Da infância, Paula Lobato de Faria retém uma casa repleta de livros, povoados de autores, de possibilidades de mundos e da curiosidade endereçada àqueles objetos feitos de palavras e narrativas. Mais tarde, Paula fez-se escritora, um “ato de coragem”, como qualifica. Dar à escrita é dar ao mundo, é expor-se aos outros e assumir a sua essência. À carreira no Direito, Paula Lobato de Faria juntou o seu percurso de autora e, com ele, um primeiro livro, Imaculada, seguiu-se-lhe Tundavala e, já este ano, Liberdade (edição Clube do Autor). Do tríptico que nos oferece de uma família portuguesa entre dois tempos, o da Ditadura, e o que emergiu do 25 de Abril de 1974, faz Paula Lobato de Faria um périplo entre memórias pessoais, investigação e ficção. Sobre os livros enquanto matéria de sobrevivência face aos abismos que enfrentamos, mas também sobre o que foi para a autora, então adolescente, viver a sociedade saída de Abril, tecemos esta conversa. De Liberdade retemos estas palavras retiradas da apresentação ao livro: “Inspirada em acontecimentos reais, este romance releva um país em convulsão, onde se agitam movimentos golpistas e espiões internacionais (...) Por entre ondas de choque da revolução, duas mulheres têm de reinventar o seu caminho. Cristina enfrenta o fim do seu trágico casamento e a sua filha, Drina, vê abrir-se à sua volta um mundo de permissividade e incerteza”.

Numa entrevista em 2019 afirmou que “andei sempre a fugir até ser escritora”.  A frase encerra uma fuga e afirma-nos um encontro, através da escrita. Quer detalhar?

É certo aquilo que diz. Eu descobri o gosto de escrever muito cedo, a partir do momento em que, aos 12 anos, os meus pais me deram um pequeno diário. Desde esse momento, tive sempre cadernos onde escrevo quase diariamente. Tornou-se uma necessidade. E mais tarde comecei vários romances, escrevi poemas. Recordo-me de aos 19 anos passar o Natal a escrever uma peça de teatro para concorrer a um concurso de peças teatrais na RTP. Mas, andava sempre a fugir porque, no fundo, a escrita confronta-nos com a nossa essência e eu pensava “se eu falhar com a escrita, eu falho com a vida”. O que fiz? Escolhi uma carreira “fora do corpo” no Direito. Se eu falhasse no Direito, não seria tão grave porque, no fundo, estava a fazer uma espécie de encenação, sem me comprometer verdadeiramente. Fugia de mim mesma. Finalmente, quando me aceitaram o manuscrito do Imaculada percebi que estava preparada para encarar o mundo com a minha verdadeira face. Sem pseudónimo. Mas é preciso muita coragem porque aí vamos perceber se, efetivamente, estamos à altura do objetivo. Demorou muito tempo a chegar, esse encontro com a verdade.

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Também refere amiúde que os livros foram para si uma questão de sobrevivência. De que forma a salvaram e quais foram os livros que aí protagonizaram?

Os livros sempre me fascinaram. O meu pai era bibliófilo, em casa havia livros por todo o lado. Eu acordava de manhã e a primeira coisa que via à minha frente era uma estante com livros. Isto, mesmo antes de aprender a ler. Lembro-me de olhar para aqueles objetos e pensar, “o que estará ali dentro?”. Quando comecei a ler, interessei-me pelas histórias de Enid Blyton, Os Cinco, e por clássicos para jovens, como o Sem Família, o Tom Sawyer, ou A Cabana do Pai Tomás. Mas o que queria era chegar à biblioteca do meu pai. Lembro-me bem de ler o Por Quem os Sinos Dobram, de Hemingway, devia ter uns onze anos e de não perceber nada. Também li livros da coleção Vampiro que me assustavam muito [risos]. Com a leitura abriam-se-me novos horizontes e, talvez por isso, sempre quis muito viajar. Vivi nos Estados Unidos, em França e em Itália. Sempre tive uma grande vontade de alcançar outros mundos. A leitura traz-nos isso.

Mas também lhe trouxe a sobrevivência.

