Nasceu na Normandia em 1936, foi professor da Universidade de Tours e de Sorbonne, em Paris e, há décadas, que dedica a sua obra livresca a temas tão diversos como a paisagem, o silêncio, a ignorância, a relação com o mar e o céu, a meteorologia ou a paixão pelo vento. Alain Corbin oferece desta feita aos escaparates um livro que se detém no descanso. Em História do Repouso (edição Quetzal), o autor questiona aquilo que erradamente entendemos atualmente como descanso. Confundimo-lo com momentos de relaxamento, diversão e tensão, mais tarefas, o que equivale a substituir a fadiga por mais tensão, mais tarefas, mais disciplina e mais consumo.
“Recordo-me de ouvir frequentemente, quando era criança a frase: ‘Não incomodes, está a descansar’. Esses momentos eram marcados por uma espécie de solenidade e sacralidade”, escreve Alain Corbin na introdução ao seu livro, para nos propor um périplo a este tempo hoje quase perdido, o de nos reconciliarmos com o “a verdadeira noção de repouso dos nossos antepassados e experimentar a vertigem do ser que os caracteriza”.
Obra que, como nos descreve o autor, percorre “o caminho que vai desde a época em que o repouso se identificava com a salvação, ou seja, com um estado de eternidade feliz, até ao ‘grande século do repouso’, que se estende, dizendo-o de uma forma simples, do último terço do século XIX a meados do século XX”.
De História do Repouso, prémio Étienne de La Boétie de 2022, publicamos o excerto abaixo.
“O retiro e a reforma ou a ‘arte de forjar um repouso’”
Há um tipo de repouso muito debatido nos séculos XVII e XVIII — trata-se do “retiro” e da “reforma” dos homens e, mais secundariamente, das mulheres, que “no final da vida” têm de se preocupar com “o tempo que lhes resta”, segundo a expressão utilizada por La Rochefoucauld. No fim do século XVI, Montaigne aborda várias vezes este tema e sublinha que há um momento em que nos devemos retirar para descansar: “Vivemos que baste para os outros; vivamos para nós, pelo menos no nosso final da vida. Orientemos para nós e para o nosso bem-estar os nossos pensamentos e intenções”. “As nossas forças abandonam-nos; poupemo-las e concentremo-las em nós”.
A decisão nem sempre é fácil: “Não é coisa pouca organizar tranquilamente a nossa retirada”; “preparemo-nos para isso; façamos as malas e as despedidas em boa hora dos nossos companheiros”. “Há temperamentos mais ajustados que outros a estes preceitos do retiro”, sendo particularmente difícil para as “almas ativas e ocupadas que abraçam tudo e se comprometem por toda a parte”.
Montaigne detém-se longamente na decisão que devemos tomar de nos retirar em prol dos filhos. Um pai “combalido pelos anos e pelas dores, privado, pela doença e falta de saúde” deve ter “vontade de despir-se e deitar-se”. Como tal, exorta um fidalgo viúvo e “muito velho”, “porém, de uma velhice ainda verde”, a deixar a casa ao seu filho e “retirar-se para uma outra propriedade sua, vizinha, onde ninguém possa incomodar o seu sossego…”
Para as pessoas mais sábias, o essencial é forjar um repouso. Montaigne enumera uma série de estratégias que permitem alcançar este objetivo.
O retiro — ou a reforma — é essencialmente um abandono. Montaigne enumera o que deve ser abandonado: “aquele que se retira […] deve abandonar toda a espécie de esforço […] e evitar, em geral, as paixões que impedem a tranquilidade do corpo e da alma, e escolher a via mais conforme aos seus gostos”. “A ambição é a disposição de espírito mais contrária a um retiro. A glória e a serenidade são coisas que não habitam o mesmo refúgio”. Numa perspetiva estoica, o ideal é “viver o final da sua vida na sombra”. “Aquele que se retira, aborrecido e desgostoso com a vida comunitária, deve conformar a sua vida às regras da razão, ordená-la e organizá-la a partir de uma reflexão prévia”. Deve evitar todos os tormentos.
Na reforma, cada um deve forjar o seu repouso; o que implica “contentar-se consigo mesmo”, “conversar consigo mesmo, deter-se e concentrar-se em si mesmo”. “A melhor coisa do mundo é saber estar consigo mesmo”. Deste modo, “há que conservar apenas o que é necessário para manter o alento” e evitar os “inconvenientes” de uma “ociosidade frouxa e letárgica”. Por conseguinte, conclui, não deve ler-se apenas “livros agradáveis ou fáceis” ou “que me consolam e me aconselham quanto às regras a adotar para a minha vida e morte”. Em suma, mais vale aguçar o apetite pelo que lhe resta e por aquilo que a idade ainda não lhe roubou.
A ocupação a eleger “deve ser uma ocupação que não seja penosa nem entediante […]. Tal ocupação depende do gosto particular de cada um”. A este propósito, Montaigne confessa detestar os afazeres domésticos e aconselha aos que se preparam para um “rico e opulento retiro”, “a deixar aos teus criados esse baixo e repugnante cuidado da casa”.
Montaigne varre assim todos os obstáculos que levam a recear o repouso devido ao medo de soçobrar no tédio.
