Nascido em França no ano de 1936, Alain Corbin destaca-se nas últimas décadas por uma análise histórica com ênfase nas experiências sensoriais e culturais do passado. Nos seus trabalhos endereçados ao grande público, Corbin tem explorado temas menos usuais na historiografia tradicional, como o olfato, a audição, a história dos ventos, da sombra, do prazer e, mais recentemente, o silêncio.

A obra História do Silêncio (edição Quetzal), publicada originalmente em 2016, olha-o não apenas como ausência de som, mas como um fenómeno social e cultural que possui diversas interpretações e funções ao longo, particularmente na França dos séculos XVIII e XIX.

Corbin baseia-se numa ampla variedade de fontes, incluindo documentos administrativos, textos literários, registos pessoais e fontes oficiais, para compreender como o silêncio foi experienciado, regulado e valorizado em diferentes contextos. O autor argumenta que, durante o Iluminismo e a Revolução Industrial, o silêncio passou a ser visto simultaneamente como uma prática virtuosa, ligada à introspeção e à meditação, e como um mecanismo de controlo social, sobretudo em espaços como escolas, prisões e instituições religiosas.

A obra destaca também a transformação do papel do silêncio em resposta às mudanças sociais e tecnológicas. O crescimento das cidades, o aumento do ruído provocado pelas máquinas e a maior densidade populacional contribuíram para que o silêncio se tornasse mais difícil de alcançar e, por isso, mais valorizado em determinados ambientes.

História do Silêncio procura oferecer uma nova perspetiva para a compreensão da experiência humana, ao centrar-se num elemento que normalmente é tratado apenas como ausência ou mera passagem do tempo. Para Corbin, o silêncio é uma presença complexa, atravessada por normas, valores e conflitos, que ajuda a compreender as transformações da modernidade.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

A palavra interior que acalma e alivia

O silêncio não é apenas ausência de ruído. Nós quase o esquecemos. As referências auditivas desnaturaram-se, enfraqueceram, dessacralizaram-se. Intensificaram-se o medo ou mesmo o terror suscitados pelo silêncio.

No passado, os ocidentais desfrutavam a profundidade e o sabor do silêncio. Consideravam-no como condição do recolhimento, da escuta de si mesmo, da meditação, da oração, do devaneio, da criação; sobretudo como lugar íntimo do qual a palavra emerge. Especificavam as suas táticas sociais. A pintura era para eles palavra de silêncio.

A intimidade dos lugares, a do quarto e dos seus objetos, como a da casa, era atravessada pelo silêncio. Desde o advento da alma sensível no século xviii, os homens, inspirados pelo código do sublime, apreciavam os mil silêncios do deserto e sabiam ouvir os da montanha, do mar, do campo. O silêncio testemunhava a intensidade do encontro amoroso e parecia condicionar a fusão. E pressagiar a duração do sentimento. A vida do doente, a proximidade da morte, a presença do túmulo suscitavam uma gama de silêncios que hoje em dia são residuais.

A arte do repouso como alternativa à fadiga consumista do lazer. O descanso visto pelo historiador Alain Corbin    
A arte do repouso como alternativa à fadiga consumista do lazer. O descanso visto pelo historiador Alain Corbin    
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Como experimentá-los melhor senão mergulhando em citações de tantos autores empenhados numa verdadeira busca estética? Lendo-os, cada um põe à prova a sua própria sensibilidade. A História pretendeu demasiadas vezes explicar. Quando aborda o mundo das emoções, deve também — e acima de tudo — fazer com que se sinta o silêncio, em particular quando os universos mentais desapareceram. É por isso que grande número de citações reveladoras é indispensável. Só elas permitem ao leitor compreender a maneira como os indivíduos do passado viveram o silêncio.

Atualmente, é difícil ficar em silêncio, o que nos impede de ouvir a palavra interior que acalma e alivia. A sociedade insta à submissão ao ruído a fim de se tornar parte do todo, em vez de se manter à escuta de si mesmo. Desta forma, altera-se a própria estrutura do indivíduo. Sem dúvida, alguns caminhantes solitários, artistas e escritores, adeptos da meditação, mulheres e homens retirados num mosteiro, alguns visitadores de túmulos e, sobretudo, apaixonados que se olham e se calam, buscam o silêncio e permanecem sensíveis às suas texturas. Mas são como viajantes encalhados numa ilha em breve deserta e erodida.

Ora, não é tanto, como se poderia crer, o acentuar da intensidade do alarido no espaço urbano que constitui o facto principal. Graças à ação de militantes, de legisladores, de higienistas, de técnicos que analisam os decibéis, o ruído da cidade, que se tornou outro, não é sem dúvida mais ensurdecedor que no século xix. O essencial da inovação reside na hipermediatização, na permanente conexão e, por conseguinte, no incessante fluxo de palavras que se impõe ao indivíduo e que o levam a recear o silêncio.

Neste livro, a evocação do silêncio passado, das modalidades da sua busca, das suas texturas, das suas disciplinas, das suas táticas, da sua riqueza e da força da sua palavra pode contribuir para reaprender a estar em silêncio, ou seja, a sermos nós mesmos.