Sim. Aquando da morte do meu filho Vicente, aos 24 anos, em 2016, a única forma de a minha mente encontrar alguma paz era entregar-me à leitura. Só aí o meu cérebro apaziguava. A primeira leitura que procurei foi o livro escrito por Isabel Allende a propósito da morte da filha [Paula]. Precisava dessa identificação. Nesse período terrível tive a ajuda de um psicólogo que tinha, também, a qualidade de me trazer novidades literárias. Trouxe-me, por exemplo, as Crónicas do Mal de Amor, de Elena Ferrante. Li e fiquei fascinada. Entretanto, saiu a tetralogia A Amiga Genial. Imagine o que é, de repente, ter quatro livros densos para ler numa fase tão difícil como aquela que eu atravessava. A leitura subtraia-me ao sofrimento. Salvava-me. Depois vieram os meus próprios livros. E escrever é outra forma de salvamento. Quando o meu filho partiu agarrei-me muito à ideia de que tinha os meus livros para escrever. Por tudo isto, digo sempre que os livros me salvaram a vida.

Sobre a autora

Paula Lobato de Faria é mãe de dois filhos e vive em Lisboa. É licenciada e doutorada em Direito, exercendo a profissão de professora universitária na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa. Tem várias publicações internacionais nas áreas do direito da saúde, bioética e direitos humanos. Estudou e viveu em França, Itália e nos Estados Unidos. Portugal é o país que mais a apaixona. Desde criança que é uma leitora voraz e sempre quis ser escritora. Escreveu até ao momento três romances: Imaculada, Tundavala e Liberdade.

Estreou-se na ficção com o romance Imaculada, seguido de Tundavala e dá-nos agora este Liberdade. Há uma linha de continuidade entre os três livros. Qual é o denominador comum?

Quando comecei a escrever o Imaculada tinha a ideia de escrever uma trilogia chamada Memórias de Uma Família Portuguesa. Mas estes três livros que publiquei são mais do que memórias. Há neles um fio condutor, uma personagem, a Cristiana, inspirada na minha mãe, mas que não viveu a vida dela, mas uma outra. Porque, no Imaculada, tentei resgatar a minha mãe para uma vida que, julgo, ela gostaria de ter tido, mas que não lhe foi permitida. Não fez o curso que queria, era muito vigiada pela minha avó e não viveu as suas paixões. E, nestes três livros, ao contrário da minha mãe, a personagem Cristiana vive inúmeras peripécias. Depois, há ainda um elemento comum aos três livros, a personagem Lourença, inspirada numa prima direita da minha mãe que morreu num acidente com 18 anos. Em adolescente pensava muito nela e em como seria morrer com tanto ainda para viver. No fundo, resgatei a minha mãe e a sua prima direita dando-lhes vidas “cheias” nos meus livros.

Mas para além desse fio condutor, os livros foram escritos para se poderem ler de forma autónoma entre si. Os livros têm uma ordem cronológica, mas pode começar pelo último, o Liberdade e compreender toda a história na mesma.

No seu segundo livro leva o leitor até Tundavala, um abismo em Angola. Quis com isso criar uma imagem de abismo para a situação que se vivia em Portugal? 

O Tundavala é um livro que tem a ver com a minha descoberta da guerra colonial. Na época, era muito jovem, não percebia as questões ligadas ao conflito. Com a escrita deste livro descobri muita coisa interessante, inclusivamente aquele local deslumbrante, a fenda da Tundavala. Nas últimas páginas do livro, deixo explícito que é uma metáfora de que nós, seres humanos, estamos sempre à beira de um abismo, seja pessoal, social ou político. Mas, sobretudo, pessoal porque controlamos em muito pouco o nosso destino.

“Percebi que tinha de resgatar para as gerações mais novas a compreensão daquilo que foi a ditadura” – Paula Lobato de Faria
“Percebi que tinha de resgatar para as gerações mais novas a compreensão daquilo que foi a ditadura” – Paula Lobato de Faria créditos: Clube do Autor

Era muito jovem aquando do 25 de Abril. Tinha perceção da falta de liberdade que Portugal vivia antes da revolução. Era uma questão falada no seio familiar?

