O ano de 2017 foi de decisão profunda na vida profissional da socióloga Ana Milhazes. Depois de vários anos a trabalhar na área das tecnologias de informação, Ana despediu-se. Na época, a ativista ambiental sofria de burnout e depressão. Ana teve força para dizer “não”, para limpar a sua vida de artefactos, pensamentos, pessoas e ambientes “tóxicos”. Um processo que começara anos antes, inspirado num movimento que crescia nos Estados Unidos e que teve em Bea Johnson, francesa radicada naquele país e Lauren Singer, duas âncoras para Ana.
Agora, aos 35 anos, a também instrutora de ioga, afirma-se uma pessoa feliz. Revela-o no seu livro “Vida Lixo Zero” (edição Contraponto), obra que a autora e também a sua editora apresentam em papel 100% reciclado e sem plástico na capa. Livro que faz testemunho de como podemos recusar, reduzir, reutilizar, reciclar e decompor, sem com isso perdermos qualidade de vida.
Um lema de vida que, no caso de Ana Milhazes podemos sintetizar como “menos é mais”. Mais felicidade, mais tempo e com ele mais disponibilidade para as pessoas que queremos connosco.
Ana não gosta da palavra “lixo”, usa-a por conveniência na comunicação com os outros. A também fundadora do movimento “Lixo Zero Portugal”, alerta-nos, aqui, nesta conversa, mas também no seu livro, para o sacrifício a que obrigamos o planeta com o nosso estilo de vida.
“Estima-se que cada português produza, em média, 42 quilos de resíduos por mês e 505 quilos por ano” (Dados de 2019 da Agência Portuguesa do Ambiente), conta-nos a autora na introdução à sua obra. Ana reduziu esses resíduos ao mínimo: cabem num frasco de “lixo”. Há que conversar com Ana Milhazes para perceber como uma ex-consumidora compulsiva se torna na cara de um movimento que nos disponibiliza as ferramentas para nos libertar das garras do consumo. A nossa entrevistada é autora da página “Ana, Go Slowly”.
Esta é a primeira de uma série de três entrevistas sobre o movimento "zero waste". Leia a entrevista a Eunice Maia.
Ana, num livro que nos fala de uma vida onde menos é mais, o próprio objeto livro obedece a algumas condições que vão ao encontro daquilo que defende. Quer explicar-nos?
A primeira condição a de que o papel fosse reciclado e a tinta sustentável e a capa sem plástico. Foi desafiante, porque gosto de coisas que são bonitas. Percebi que se tivesse fotografias não seria sustentável. De alguma forma, teria de encontrar o equilíbrio. A editora concordou com as condições, mas teria de pesquisar. Inicialmente pensámos fazer as ilustrações a duas cores, mas é mais difícil de conseguir tintas com cor sustentáveis . Logo, ficaram as ilustrações a preto e branco. De alguma forma espero que o livro seja uma porta de entrada para outras obras. A própria editora ficou sensibilizada para a abordagem.
De 2011 a 2016 reduzi o desperdício. Dei coisas a pessoas que as iriam usar. A grande questão prendeu-se com os resíduos indiferenciados, o que tinha em maior quantidade e as embalagens alimentares de plástico.
Logo no início da obra, deixa-nos alguns dados preocupantes sobre a quantidade de resíduos que produzimos. A Ana conseguiu reduzir essa quantidade para um valor insignificante. Em que momento se dá, na sua vida, este clique para mudar?
Na verdade, é algo que vem comigo desde miúda, a ligação à natureza e a preocupação ambiental. A escola e a sociedade em geral explicam-nos que ao separarmos o lixo já estamos a fazer muito. No meu caso, desde os 19 anos era vegetariana. Achava que ao fazer estas duas coisas, o meu contributo era suficiente para a sustentabilidade. Mas, certo dia, olho para os meus separadores para o lixo e pergunto: ´como é possível uma pessoa tão preocupada com o ambiente acumular tantos resíduos?`. Faço uma pesquisa, encontro os blogues da Bea Johnson [“Zero Waste Home”] e de Lauren Singer [“Trash is for Tossers”] e descubro o estilo de vida desperdício zero. Isto, com pessoas que levavam uma vida normal. Comprei de imediato o eBook da Bea.
De 2011 a 2016 reduzi o desperdício. Dei coisas a pessoas que as iriam usar. A grande questão prendeu-se com os resíduos indiferenciados, o que tinha em maior quantidade e as embalagens alimentares de plástico. Foi a partir dai que nasceu o projeto “Lixo Zero Portugal”. No que respeita aos resíduos indiferenciados foi muito fácil. Comecei a encaminhá-los para compostagem junto de produtores biológicos e entrego-lhes os resíduos todas as semanas.