Um século mais tarde, La Rochefoucauld analisa minuciosamente “todas as razões naturais que levam os velhos a retirarem-se dos negócios do mundo: as alterações de humor, a condição física e o enfraquecimento orgânico levam as pessoas, e a maior parte dos animais, a afastarem-se pouco a pouco dos seus semelhantes. O orgulho, que é inseparável do amor-próprio, substitui-se-lhes à razão: já não podem ser lisonjeados pela maior parte das coisas que lisonjeiam os outros […]. “Além disso, viram morrer muitos dos seus amigos […] e já quase não tiram partido da glória”.
“Cada dia lhes leva algo de si mesmos; já não possuem vitalidade suficiente para desfrutar daquilo que possuem e muito menos para alcançar o que desejam; à sua frente só veem desgostos, doenças, abatimento; tudo está visto e nada pode vir a ter para eles a graça da novidade”.
O pessimismo presente nas reflexões de La Rochefoucauld é temperado aqui e ali por alguns pensamentos positivos. Aos homens reformados, “desenganados de desejos inúteis”, resta-lhes “as coisas submetidas à sua vontade”. “O seu gosto […] vira-se então para os objetos mudos e insensíveis; os edifícios, a agricultura, a economia, o estudo”; “são senhores dos seus desígnios e das suas ocupações”.
Mas La Rochefoucauld vai mais longe. Citando Lucrécio, desafia um reformado: “Porque não te retiras da vida como um comensal satisfeito, ou te concedes serenamente, ó tolo, um tranquilo repouso?” Escusado será dizer que, naquele tempo, não era o cansaço que impunha o repouso, mas a descontração, a ausência de preocupações ou o desejo de se afastar da agitação. Neste sentido, o relaxamento inerente ao repouso permite ao espírito regenerar-se e ao indivíduo alcançar mais sabedoria e serenidade; sem esquecer "a beatitude da alma que a consola de todas as perdas e lhe substitui qualquer outro bem".
La Rochefoucauld considera, tal como Montaigne, que “quando não encontramos repouso em nós mesmos, é inútil procurá-lo fora”. No entanto, faz alusão ao “medo de nos encontramos a nós mesmos”, o qual, segundo ele, é diferente e mais penoso que o simples tédio.
Muitos moralistas dos séculos XVII e XVIII abordaram a noção de repouso. As citações que se seguem ilustram bem o que acabámos de dizer. Segundo Madame de Sablé: “A posse de muitos bens não traz o repouso que há em não os desejar”. E, segundo Étienne-François de Vernage, “o repouso do homem depende da serenidade das suas paixões e da supressão das inquietações e das preocupações supérfluas. É em vão que o busca noutro lugar».
As reflexões de La Bruyère destacam-se pela sua profundidade: “O maior de todos os bens é o repouso, o retiro num lugar que seja seu domínio”. ”A vida é curta e cheia de aborrecimentos, passamo-la quase toda a desejar o que não temos. Adiamos sempre para mais tarde o repouso e as alegrias que cada um se promete, para uma idade, muitas vezes, em que já desapareceu o que há de melhor na vida: a saúde e a juventude”. La Bruyère sublinha a importância do repouso enquanto objeto de desejo, exortando os tolos a desejar três coisas: “saúde, repouso e liberdade”.
Dufresny faz notar que o repouso é objeto de desejo para muitas pessoas, nomeadamente para os cortesãos. Um deles, com setenta e cinco anos, confia-lhe: “Trabalhei muito, e só trabalhei para ter meios que me permitissem viver em repouso; espero poder descansar daqui a alguns anos.» Desiludido e irónico, Dufresny acrescenta: “Diria mesmo que quem possui um tal carácter trabalha até morrer, para descansar o resto da sua vida”.
Um século mais tarde, Diderot exprime o mesmo sentimento. Evocando os viajantes a bordo de um barco que naufraga, à imagem de um quadro de Joseph Vernet que Diderot se orgulha de possuir, imagina os pensamentos de um deles, um “furioso” que contava com ganhos consideráveis no final da travessia: “Sonhara com o repouso e a reforma; era a sua última viagem. Durante o trajeto, contara pelos dedos centenas de vezes o montante da sua fortuna; descobrira como empregá-la: e eis todas as suas esperanças frustradas”.
O homem está em tumulto ou em repouso, escreve Diderot no seu Ensaios sobre a Pintura; “o momento do tumulto e o momento do repouso têm em comum o facto de cada um mostrar aquilo que é”.
Na viragem do século XVIII para o século XIX, Joseph Joubert retoma por várias vezes, nos seus Cadernos, o tema da velhice e do repouso. Joubert deseja: “Repouso aos bons! Paz aos tranquilos!” Segundo ele, o primeiro destes dois estados é essencial porque “a privação de repouso tem grande sentido para a alma. O repouso não é insignificante para ela. Representa um estado em que aquela se abandona unicamente ao seu próprio movimento, sem pulsões externas”, longe da agitação: o desencanto na velhice é uma grande descoberta”.
Retomando uma ideia desenvolvida pelos moralistas que o antecederam, Joubert assegura que “trabalhar para nada ter de fazer, a isso se resume a vida humana. O movimento conduz ao repouso, o repouso sustenta-se, alimenta-se a si mesmo”. Esta exaltação do repouso é acompanhada pela da velhice que possui sabedoria.
“Vizinha da eternidade, [a velhice] é uma espécie de sacerdócio”.
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