Se eu sabia o que era uma ditadura? Não sabia. Em casa não se falava de política. Recordo-me de o meu pai nos dizer que quanto menos soubéssemos melhor seria. Certa vez fomos assaltados lá em casa e o meu pai temeu, durante meses, que tivesse sido uma “visita” da PIDE. E eu nem sabia o que era a PIDE. Percebia que era qualquer coisa má, mas que não me era revelada. Já no liceu, pouco antes do 25 de Abril, houve algumas manifestações contra a guerra colonial e alguns adolescentes foram passar a noite à prisão. Achei muito estranho e assustador, mas não identificava o que era uma ditadura. Também me recordo de ir passar umas férias a França e de uns miúdos da minha idade me dizerem mal do Salazar e da guerra colonial. Fiquei zangada porque, nos meus dez anos, achava que tudo estava certo no país que eu tanto amava. Também por isso compreendo muito bem que todas as crianças e adolescentes possam ser manipulados por regimes totalitários. Por exemplo, logo a seguir ao 25 de Abril, durante o PREC [Processo Revolucionário em Curso], tentavam manipular-nos para o lado da esquerda radical. Nas aulas ensinavam-nos, por exemplo, que países como a Albânia eram paraísos. Mais tarde vim a perceber, com muito espanto, que a Albânia era um dos países mais pobres do mundo. Havia muita ignorância. No fundo, queriam radicalizar-nos.

Em momentos anteriores referiu que quer com os seus livros “narrar um Portugal esquecido que neste momento corre o risco de se perder completamente”. A perda da memória histórica abre a porta a que reiteremos em erros e catástrofes passadas. Corremos presentemente esse risco?

Estou a ler a “Trilogia do Século”, do Ken Follett e apercebo-me da facilidade com que a humanidade repete erros, às vezes sem grande folga no tempo. Se na Primeira Grande Guerra [1914-18] havia uma grande ignorância do que era a selvajaria nas frentes de combate, na Segunda Guerra Mundial [1939-1945] já não havia essa ignorância e repare como a selvajaria se repetiu e redobrou. Os meus livros não foram escritos no recente contexto geopolítico que me preocupa muito. Estamos a dormir sobre pólvora, neste caso sobre armamento nuclear. Há dias assistimos a algo inédito, um ataque a um comboio humanitário. Como é possível atingir pessoas que estão a tentar minorar o horror que é a guerra? Em relação aos meus livros, há uma vontade expressa de que sejam mais do que relatos sentimentais. Acho importante resgatar para as gerações mais novas o conhecimento do que foi o sofrimento da guerra colonial, da ditadura e o sofrimento que veio também da liberdade. Pode criar perplexidade esta última afirmação. Mas veja, a geração que era adolescente no 25 de Abril, ficou muito confusa entre valores. Julgo que essa geração percebeu muitas coisas que as gerações atuais ainda não perceberam. Passámos de uma ditadura de direita para um período de quase ditadura de esquerda. Muitos perceberam claramente que o que importa para governar bem não são as ideologias, mas que os políticos tenham em consideração o respeito pela humanidade e o bem-estar das pessoas.

Liberdade
Liberdade créditos: Clube do Autor

Há na escrita destes três livros uma convergência gradual entre as narrativas e a história da autora? Ou seja, vai aconchegando a narrativa à sua pessoa, àquilo que lhe é mais próximo e que já viveu?

Quem me conhece diz que há um pouco de mim em todas as personagens e em todos os livros. Mas eu diria que no Imaculada e no Tundavala procuro reconstruir aquelas épocas, das quais eu não tenho memórias. Essa reconstrução passa até, subtilmente, pela linguagem usada, que vai sempre mudando ao longo da trilogia. Por exemplo, o Imaculada é um livro onde não se fala de sexo, porque aquela época era assim, havia uma série de formalidades e recato nas conversas. No Tundavala já há uma abertura, as personagens abrem-se mais à sua verdade interior. O Liberdade é o livro mais autobiográfico, embora não totalmente. Diria que ainda é composto de muita ficção. Mas, por exemplo, a narrativa do concerto dos Génesis, tenho-a no meu diário da época. Lembro-me da entrada do Peter Gabriel em palco e do que senti naquele momento. De repente, vivíamos em Portugal um mundo inédito. Há pormenores no livro que foram retirados do que escrevi naquele tempo e, também, as recordações que ficaram. Por exemplo, a questão de haver pavões e veados no jardim ao lado do antigo Pavilhão Desportivo de Cascais. Não foi algo inventado, saiu do meu diário daquele dia.

Quis escrever um livro situado no “inebriamento, na disrupção e no caos”, como refere no prólogo. Quais os desafios que enfrentou ao querer situar uma narrativa mergulhada nesta turbulência?