No que toca às embalagens, na altura fiz uma pesquisa sobre lojas a granel no Porto, mas também em todo o país. Descobri que estava um pouco sozinha. As lojas que vendiam a granel eram as tradicionais e não preponderava o biológico. Comecei a enviar e-mails às marcas a perguntar o que vendiam a granel nas lojas e se podia levar os meus sacos e frascos. Assim surgiu o movimento "Lixo Zero Portugal". Cresceu muito rapidamente.
Porque é que no seu livro o conceito “lixo” aparece sempre entre aspas?
Na verdade, a palavra não devia existir. Todos os excedentes, sobras, resíduos domésticos, das empresas, indústria, deviam ser recursos para usar noutra coisa. Ou seja, inseridos na economia circular em que nada se perde. Mas se usar a palavra lixo, as pessoas sabem a que me refiro. Também soa melhor do que resíduo. E não é só o lixo que é tóxico, também os pensamentos, as próprias pessoas, os passatempos que temos.
Fala de "pessoas tóxicas". Acumulamos pessoas desnecessárias nas nossas vidas?
Sim, sem dúvida. Acho que tem muito a ver com o nosso estilo de vida, com a sociedade portuguesa. Comparativamente com outros países, por exemplo no norte da Europa, vemos que as pessoas são mais francas, não estão com rodeios. No nosso país, no mundo do trabalho, mas mesmo nas relações familiares, temos de fazer o chamado “frete” com algumas pessoas e não temos coragem de dizer que não. Porque, de alguma forma na nossa sociedade o não é visto como negativo. Mas ao dizer não, estou a abrir uma porta para outras coisas.
É libertador?
Sim. Se tenho a certeza de que não quero algo, digo que não. Claro que nos sentimos mal quando fazemos o tal “frete”. Não estamos a ser fiéis a nós mesmos. No mundo do trabalho também acontecia muito.
A Ana ganhou tempo com tudo isto?
Na apresentação do livro, no Porto, disse isso. O tempo é um dos recursos mais limitados na nossa vida, logo muito valioso. Se assim pensarmos, não perderemos tanto tempo com as tais pessoas, ou nas compras e nas lojas.
Vivemos numa sociedade onde pensar minimalista não é sinónimo de uma vida bem-sucedida? Nunca nos satisfazemos com o que já temos, procurando consolo no que não temos.
Sim e experimentei isso na minha vida. Também contactei com pessoas que passaram pelo mesmo. Desde miúda fui ensinada a estar sempre à procura, em ter mais, a comprar mais. No meu caso, era viciada em compras, roupas e sapatos. Mas a felicidade era rápida. Quando comprava, no minuto seguinte já estava insatisfeita. Quando encontrei o minimalismo, percebi que as pessoas que o praticavam eram genuinamente felizes. Experimentei e senti isso mesmo. Por um lado, reduzi o que tinha, poupei tempo com isso, com a própria ida às compras. Depois, ocupei o tempo com coisas que me deixam feliz a longo prazo, como por exemplo estar na natureza, ir a um concerto, estar com as pessoas de quem gosto. Ou seja, a felicidade ligada às coisas é efémera, a ligada às experiências dura mais tempo e fica retida no cérebro. Imagine que vai um dia à praia e é espetacular; o facto de o recordar mais tarde, leva o cérebro a não perceber se está, ou não, na praia. Sempre tive a tendência a partir da adolescência para ser um pouco depressiva. E a minha nova atitude teve impacto positivo aí.
Comparativamente com outros países, por exemplo no norte da Europa, vemos que as pessoas são mais francas, não estão com rodeios. No nosso país, no mundo do trabalho, mas mesmo nas relações familiares, temos de fazer o chamado “frete” com algumas pessoas
Temos uma economia mundial assente no crescimento incessante. É possível adotar o princípio dos “5 rs” [recusar, reduzir, reutilizar, reciclar, decompor – rot-] e mesmo assim não entrarmos numa infindável crise económica global?
Acredito que é possível. Para já, não mudamos todos de um dia para o outro, há um tempo de adaptação. Deve haver uma alteração a vários níveis, a começar também nas universidades. Nos cursos de gestão, passa-se a ideia de que as empresas têm sempre de crescer. O facto de consumirmos menos, levará as coisas a terem o seu valor real. Uma t-shirt não vai custar 5,00 euros, mas 30,00 euros, ou mais, por exemplo. Iremos comprar menos, mas iremos adquirir com qualidade. O trabalho também se vai ajustar. A verdade é que as pessoas podem trabalhar menos. Imagine que a pessoa trabalha por turnos mais pequenos, recebe um salário mais justo. A economia acabará por se ajustar. De que vale gerar tanto dinheiro se nos extinguirmos? Não há racionalidade. Por exemplo, em Miami onde o mar ameaça a zona costeira continuam a vender casas. Tem lógica?
Estamos a perder a dimensão humana das coisas com a atual economia global?
