Da sua juventude, Eduardo Pires Coelho guarda as memórias das leituras ecléticas, entre Ernest Hemingway e Isabel Allende. Palavras que povoaram uma imaginação fértil, tendente a imaginar aventuras em torno da nossa História. Mais tarde, já escritor, o autor de livros como O Segredo da Flor do Mar (2011) e Taprobana (2020), encontrou conforto num período específico do nosso provir, a História Ultramarina Portuguesa. Em 2024, o homem nascido em Lisboa no ano da Revolução de 1974, oferece aos escaparates o seu terceiro livro. Em O Segredo de Lourenço Marques (edição Oficina do livro), Eduardo Pires Coelho deixa os horizontes asiáticos, onde teceu as narrativas dos seus dois primeiros livros, e envereda a sua escrita em território africano.
Tal como nos livros anteriores, a escrita convida o leitor a viajar no tempo e no espaço. A obra desenrola-se a vários tempos, no século XIX e no presente e situa-nos entre Moçambique, a África do Sul e outras paragens. Geografias que o autor conheceu de perto, às quais juntou horas de pesquisa em diferentes arquivos. O Segredo de Lourenço Marques embrenha-nos num dos grandes mistérios da nossa história. Em abril de 1971 dá-se um dos casos mais insólitos e nunca resolvidos da Guerra Colonial - o “Caso Angoche”. Um cargueiro português que foi encontrado a arder, à deriva, ao largo de Moçambique, fora de rota e sem ninguém a bordo. Um mote ‘sumarento’ para Eduardo Pires Coelho desenrolar a sua história, baseada em factos, mas dando rédea solta à ficção e às personagens de Filipe e Miguel Ferreira.
Comecemos por perceber como é que alguém embrenhado no mundo dos mercados financeiros se viu enredado na escrita de thrillers históricos?
A paixão pela História vem dos meus tempos de adolescente, muito antes de eu entrar nos mercados financeiros. Em jovem, devorava livros de História, bem como livros de ficção: adorava ler Ernest Hemingway, Ken Follett, Michael Crichton, mas também Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Isabel Allende. Daí a começar a imaginar aventuras sobre a História de Portugal e a escrever as primeiras ideias foi um passo, embora depois demorasse alguns anos a conseguir escrever um livro, com um princípio, meio e fim.
Tenho como objetivo escrever histórias empolgantes, com personagens fortes, centradas num período específico da História Ultramarina de Portugal.
Como se define como escritor, qual a sua assinatura enquanto autor?
Tenho como objetivo escrever histórias empolgantes, com personagens fortes, centradas num período específico da História Ultramarina de Portugal. Sinto um fascínio especial pelas marcas e vestígios portugueses espalhados por esse mundo fora, e gosto de explorar mistérios e enigmas ainda mal resolvidos – são tantos. Escrevo ficção a partir de factos históricos, por forma a que os leitores vivenciem esse passado, dando-lhes a conhecer algo de novo, seja um evento ou personagem histórica, uma geografia diferente, ou uma curiosidade pouco conhecida – sempre de um modo lúdico, claro.
O Eduardo Pires Coelho é um viajante, já percorreu dezenas de países. Os seus livros ao situarem-se num espaço e tempo diversos são um pretexto para outro tipo de viagens?
Sim, tento que os leitores viajem no tempo e no espaço. Os meus livros têm sempre uma parte que decorre no presente e outra no passado - à medida que a leitura avança, vai-se percebendo que as duas estão interligadas. Nos dois primeiros romances, a história está centrada no Oriente do final do século XVI / princípio do século XVII, e neste último – “O Segredo de Lourenço Marques” – em África, entre 1894 e 1902. Faço questão que o passado esteja bem presente. E mesmo a parte do presente decorre em diversas geografias, tentando transmitir a globalização em que hoje vivemos e permitindo viajar pelo mundo, até mesmo a locais pouco ou nada turísticos. Aliás, Portugal teve um papel precursor neste mundo global…
Depois de em 2020 viajar até à Ásia no seu segundo livro, Taprobana, desta feita convida o leitor a adentrar território africano, nomeadamente em Moçambique e África do Sul, entre outras paragens. Viveu em África. Esta vivência teve peso na decisão de situar ali o seu novo livro?
Em parte, sim. A ideia nasceu na minha primeira viagem a Moçambique em 2008, quando visitei a ilha de Moçambique e o Ibo, nas Quirimbas, e fiquei bastante impressionado. Contudo, os anos foram passando e foi só durante a minha estadia na Cidade do Cabo que o livro foi tomando forma. Conheci muitos outros locais e pessoas que me inspiraram, vi várias realidades e li bastante sobre a História da África do Sul e de Moçambique, o que me ajudou a perceber a realidade do sul de África. Não teria escrito este livro se não tivesse vivido em África durante sete anos.
Da leitura do seu livro percebemos que fez um aturado trabalho de pesquisa. Aliás, termina o livro com uma extensa bibliografia. Quer explicar-nos como decorreu este processo de pesquisa e de que forma é desafiante fazer dos factos históricos uma narrativa ficcionada?
