Joana Rita Sousa é uma andarilha. Filósofa e perguntóloga (saberemos o que é uma perguntóloga no correr desta entrevista), percorre o país a convidar os mais novos a desenvolver o pensamento crítico. Sempre o “porquê?”, num caminho de genuíno interesse pela descoberta, mesmo quando a sociedade nos convoca para certezas sem margem para dúvidas. Parar para pensar na pergunta de outra pessoa, exercer a liberdade de pensar. Porque, para Joana, tal como lemos na sinopse ao livro que assina, “uma cabeça em cima dos ombros não é sinónimo de saber pensar”. Na obra que chega agora aos escaparates, Como desenvolver o pensamento crítico nas crianças (edição Manuscrito), a autora, fundadora da filocriatividade, convoca-nos ao exercício. Sim, ao exercício do pensamento crítico. “Este é como um músculo, sem a prática constante definha, perde força, agilidade e resistência. Com o tempo começa a ficar pequenino...tão pequenino que ‘porque sim’ até parece uma resposta”, salienta Joana na apresentação que faz ao seu livro.

As páginas que servem de mote à presente conversa resultam de muitos anos de Joana a ensinar a perguntar “porquê”. A mestre em Filosofia pela Universidade dos Açores, deixa-nos uma advertência, a utilidade daquilo que nos traz depende de nós. Ajudar as crianças a desenvolverem o seu pensamento crítico é um trabalho à priori dos adultos. Joana oferece-nos as ferramentas de trabalho. Mas, há que saber “parar, pensar, escutar e dialogar”, como subintitula o livro. Vamos às perguntas e aos muitos caminhos que nos deixam as respostas.

Define-se como uma “perguntóloga”. Vivemos um quotidiano onde escasseiam os “perguntólogos/gas” e imperam as certezas isentas de questão? Se sim, encontra uma explicação?

A explicação poderá passar por examinar que tipo de perguntas fazemos e o motivo que nos leva a fazê-las. Pergunto para confirmar se tenho razão? Pergunto para praticar a dúvida sobre a minha própria ideia? Pergunto porque quero genuinamente saber algo? Pergunto só para cumprir um certo protocolo? Pergunto para verificar se a outra pessoa sabe uma certa matéria? Pergunto para escutar outras ideias?

“Se fizéssemos um referendo global, possivelmente a maioria das pessoas votaria para que as redes sociais desaparecessem” – Álvaro Bilbao, neuropsicólogo
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Estas são as perguntas que a pergunta do Jorge me suscita. Parar para pensar na pergunta de outra pessoa e nas perguntas que essa pergunta me provoca é um exercício que faço muitas vezes, antes de arriscar respostas.

Vivemos um quotidiano onde escasseiam as pessoas perguntólogas? Diria que gostaria que houvesse mais gente, de todas as idades, entusiasmada com a ideia de fazer perguntas e de as investigar. Mas digo isto por ser uma pessoa profundamente enviesada no que a perguntas diz respeito: estimo-as muito. Também sei que é perfeitamente possível viver sem esta obsessão que tenho pelas perguntas.

Gostaria que as pessoas tivessem tempo e disponibilidade para avaliar cuidadosamente os assuntos que as incomodam para criar opiniões fundamentadas, para agir razoavelmente no mundo que nos rodeia. Porém, tudo à nossa volta nos empurra mais para a precipitação do pensamento e da criação apressada de certezas.

Afirmar que tenho a certeza de alguma coisa é difícil, pois penso como uma pessoa cientista: investigo um assunto para encontrar uma resposta razoável, sabendo que poderei ter de rever essa resposta, caso surjam elementos que o justifiquem. Talvez tenha uma certeza, sim: a certeza de que terei sempre muitas dúvidas.

Gostaria que as pessoas tivessem tempo e disponibilidade para avaliar cuidadosamente os assuntos que as incomodam para criar opiniões fundamentadas.

A Joana Rita Sousa é fundadora da filocriatividade. Quer explicar-nos do que se trata?

A filocriatividade é o nome do projeto que iniciei em 2008. Dedico-me à filosofia para/com crianças e jovens desde essa altura, atuando como formadora, mentora e consultora e também como facilitadora (ou mediadora) de oficinas de filosofia.

Desde 2008 já desenvolvi cerca de 2100 oficinas para crianças e jovens, desde o jardim-de-infância até ao ensino secundário. Também tenho criado e ministrado formações para pessoas adultas que trabalham na área da educação. Tenho trabalhado em Portugal, de norte a sul e ilhas dos Açores à Madeira, e também em Espanha e Moçambique. Graças às videoconferências tenho colaborado com pessoas e projetos dos EUA, Brasil, Roménia, Reino Unido e Espanha.

Dinamizo oficinas nos mais diversos contextos: jardins-de-infância, escolas ou bibliotecas escolares, bibliotecas municipais, museus, cemitérios, ginásios, escolas de floresta, universidades séniores, festivais literários. Colaboro com o Festival de Filosofia de Abrantes desde a sua 1.ª edição, em 2017. Na companhia da Celeste Machado criei os encontros de filosofia para/com crianças e criatividade, Sentir Pensamentos | Pensar Sentidos. Em Junho participo no Festival Internacional de Filosofia de Cascais.

