“O mar chama. A intensidade com que cada um o ouve depende da quantidade de desconhecido que leva dentro”. A escritora Marta Pais Oliveira, portuense, nascida em 1990, convoca-nos no seu livro a adentrar horizontes marítimos. A geografia de Faina (edição Gradiva) é imprecisa, “diria que o texto não pede um nome para o lugar ou uma fronteira bem definida, pede outras coisas”, confidencia-nos a autora. O novo livro da vencedora do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís com a obra Escavadoras, acompanha o quotidiano de um grupo de pescadores. Homens e mulheres na fronteira entre dois mundos, a terra e o mar, e de dois tempos. Em Faina fenece um mundo, nasce outro e, com este, agiganta-se progresso. Marta não esconde quais as gentes e o lugar que a inspiraram. Para a também contista (O homem na rotunda e Quando virmos o mar), a cidade de Espinho, onde cresceu e estudou, entregou-lhe a tessitura social – os pescadores e a alta burguesia, empresários, intelectuais e artistas -, também a forma como as gentes do mar dele se apropriavam – a arte-xávega. Marta Pais de Oliveira apresenta-nos personagens apaixonadas, desalentadas e também esperançadas. Há sonhos, aqueles que saem dentro de latas da Fábrica de Conservas, grafonolas entregues nas ondas do mar e mulheres cheias de sombras, inquietações, dúvidas, cansaço, desejo de liberdade.

A Marta cresceu em Espinho. Presumo que quase todos os dias terá olhado para aquele mar belicoso. O mar é daquelas gentes que habitam o litoral e dele tiram o sustento. Mas, também é uma apropriação de cada um de nós. Antes de ser Faina, aquele mar o que significava para si?

“Vivemos numa sociedade orwelliana, em que nos dizem o que temos de pensar. Essa é a semente do fascismo” – escritora Julia Navarro
“Vivemos numa sociedade orwelliana, em que nos dizem o que temos de pensar. Essa é a semente do fascismo” – escritora Julia Navarro
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Significou desde cedo qualquer coisa que me atraía intensamente de um ponto de vista sensorial, afetivo. A minha avó materna dizia muito “o mar é um mistério” e essa frase dançou na minha cabeça muito tempo. O mar de Espinho, como o mar do Atlântico Norte, tem uma rebentação forte e isso sempre me impressionou. Passar na Praia dos Pescadores implicava olhar os barcos em meia-lua com curiosidade e imaginar como seria entrar num. Nunca fui muito atrevida a atirar-me às ondas, apesar de o querer fazer. Faina veioajudar-me nesse desejo.

Em que momento é que o “seu” mar se fez construção de uma história dentro de si e porquê?

É incerto o momento em que uma história se começa a formar, vai acontecendo em várias camadas, mas há um impulso que me leva a escrever este romance que foi o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís. Até aí escrevia, principalmente, contos. O meu primeiro romance, Escavadoras, tinha nascido desses fragmentos. Com a compensação financeira do Prémio, negociei uma redução temporal no meu trabalho para dedicar as sextas-feiras a escrever um segundo livro. E foi uma intuição e uma vontade muito claras que deveria ir à Praia dos Pescadores procurar a história e tentar narrar na voz do mar.

Marta Pais Oliveira
Marta Pais Oliveira Marta Pais Oliveira créditos: Vitorino Coragem

Percebe-se ao longo do livro que a Marta domina aquela linguagem do mar, das ondas, das vozes nas praias, do labor da arte xávega. Na escrita, esta linguagem desenreda-se com naturalidade, flui. Que trabalho fez no sentido de assimilar este estar e a linguagem tão própria das gentes do mar?