Continuamos a pensar como país, mas devíamos pensar à escala global onde a questão demográfica não se prende com a falta de nascimentos, pelo contrário. São estas incoerências que não consigo perceber. A ideia de incentivar os nascimentos nesta escala global não faz sentido. Não acho que as pessoas devam todas deixar de ter filhos, mas há que pensar que mundo lhes estão a deixar. Não sei se uma criança que nasça agora vai ter futuro.
A verdade é que as pessoas podem trabalhar menos. Imagine que a pessoa trabalha por turnos mais pequenos, recebe um salário mais justo. A economia acabará por se ajustar.
Há um número no seu livro chocante. Falamos muito da quantidade de água necessária para produzir um quilo de carne. Contudo, para produzir uma t-shirt são gastos 2700 litros de água…
De facto, há uns anos ninguém falava da carne. Se não procurarmos esta informação ela não vai aparecer. Quando vamos a uma loja não aparece na etiqueta quantos litros de água foram necessários para a sua produção. Na verdade, esse é o futuro, a informação estar disponível. Quando vou fazer uma compra, vou fazê-la 100% informada.
Em relação à indústria da moda fiquei chocada e nunca pensei que houvesse tanto sofrimento humano. Compramos uma t-shirt a 5,00 euros e inúmeras mulheres tiveram de sofrer, ficaram afastadas dos filhos. Até mesmo crianças estão envolvidas no processo de produção. No dia das auditorias as empresas sabem que estas vão às instalações e as crianças são previamente retiradas. Neste caso, se de alguma forma conseguirmos comprar em Portugal, conhecermos os modos de produção, processos mais transparentes, também sabemos a quem estamos a entregar o nosso dinheiro.
Não a preocupa o facto de que o modelo seguido por países em vias de desenvolvimento ou com elevado crescimento populacional se baseie no modelo “falido” ocidental?
Se os países em desenvolvimento estivessem com o nível de consumo semelhante ao nosso, o planeta já não existiria. Julgo que deveriam aprender com os nossos erros. No fundo, quem governa continua a seguir o modelo económico de que falámos. Por isso, acredito muito no poder do individuo.
A Ana conseguiu reduzir os seus resíduos ao conteúdo de um frasco. Mas quer reduzir ainda mais…
Tento sempre fazê-lo. Vai depender sempre de onde estou, se vou viajar ou não. Para mim, saber que os meus resíduos estão dentro de um ´frasquinho` é como um troféu. Tento contactar as marcas dando sugestões. Por exemplo, em relação às lentes de contacto, que não posso deixar de usar, contacto as empresas para as reciclarem como acontece nos Estados Unidos. Outro exemplo, porque não se estampa na roupa a informação que está nas etiquetas?
Tento contactar as marcas dando sugestões. Por exemplo, em relação às lentes de contacto, que não posso deixar de usar, contacto as empresas para as reciclarem como acontece nos Estados Unidos.
Quando faz esse contacto recebe uma resposta positiva?
Muitas vezes é a resposta proforma. Nem sempre é assim. Ainda recentemente enviei uma sugestão para uma empresa produtora de mel a propósito de etiquetas que podiam vir impressas no rótulo. Explicaram-me que quem as produzia eram pessoas com poucos recursos, algumas já idosas, que conheciam o mel. A minha sugestão foi que estivesse essa informação impressa no frasco, ou com um código QR, que apontasse para mais informação on-line sobre aquela comunidade.
Imagine que sou uma pessoa que não mantém esta relação de sustentabilidade para com o planeta. O que me dirá o seu livro?
Que saiba recusar o descartável, uma palavra que começou a ser usada há alguns anos. Na saúde ainda é compreensível que haja descartáveis. De resto, já nem nos lembramos como era a vida antes do descartável. Veja-se as garrafinhas de plástico, os copos para o café. Se os recusarmos iremos ficar mais conscientes.
Aliada a esta questão, a partir do momento em que tem o livro na mão, há que começar já hoje. Se o tempo lhe escassear, leia por capítulos e ponha cada um deles em prática. No livro deixo o meu exemplo de vida, com hábitos que tenho há muito e atitudes novas.
Ana, para terminarmos, como está o seu movimento “Lixo Zero Portugal”?
Acaba por ser um movimento que qualquer pessoa pode representar. Não penso nos números. Quero que mais pessoas façam parte do grupo, que falem, se entreajudem, não se julguem. No mundo da internet é muito fácil as pessoas criticarem-se. Com radicalismos é fácil afastar os recém-chegados, mesmo que sejam meros curiosos. Se chegam ao movimento e são hostilizados não vão querer ali estar. Tento fazer o melhor todos os dias. Ser-se sustentável não corresponde a uma vida de sacrifício.
Esta é a primeira de uma série de três entrevistas sobre o movimento "zero waste". Leia a entrevista a Eunice Maia.
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