Convoca os leitores do seu livro a exercerem o pensamento crítico. Como forma de dissipar definições erradas acerca do que falamos, como pode definir pensamento crítico?

Permita-me assinalar que esta pergunta é realmente importante. Tendo em conta que há tantas formas de entender pensamento crítico, importa que eu esclareça qual é a minha leitura. Assim, evitamos desentendimentos, pois o Jorge pode ter uma outra ideia de pensamento crítico e é natural que leia o meu discurso com as lentes dessa ideia. Se eu avançar com a minha definição, o Jorge fica mais esclarecido e criamos um ponto de partida comum.

Vou citar os meus amigos Vitor e Evelyn Lima, da escola Isto Não É Filosofia: “O pensamento crítico é a aplicação cuidadosa da razão para decidir em que acreditar e, portanto, como agir.”

Desenvolver o pensamento crítico e a criatividade trazem implícita a inquietação?

Pensar é algo que nos inquieta.  A ideia que referi há pouco, “a certeza de que temos dúvidas”, surgiu no final de uma oficina com crianças do 1.º ciclo. Pedi às crianças que avaliassem o trabalho que fizemos, na tentativa de responder à pergunta “o que é a filosofia?” com base na experiência daquela oficina. Uma das crianças disse que a filosofia tinha a ver com a certeza de que temos dúvidas. Isso diz muito sobre a inquietação que as perguntas e os diálogos provocam. Pensar critica e criticamente, fazer um esforço deliberado nesse sentido, é uma forma de dar resposta(s) às inquietações que decorrem do facto de existirmos no mundo.

Num tempo acelerado, injetado de informação e desinformação, de respostas imediatas e pouco refletidas, como se consegue fazer vingar os pilares da pessoa pensadora crítica?

Fica difícil, não é? Tudo à nossa volta grita pressa e precipitação. É difícil, mas é possível. Exige um esforço deliberado para dar um passo atrás perante uma informação que me suscita dúvidas, analisar a fonte dessa informação. Talvez ajude desligar notificações e cultivar o JOMO (Joy of Missing Out). Não tenho de me pronunciar sobre tudo o que acontece. Posso escolher as coisas perante as quais quero criar uma opinião fundamentada. Posso e devo, caso contrário sou engolida por “achismos”.

Os pilares da pessoa pensadora crítica só conseguem vingar se cada pessoa se comprometer. É um pouco como a nossa relação com o exercício físico: não basta dizer que vamos começar a correr ou a levantar pesos. Temos de criar uma rotina que nos permita um tempo para a corrida ou para o levantamento dos pesos. Há dias nos quais custa mais, noutros custa menos. Sabemos que a consistência é determinante para sermos pessoas bem-sucedidas.

Problemas complexos não se resolvem com propostas simplistas, superficiais. Exigem tempo.

Devíamos ter no bolso uma carta que diz 'não sei' para nos lembrar que podemos fazer uso dela mais vezes.

Defende que o desenvolvimento do pensamento crítico começa em pequenas atitudes diárias. Pode dar-nos alguns exemplos?

Dizer não sei. É muito importante assumir que não sabemos quando não sabemos. Também é importante dizer que não queremos saber de tudo, que escolhemos os tópicos sobre os quais nos vamos pronunciar. Devíamos ter no bolso uma carta que diz “não sei” para nos lembrar que podemos fazer uso dela mais vezes.

Prestar atenção às perguntas que fazemos, registando-as em papel para podermos pensar sobre elas. Usar perguntas de esclarecimento quando queremos pensar um pouco mais e ganhar algum tempo, por exemplo: “Podes explicar melhor?” ou “Preciso da tua ajuda para entender o que é X” ou “O que queres dizer com Y?”.

Esclarecer conceitos, tal como aconteceu anteriormente, com a pergunta do Jorge sobre o pensamento crítico. É fundamental explicarmos às pessoas com quem estamos a dialogar o que entendemos por X ou Y e escutar se o seu entendimento é igual ou diferente do nosso.

Evitar a precipitação. Não temos de ter opiniões sobre tudo. Se alguém comenta algo sobre uma notícia e não estamos suficientemente informados e se o assunto é do nosso interesse, então devemos ir procurar informação antes de opinar.

Este seu livro apesar de se dirigir a adultos tem como fim as crianças e a relação dos mais velhos com estas. Procura a Joana desenvolver o pensamento crítico nos mais pequenos. A escola, tal como a arquitetamos, não está a fazer este trabalho? 

A escola, ou melhor, as pessoas que trabalham nas escolas, estão a fazer muitos trabalhos, muitas vezes ao mesmo tempo. Nessa vida acelerada, por vezes, escapam-nos coisas tão simples como escutar as crianças e os jovens. Em 2021 o Conselho Nacional de Educação redigiu uma recomendação intitulada: "A voz das crianças e dos jovens na educação escolar".

