se aos produtos, que estavam lá do outro lado do mundo e era precisa um caminho novo. As pessoas usaram os recursos que tinham para viajar, mas o oceano era desconhecido. E as pessoas foram muito além do que imaginaram. Quero deixar esta mensagem de esperança, apesar de todas as contrariedades.
Em Portugal, temos, genericamente, um contexto laboral que estimula a mudança no trabalho?
Temos um discurso de mudança. Basta circular nas redes sociais e estamos sempre a ler sobre gestão da mudança, adaptação, flexibilidade. A minha crítica é que essas abordagens são tendencialmente de cima para baixo e não há uma participação efetiva dos profissionais nesses processos. Pede-se às pessoas para aderir, simplesmente. E infelizmente, há mudanças que não são aplicáveis ao trabalho real. Vou dar-lhe o exemplo do ensino. Nós temos décadas de atraso entre o que as crianças sabem e fazem na sua vida privada e o que aprendem na escola. Consegue imaginar-se a dar aulas de português a pessoas que escrevem SMS desde que nasceram com palavras que nem constam do dicionário? E será que as pessoas do Ministério da Educação já experimentaram conduzir um ano letivo no século XXI e enfrentar esses desafios? É isso que se pede a quem lidera hoje: conhecer muito bem a arena do trabalho e a partir daí, promover mudanças. Aí sim, teremos um contexto laboral que estimula a mudança no trabalho.
Infelizmente, há mudanças que não são aplicáveis ao trabalho real.
É possível encararmos esta mudança independentemente da idade?
Claro que sim. Se pensarmos que deixamos de mudar, então já estamos mortos. À medida que ficamos mais velhos temos mais certezas do que é certo e do que errado. E isso dá-nos estabilidade. Mas também nos deve dar meios para continuarmos a mudar. Porque a mudança tem como finalidade a adaptação. Por vezes, assumimos que os mais velhos são só difíceis e não lhes damos crédito. E só por isso eles ainda vão ser mais resistentes. Então da parte de quem lidera, há que valorizar o conhecimento que têm. Do nosso lado, que somos ou vamos ser essas pessoas, devemos sempre, mas mesmo sempre, manter um espírito crítico sobre nós próprios e assumir, que enquanto estivermos vivos a mudança há-de fazer parte da nossa vida. É riscar o ditado “burro velho não aprende línguas”.
Na obra que dá aos escaparates fala em “ressuscitar o trabalho morto”, a que se refere?
É um trabalho que se faz sempre igual, porque não queremos ou não nos deixam fazer diferente. O trabalho, na realidade, tem vida, porque todos os dias há desafios. Se respondemos aos desafios sem adaptação o trabalho está morto. Se o trabalho não traz desafios todos os dias está morto. As competências são indiferenciadas e a carga mental é muito baixa.
Essas formas de trabalhar matam-nos aos poucos, porque não lhes podemos responder com inteligência. Logo, empobrecem a nossa mente e têm o risco de nos empobrecer a sério. Uma pessoa que não produz conhecimento de valor, tem mais dificuldade em ser valorizada no mercado.
Um dos objetivos que nos leva a escrever um livro é o de deixar uma marca nos outros. No seu caso, que marca gostaria de deixar nos seus leitores?
Que devemos ter um trabalho que nos faz viver. O trabalho deve dar-nos propósito e um papel na sociedade. E olhe, que podemos mudar de emprego muitas vezes, mas o objetivo há de sempre ser o mesmo. Por isso, a minha mensagem é mesmo: tenha um trabalho (ou trabalhos) que o faz viver.
Entrevista concedida por escrito.
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