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Os silêncios da natureza

Certos sons, garante Maurice de Guérin, fazem ressoar o silêncio e conferem, ao mesmo tempo, profundidade ao espaço. “As lembranças, sob forma de reminiscências, põem-se (então) a falar no silêncio interior.” A 14 de agosto de 1833, um “véu imenso, imóvel, sem a menor ruga, cobre toda a face do céu (…), todos os ruídos que se elevam na vastidão do campo, escreve ele, chegam ao ouvido graças a esse silêncio: são cânticos de trabalho, vozes de crianças, pios e refrãos de animais e de tempos a tempos um cão que ladra (…) Fez-se um grande silêncio e ouço como que as vozes de mil lembranças suaves e tocantes, que se elevam no passado longínquo e vêm sussurrar aos meus ouvidos.”

Leconte de Lisle experimenta o derramar da luz como “o silêncio cintilante dos céus”.  Pelo contrário, Mallarmé deseja que o acumular da neblina edifique “um grande teto silencioso”. Sem dúvida foi Henry David Thoreau quem mais meticulosamente analisou o elo mais geral que une o silêncio às coisas da natureza. É que, retomando os seus termos, “a alma humana é uma harpa silenciosa na orquestra de Deus”. Quando passeia pelos bosques ou no campo, sente que “o som é quase idêntico ao silêncio: é, na superfície do silêncio, uma bolha que logo estala (…), é uma fraca articulação do silêncio e que apenas agrada ao nosso nervo auditivo pelo contraste que cria. Na proporção desse contraste e na medida em que enaltece e intensifica o silêncio, (o ruído) é harmonia e melodia.” Isso leva Thoreau a concluir: “Só o silêncio é digno de ser ouvido.” Ele tem “profundidades e uma fecundidade que variam como as do solo”. Desejoso de melhor se fazer entender, analisa o efeito do feno sobre o silêncio, assim como a textura do musgo. Tendo penetrado no celeiro de Baker Farm, Thoreau, sentado no “feno farfalhante”, garante que o seu estalido torna o silêncio sensível. Na sua História Natural do Massachusetts, diz contemplar os musgos a fim de se aperceber da beleza que encerram porque a sua vida está “imbuída de silêncio e de modéstia”.

Instalado em Walden, em pleno campo e próximo dos bosques, Thoreau sorri à sua boa sorte quotidiana que lhe permite analisar a multidão dos pequenos ruídos que revelam o silêncio, e que o criam. É que só pode haver silêncio se este for penetrado pelos sons ínfimos da natureza, dos pássaros, das rãs, até das folhas. Em Walden, buscar o silêncio não faz grande sentido: está por todo o lado. Mas para “gozar da mais íntima companhia com o que em cada um de nós se acha além, ou acima”, é imperativo manter-se em silêncio.

O silêncio que perdemos. Alain Corbin oferece-nos a história de um prazer quase esquecido
O silêncio que perdemos. Alain Corbin oferece-nos a história de um prazer quase esquecido créditos: Quetzal

No século xx, Max Picard partilha o mesmo tipo de convicção. “As coisas da natureza”, escreve ele, “estão cheias de silêncio; estão ali como reservatórios cheios de silêncio.” O tempo que faz é ele mesmo impregnado por um silêncio particular e “cada estação vem do silêncio da precedente”. Durante o inverno, “o silêncio é qualquer coisa visível”; na primavera, parece que o verde se transmitiu em silêncio de árvore em árvore. Numa mesma perspetiva, certos cineastas mostraram-se atentos ao silêncio do quotidiano, que alguns se esforçaram por captar. Nicolas Klotz afirma que os mais belos filmes são silenciosos, e “fazer silêncio”, acrescenta, “não é de modo algum a mesma coisa que calar-se”. Ele deplora que hoje em dia haja cada vez mais filmes que se calam mas cada vez menos que usem o silêncio. Este, garante ele, “está onde começa o mundo”, mas hoje em dia ele assusta. Jean Breschand, por seu lado, define o silêncio pelo qual ele anseia como “a não-rutura de um suave continuum sonoro, rumor ambiente, familiar”, do “ronronar do dia”. A seu ver, o silêncio é uma atmosfera, um “ruído suave, ligeiro e contínuo”, e anónimo.

No termo destas considerações gerais, passemos à análise mais precisa dos momentos e dos lugares que levam em si, no seio da natureza, texturas particulares de silêncio. Aqui impõe-se, à partida, a relação entre a noite, mais precisamente o espaço noturno, e o silêncio.

Lucrécio, em De rerum natura (Da Natureza das Coisas), evocava “o austero silêncio da Noite” reinando em todo o espaço. Em finais do século xviii, Joubert considera esse espaço “como um grande texto de silêncio”. Maurice de Guérin detém-se sobre o momento do cair da noite, enquanto o silêncio “a envolve”. Então, os ventos calam-se, no matagal cessa o ruído dos homens, “que se calam sempre por último, e se vai apagando da face dos campos. O rumor geral extingue-se”, só fica o pequeno ruído da pena que escreve no silêncio da noite que tudo cobriu.

Chateaubriand associa o silêncio noturno aos efeitos da lua. “Quando os primeiros silêncios da noite e os últimos murmúrios do dia lutam nos outeiros, na berma dos rios, nos bosques e nos vales, quando as florestas se vão calando, quando nem uma folha, nem uma haste de musgo suspiram, quando a lua brilha no céu, quando o ouvido do homem está atento”, é então que o pássaro começa a cantar e revela o silêncio da noite. Victor Hugo, por sua vez, escreve em Les Contemplations: “Eu sou o ser reclinado (…) / que pergunta à noite o segredo do silêncio.” Além-Atlântico, Walt Whitman, que proclama o “esplendor do silêncio”, evoca a noite de verão, toda nua e silenciosa, que lhe faz sinal com a cabeça…