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Escutar o que as crianças e os jovens têm para dizer ou para perguntar é fundamental. Como é que isso se faz? Eis alguns comentários comuns: “Não temos tempo, no meio de conteúdos para dar, efemérides para assinalar, festas de final de ano, testes para dar e corrigir isto e aquilo. E as reuniões?”

Temos de abrir mão de algumas coisas. Uma professora ou um professor pode começar por dedicar dez minutos na semana para um exercício simples de perguntas. Em vez de avançar com a matéria nos primeiros momentos da aula, pode convidar as crianças a pensar no assunto, a explorar a temática. Noutros momentos pode convidar as crianças a decidirem como vão trabalhar a matéria X.

O Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória sublinha a importância de “formar pessoas autónomas e responsáveis e cidadãos ativos”, assumindo o contexto diverso, mutável e incerto do mundo”.

Há uns anos escutei o Miguel Esteves Cardoso a dizer algo que fez eco na minha cabeça; era qualquer coisa como 'para uma criança, um adulto é sempre um gigante'.

Afirma que devemos olhar para as crianças “no mesmo plano”. Qual o alcance destas suas palavras?

Há uns anos escutei o Miguel Esteves Cardoso a dizer algo que fez eco na minha cabeça; era qualquer coisa como “para uma criança, um adulto é sempre um gigante”. Isto fez-me pensar nessa ideia de estarmos no mesmo plano do que as crianças. Numa oficina procuro não parecer um gigante e sento-me ao mesmo nível das crianças, seja no chão ou em cadeiras. Nem sempre é possível essa gestão, porque implica lidar com um espaço físico que não posso modificar.

Devemos encarar com seriedade as observações das crianças, escutando-as. A criança está a descobrir o mundo, faz uma pergunta sobre isto ou aquilo e o que faz a pessoa adulta? Frequentemente, nem a deixamos terminar a intervenção. Não escutamos até ao fim. Interrompemos e dizemos “ah, mas isso não é assim” ou “pois, dizes isso porque és pequenina”.

Temos de olhar a infância como um tempo em si mesmo e não como um estado que nos vai levar à adolescência e depois ao tempo da “adultez”. A infância deve ser olhada e considerada com seriedade, as crianças devem ser olhadas como pessoas completas e não como projetos para a idade adulta. As crianças não são o amanhã, as crianças já são hoje.

A Filosofia para Crianças, ou seja, o programa que foi inicialmente proposto por Lipman e Sharp, defende que as crianças são capazes de pensar e agir filosoficamente no mundo. Cabe-nos abrir espaço na roda para as vozes das crianças e dos jovens. Cabe-nos escutar com seriedade essas vozes e dialogar, de igual para igual.

A arte de perguntar: Joana Rita Sousa, a “perguntóloga” que acende o pensamento crítico nas crianças
A arte de perguntar: Joana Rita Sousa, a “perguntóloga” que acende o pensamento crítico nas crianças créditos: Manuscrito

De que forma “veste” a Filosofia o papel de desenvolvimento do pensamento crítico e a criatividade nos mais pequenos?

O Professor António de Castro Caeiro apresenta-nos uma leitura da palavra filosofia que é diferente daquela que nos acostumámos a ler ou a ouvir: obsessão pela transparência.

A minha prática filosófica assenta no diálogo e o foco desse diálogo passa por criar pensamento que nos ajude a encontrar clareza. Clareza nas perguntas e nas respostas. O diálogo é um jogo que me permite encontrar um pensamento mais claro, que me convida a contemplar outros pontos de vista, a rever as minhas ideias, a voltar a pensar e a lidar com a confusão e a incerteza. Perseguimos a clareza.  Numa oficina de filosofia com o 1.º ciclo houve uma criança que disse que a experiência do diálogo permitiu ter a certeza de que temos dúvidas.

Uma oficina de filosofia permite exercitar elementos do pensamento crítico e do pensamento criativo. Esse cruzamento é visível quando inventamos perguntas, desenhamos cenários, ponderamos hipóteses, consideramos possibilidades, avaliamos as ideias, para agir no mundo.

Porque sublinha a Joana a importância de praticarmos o espanto? Ainda há margem para nos espantarmos neste mundo tão povoado de imagens e mensagens exacerbadas?

Permita-me trazer para esta conversa as palavras da filósofa brasileira Marilena Chaui: "O espanto e a admiração, assim como antes a dúvida e a perplexidade, nos fazem querer saber o que não sabíamos, nos fazem querer sair do estado de insegurança ou de encantamento, nos fazem perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza. Quando isso acontece, estamos na disposição de espírito chamada busca da verdade." [Convite à Filosofia]

Ainda há margem para praticarmos o espanto, ou seja, para nos permitirmos pensar as coisas pela primeira vez e pensar o que ainda não tinha pensado. Escutar outras pessoas permite-nos fazer isso, permite-nos dizer” olha, nunca tinha pensado nisso”. Temos de marcar na agenda uma hora para sair para o mundo e procurar o espanto, ou deixar que o espanto nos encontre.

Há alguma pergunta que a Joana se coloque todos os dias e para a qual ainda não encontrou uma resposta?

Todos os dias me pergunto: “O que é que estou aqui a fazer?”. Todos os dias arrisco uma resposta, que vai variando.