Comecei por ir várias madrugadas e manhãs ver o trabalho da companha de arte-xávega Vamos Andando. Conversei com quem lá estava, vi repetidas vezes as redes saírem do mar. Muitas vezes com muito pouco peixe, só algas. A linguagem dos pescadores e das varinas tem muita imaginação e liberdade. Uma língua cuidada, a meu ver, não o é pela ausência de palavrão, é pela atenção com que se fala com a outra pessoa, tratar pelo nome, conversar com genuíno interesse, generosidade e abertura. Encontrei tudo isso na praia, fiz ali amigos. E acima de tudo - uma língua viva é aquela que trabalha o imaginário, não a meramente funcional. Ruy Belo disse que quando uma sociedade se corrompe, corrompe-se primeiro a sua linguagem. Parece-me que há esse corromper na forma literal e sem subtileza alguma com que hoje, tantas vezes, ouvimos falar. Continuo a aprender vernáculo vareiro e continuo a surpreender-me com o cancioneiro local. As crenças e as festas são fontes muito ricas. Não domino a língua do mar, mas escrevo para tentar criar uma certa melodia e um certo ritmo. Gosto muito da ideia de o texto por vezes repelir e outras atrair, procuro contrastes emocionais.

Por certo estas pessoas trouxeram-lhe lamentos. Estamos perante uma arte em extinção. De tudo o que ouviu, quer salientar algo que lhe tenha ficado a laborar na memória?

Ter a consciência permanente da morte - passada de geração em geração - parece fazer as pessoas que vivem do mar mais frontais. Ao mesmo tempo, mais alegres, que a alegria é uma forma de resistência. A voz da comunidade piscatória nem sempre foi ouvida e há lá uma ecologia de saberes que tem raízes muitíssimo fundas. Lembro-me da história contada pela Carlota, a decana das varinas de Espinho, que foi em criança mandada vender ou empenhar coisas da família para conseguirem dinheiro, e é multada porque vai descalça. Ou a história de um pescador sobre ver numa noite algo no mar, uns cabelos nas ondas, perguntar-se se era aquilo uma sereia, e acabar a salvar uma mulher que tentava pôr fim à vida. São vidas de muito esforço, mas de uma grande paixão por aquela praia, há um sentimento de pertença que constrói uma identidade. Essa era uma pergunta que me perseguia, quem está ali por uma regra de prisão e quem está ali por opção? O pescador Sr. José Barros diz muito: “Não é quando a gente quer, não é como a gente quer, é quando o mar quer.” É impressionante a ligação que se estabelece com um elemento incontrolável.

“Há muitas pessoas que se sentem perdidas. O meu livro quer passar uma mensagem de esperança” – Marta Coelho
“Há muitas pessoas que se sentem perdidas. O meu livro quer passar uma mensagem de esperança” – Marta Coelho
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Presumo que também tenha feito um trabalho bibliográfico. Encontrou alguma “pérola” local?

Sim, fiz muita pesquisa. Os Cadernos de Espinho, coleção coordenada pelo historiador Armando Bouçon, foram fundamentais nesse processo. Faina passa-se no arranque do século XX, foi neles que encontrei factos históricos desse corte temporal que serviram de matéria para ficcionar, como a Batalha das Flores, os casinos que foram crescendo na vila piscatória, a construção dos caminhos de ferro, documentação sobre a estância balnear. Entre muitos, há um documento que me fascinou: um folheto com as regras para se ir a banhos. Eram receitados “choques de onda” como tratamento médico, a talassoterapia crescia, ir à praia que antes era lugar inóspito e das populações desfavorecidas passa a ter um estatuto de prática social civilizada. Todas as diretrizes são deliciosas, há indicações precisas como os minutos que se deve expor cada membro do corpo ao sol. Isso deu origem ao capítulo “Regras de comportamento e higiene”.

Fotos com algumas décadas de Espinho revelam-nos um mundo cosmopolita, atravessado por diferentes classes sociais. A Marta também leva essa realidade para o livro. São duas realidades paralelas ou dois mundos entretecidos?

São mais paralelas do que entretecidas, mas a beleza da história de Espinho é que se dão momentos de confluência. Também existe confronto. Neste romance convivem pescadores e burguesia, empresários e intelectuais, escritores, músicos, pintores. Nasce próxima daquela praia a cena social e cultural das elites, vem o cinematógrafo, há bailes e cafés-concerto. Mas os pescadores, operários e lavradores tinham os seus cafés, criam-se alguns grupos recreativos. Onde se podem ver aristocracia e comunidade piscatória lado a lado é nas festas de Carnaval, na Batalha das Flores. O livro ampliará momentos em que as classes se misturam.