Essa pesquisa é uma constante nos meus livros. Tento sempre ler todos os documentos históricos sobre o período que estou a investigar, nas várias línguas, por forma a tornar o livro o mais realista possível. O trabalho é imenso, mas compensador: além do rigor histórico, é uma fonte de inspiração para desenvolver alguns aspetos que desconhecia anteriormente. Essa pesquisa ajuda-me a recuar no tempo e ficcionar eventos históricos. No caso de O Segredo de Lourenço Marques, passei horas na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico Ultramarino e na Sociedade de Geografia de Lisboa. As fotografias e informações constantes em dois blogues sobre Lourenço Marques – o The Delagoa Bay World e o Houses of Maputo – também foram particularmente valiosas.
Em Abril de 1971 dá-se um dos casos mais insólitos e nunca resolvidos da Guerra Colonial - o “Caso Angoche”. Quer, brevemente, trazê-lo a esta conversa e explicar-nos de que forma deu mote a este seu mais recente livro?
Soube do “Caso Angoche” ao ler a revista de bordo da LAM, num voo entre Maputo e Pemba. Fiquei incrédulo: um cargueiro português que foi encontrado a arder, à deriva, ao largo de Moçambique, fora de rota e sem ninguém a bordo. Achei logo que tinha material para mais um livro e tive a certeza quando investiguei o caso a fundo: existiram muitas investigações ao que aconteceu, a principal das quais da própria PIDE-DGS, e nenhuma conseguiu explicar o motivo do ataque àquele cargueiro. De acordo com os registos, seguiam 23 tripulantes a bordo e um passageiro que embarcara em Nacala: esses homens nunca mais foram vistos, nem os seus corpos alguma vez encontrados. A partir daí, entra a ficção: eu assumo que existiam mais cinco passageiros a bordo, não registados, e que foram encontradas provas de que alguns deles sobreviveram à tragédia no Angoche.
Tento sempre ler todos os documentos históricos sobre o período que estou a investigar, nas várias línguas, por forma a tornar o livro o mais realista possível.
O seu livro entretece as vidas de duas personagens, Filipe e Miguel Ferreira. Quer explicar-nos qual a relação entre estes dois homens separados mais de um século?
Filipe é a personagem principal de O Segredo da Flor do Mar, filho de um historiador português, nascido em Moçambique, mas, entretanto, falecido. Neste novo livro, Filipe aceita uma missão peculiar, em grande medida por se tratar de Moçambique: encontrar o destino dos passageiros não referenciados a bordo do Angoche na sua derradeira viagem. A pesquisa ganha contornos inesperados e acaba por estar relacionada com a vida de Miguel Ferreira, um antigo soldado português, nascido na Ilha de Moçambique em 1875, que pertenceu aos esquadrões de Mouzinho de Albuquerque durante as Grandes Campanhas. Mas os mistérios não se ficam por aí.
O que nos leva à Guerra dos Boers na actual África do Sul e ao que se terá passado aquando da tomada de Pretória em 1900 pelo exército britânico…
Exactamente. Miguel decide emigrar para Joanesburgo, do outro lado da fronteira, por forma a conseguir enriquecer e convencer o pai da mulher da sua vida a autorizar o casamento que ele tanto anseia. No entanto, ele acaba por ser apanhado num turbilhão, naquilo a que se viria a chamar a Guerra dos Boers, o conflito entre o Império Britânico e as duas repúblicas boers, fundadas pelos descendentes de colonos holandeses e franceses. Miguel estava em Pretória, a capital do Transvaal, em Junho de 1900, quando o exército britânico se preparava para conquistar a cidade: foi nessa altura que ocorreu um dos maiores mistérios da História da África do Sul, e que, até hoje, ninguém conseguiu explicar.
No livro não esconde o seu fascínio por Moçambique e por Lourenço Marques na época que detalha. O que exerceu em si tal fascínio?
Conheço muitos países africanos, mas tenho um carinho especial por Moçambique e pelos moçambicanos. Sempre gostei muito de lá ir, especialmente na época em que vivia na Cidade do Cabo, pois podia falar português e sentia-me quase em casa, a comer peixe e camarões grelhados. A História de Moçambique é muito singular: a junção de vários povos africanos tão diferentes, a influência indiana e swahili, as marcas portuguesas, e depois uma ligação especial ao interior da África do Sul. A génese de Maputo/Lourenço Marques é igualmente fascinante: como é que uma ilhota arenosa num estuário pantanoso, cheio de mosquitos e doenças tropicais, se tornou num par de anos, numa metrópole moderna, capital de Moçambique em 1898, repleta de avenidas largas, edifícios proeminentes, jardins frondosos, com um dos principais portos da África Oriental?
Numa entrevista anterior que lhe fiz disse-me, e passo a citá-lo, que “a História de Portugal esconde demasiados segredos”. Algum, entre estes segredos, está na forja para um novo livro?
Claro, a nossa História Ultramarina é uma grande fonte de inspiração, até porque existem mistérios e enigmas nas mais variadas latitudes (tal como a Flor do Mar ou o Angoche): podemos encontrar marcas e vestígios dos nossos antepassados em locais tão díspares como Mombaça no Quénia, Cochim na Índia, ou na Amazónia, junto à fronteira com a Bolívia. Material não falta.
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