Há várias áreas complicadas que, principalmente, as raparigas adolescentes viveram no 25 de Abril. De repente, mudaram-lhes os valores. Manter a virgindade até ao casamento passou a ser substituído por não se pode ser virgem. Ser virgem era visto como um sinal de um defeito qualquer. Ao mesmo tempo, as raparigas não podiam falar com os pais sobre sexo e contraceção, porque isso levaria os pais a assustarem-se e a fecharem-nas em casa. E esta simbiose não resultava. Os rapazes tinham uma mentalidade machista, não queriam usar métodos anticoncecionais, não tinham cuidado e deu-se uma ‘epidemia’ de abortos. Abortos que eram praticados em condições duvidosas, que levavam muitas vezes à morte. A lei ainda criminalizava o aborto, não havia apoio por parte das entidades de saúde. Foi um trauma que a minha geração viveu. O sexo é uma força muito grande, tem de ser falado, desmistificado, não pode haver preconceito.

Paula Lobato de Faria
Paula Lobato de Faria créditos: Clube do Autor

Também a abrir o livro cita a escritora Annie Ernaux a partir do seu livro Uma Mulher, num texto que a escritora dedica à mãe: “No mundo em que tinha sido jovem, a própria ideia de liberdade das raparigas não se punha, exceto em termos de perdição. Só se fala de sexualidade como uma forma de obscenidade interdita às ‘cabeças jovens’, ou do julgamento social, ter uma boa ou má conduta”. De certa forma vai ao encontro do que acaba de relatar.

Sim, a autora é bastante mais velha do que eu, mas essa frase que fui buscar é exatamente aquilo que se passava em Portugal. Tinha de transpor esta frase para o livro. Ela está a falar de uma condição da mulher na França do pós-guerra, no Liberdade estamos nos anos de 1970. Repare no atraso que Portugal tinha.

Nos seus livros há uma força que emana das mulheres, dá-lhes um papel principal.  Sente que quis empoderar a mulher através da sua escrita?

Sou uma mulher, assumo-me como mulher, heterossexual. Mas considero que não devíamos ter rótulos, devíamos simplesmente ser humanos, com as nossas diferenças. O facto de nos estarmos a descrever no dia a, não quer dizer que no dia a mais dois, não possamos ter mudado. A questão dos rótulos é muito perniciosa.

Em relação ao feminismo, disse-lhe já que desde sempre fui ávida de leituras e de me abrir ao mundo. Muito nova, aos 17 anos, li a Germaine Greer, autora do livro A Mulher Eunuco e outras feministas. Sentia-me muito revoltada com a condição da mulher. Mas sempre me senti uma pessoa livre. Nunca senti que tivesse menos direitos por ser uma rapariga e sempre achei que iria fazer exatamente o que me apetecia, independentemente de ser mulher. No fundo, nunca pensei que não era livre até, de facto, chegar à fase de ser mãe. Aí vi que caso engravidemos temos de ser mais protegidas. A par da licença de maternidade, existe hoje uma coisa maravilhosa que é a licença de paternidade. Tenho uma pena enorme de não ter tido o pai dos meus filhos mais ao meu lado nessa fase. O pai poder estar com a mãe nos primeiros meses da criança é algo extraordinário, é o caminho que temos de seguir.

A abrir o livro cita Neill Lochery, a partir do livro Portugal Saídos das Sombras. Nesse livro o autor contraria a ideia de que Portugal esteja em decadência inevitável, sugerindo, pelo contrário, que se trata de uma nação entusiasmante e vibrante a emergir finalmente das sombras lançadas pelas dificuldades políticas e económicas. A Paula partilha desta opinião?

Essa citação foi escrita num período em que tínhamos saído das sombras. Acho que tivemos muita sorte, que o caminho foi de moderação, a democracia venceu. Mas se me posicionar no momento atual considero que a democracia está em crise em todo o mundo e a diminuir. O alastrar de tendências antidemocráticas é real. E Portugal está num momento crítico. Sente-se o cansaço de um modelo que teve muita novidade e frescura após o 25 de Abril. Agora temos uma grande quebra de confiança na classe política, o que leva as pessoas à revolta. Enquanto cidadãos temos de pensar como poderíamos usar todas as ferramentas que temos ao nosso alcance, incluindo a Inteligência Artificial, para tornar o poder mais transparente e democrático.