A Marta parte do contexto de Espinho para construir uma história que se dilui numa geografia imprecisa. Porque não quis criar este vínculo ao lugar que lhe deu pretexto para a narrativa?

Diria que o texto não pede um nome para o lugar ou uma fronteira bem definida, pede outras coisas. Talvez porque me atraiam espaços diluídos e expandidos. Nomeei uma praia do Atlântico Norte. E talvez por defeito de formação em jornalismo - nomeando Espinho, poderia limitar a força de ficcionar e a cidade tornava-se personagem. Eu queria a lente ampliada no oceano, em quem nasce na praia e chega à praia. A imprecisão da geografia cria um lugar de nevoeiro como muitas manhãs à beira-mar.

Marta Pais Oliveira
Marta Pais Oliveira Marta Pais Oliveira. créditos: Gradiva

O mar liberta, mas também pode ser prisão. No caso das mulheres que a Marta leva para o livro, há esta dúplice condição. A mulher que fica na praia, aquela que aspira a embrenhar-se no mar, a mudar o seu estatuto. Que construção do feminino quis levar para esta sua obra?

Estou a ler um livro da Ana Cristina Pereira, Mulheres da Minha Ilha, Mulheres do Meu País. Tem um trecho da escritora Rosa Montero que resume muito bem a condição das mulheres daquele tempo: as da classe baixa acumulavam jornadas longas de trabalho nas Fábricas, ganhando menos (o que 120 anos depois se mantém) e em cima disso tinham os filhos, o trabalho de casa. Na classe média e alta, quantas viviam em prisões de ouro, metidas dentro dos espartilhos, sem voz, elegantes e deprimidas. Quem vem de fora chega àquela praia para se libertar, uma mulher procura outro nome, outra tenta ajudar as raparigas e mulheres que não desejam parir doze filhos seguidos. Estão cheias de sombras, inquietações, dúvidas, cansaço, desejo. Principalmente por causa de todo o medo, convertem-no em coragem para movimentar qualquer coisa e não ceder ao luto. O mar estava vedado às mulheres, mas elas faziam um trabalho invisível sem fim para segurar o barco. Partimos da espuma do mar que vai no vento acossando as costas da Menina e terminamos numa onda que rebenta nas costas nuas da Senhora da Fábrica. O mar empurra estas personagens para os seus destinos.

Por falarmos de mulheres – e também de homens - , o seu livro traz-nos uma paleta de personagens singulares. Quer, aqui, destacar algumas delas?

Interessam-me personagens com alguma excentricidade, no limbo. E fugidias, com qualquer enigma e estranheza. Um texto é uma aproximação do que não se pode tocar, é um movimento instável. Não vejo o livro como um espaço de compreensão inteira. É um espaço para hesitar e fazer perguntas e pensar: como nós somos complexos e imprevisíveis e contraditórios. Um espaço que nos devolve a nossa escala, a nossa condição de incomunicabilidade e sofrimento e também a possibilidade contínua de comunhão, alegria, euforia, a potência de realização quando há liberdade. O texto é um belo espaço para se correr riscos. Não queria cair na sina do pescador coitadinho, queria tudo menos ceder à caricatura. O mar é uma personagem central em Faina, e o livro vai trazendo novas a cada capítulo. Constrói-se à roda desses vultos da beira-mar, como o Assobio, o Ouve Lá, A do Moreno, a Dona, A Curvada, A Levada da Breca, a Menina e o Menino. Há também as figuras que vêm de fora, a Senhora da Fábrica, o Homem de Negócios, o Homem de Fato que é pescado, os múltiplos artistas que chegam e partem.

Na narrativa também perpassa a imagem de um fim de mundo e o início de um outro. Penso, por exemplo, na instalação da fábrica de conservas ou mesmo naquilo que de excêntrico o mar entrega à praia (por exemplo, uma grafonola). A Marta quis mimetizar naquele microcosmos aquela que é, no fundo, a história da humanidade, a de nos reinventarmos?

Tudo se transforma noutra coisa, sim. É interessante procurar no que vai nascendo os ecos do passado, porque a continuidade é mais forte do que a total rutura. Quis meditar sobre a forma como o futuro se anuncia e que mudanças traz - e para quem. A Fábrica Brandão Gomes, que inspira uma parte importante do livro, era uma das grandes fábricas de conservas da Europa na viragem para o século XX. Há uma fotografia no Museu Municipal de Espinho dos trabalhadores da Fábrica em que se veem as duas primeiras filas cheias de crianças. O que começa a ajudar a libertar da pobreza extrema também abre outras prisões terríveis. O que vem de inusitado na rede traz a música do progresso e também o absurdo e os sobressaltos do quotidiano, como uma grafonola que avaria.

Faina
Faina créditos: Gradiva

Estudou a fundo a arte-xávega. Percebe-lhe algum futuro ou será em breve um bilhete postal?

Escrevi este livro por causa dessa inquietação. Há um dia em que o barco vai ao mar, e há o dia seguinte em que já não vai. Acabou ali. O que fica? Os ofícios artesanais ensinam-nos uma certa forma de cuidado e ensinam-nos novos ritmos num tempo demasiado acelerado. Faina vem do latim facienda, "o que se deve realizar”. Remendar a rede é um gesto de resistência. Quem investiga isto tende a decretar que o fim é iminente, é uma questão de teimosia de quem ainda se dedica ao ofício. Restam poucas companhas a irem ao mar em toda a costa portuguesa. Reinventar esta prática para que melhore as condições de trabalho dos pescadores (porque ninguém quer perpetuar a miséria, mas usar a inovação a favor de vidas melhores) exige esforço dos próprios, de investigadores, poderes políticos, comunidade. Há quem aponte a importância da candidatura da Arte-Xávega a Património Imaterial da Humanidade da Unesco.

Em Espinho, a companha Vamos Andando - que acompanhei entre 2020 e 2022 - já não está a ir ao mar. Resta uma, a Rita e Carolina. É complexo o que se sente sobre este fim. Parece haver uma mistura de grande paixão, revolta, pena, saudade, redenção. Este livro faz-se de uma memória de um tempo muito duro e de uma forma de vida ancestral, pergunta se essa memória pode resistir, mas quem hoje vive desta pesca artesanal continua a ter muitas dificuldades. Há contínua incerteza, o sustento é pouco, os pais desejam outra vida para os filhos. Ainda há quem queira continuar por vontade, não por não ter outro caminho, e queira defender esta tradição contra uma praia anónima, esvaziada de afeto e de história. Enquanto essas pessoas existirem, a arte-xávega vai alando com esforço a rede para terra.

Não conseguiu ir ao mar durante a escrita do livro. Finalmente foi. O facto de tirar os pés de terra e adentrar as ondas, mudou alguma coisa na forma como sentiu e viu a história que levou para Faina?

Fui ao mar na madrugada em que me chegou o livro impresso a casa, o que foi uma sincronia curiosa. Entrar no barco abriu novos ângulos e sensações que espero poder retomar numa possível continuação de Faina. Por exemplo, o silêncio quando se lançam as redes, com o barco a balançar, porque o motor parou. Antes não havia motor, era tudo a força de braços, e depois com a junta de bois. É esse silêncio de hoje parecido com o silêncio de antigamente? Fiquei com novas perguntas a ecoar.

“Tende a ter a obsessão de ter um livro na mão e na cabeça”, lemos no seu site. Neste momento tem algum livro na cabeça? E nas mãos, o que está a ler?

Tenho vários livros na cabeça, estou a trabalhar num novo romance, numa novela e num libreto. Quanto mais escrevo, mais tenho a certeza de que, por enquanto, é mesmo isto a que quero dedicar o maior tempo possível. Leio sempre muitos livros em simultâneo. Destaco o monumental A Piada Infinita, de David Foster Wallace. Também hoje vivemos tempos em que o entretenimento é uma arma letal. E sinto-me quase adolescente (e insensata) ao pegar num calhamaço como este, quando havia dias inteiros para ler.