A série Adolescência, exibida na plataforma de streaming Netflix, vai além do mero relato de um crime juvenil; mergulha nas dinâmicas familiares, na vulnerabilidade emocional dos jovens e na influência do meio social e digital. Tendo como mote e referida série, Tiago Pimentel, psicólogo e diretor de operações do Grupo Integral Saúde Mental, detém-se nalguns dos aspetos ali abordados, nomeadamente as carências de comunicação entre pais e filhos. A ausência de um diálogo aberto pode afastar os jovens do apoio familiar, tornando-os mais suscetíveis à pressão dos pares e a decisões impulsivas.

Acresce que a rápida evolução tecnológica tem dificultado a compreensão do mundo dos jovens por parte dos pais, criando um distanciamento que pode comprometer a educação emocional. Para Tiago Pimentel, a solução não passa por proibições rígidas, mas sim por uma educação para o uso consciente das redes sociais e das novas tecnologias, promovendo um espaço de partilha e confiança. Há, pois, que reforçar a urgência de uma parentalidade mais presente e informada, essencial para o desenvolvimento saudável dos adolescentes.

Mais do que uma série sobre o crime, Adolescência debate outras dimensões que deverão estar na ordem do dia, nomeadamente na relação dos pais com os seus filhos. Na sua perspetiva enquanto psicólogo, o que de mais importante devemos extrair destes quatro episódios?

Esta série aborda muito mais do que um crime cometido por um jovem. Aborda de modo muito claro e profundo o tema das dinâmicas familiares, os desafios desta fase etária e o papel dos pais na formação dos filhos. A importância da comunicação intergeracional, os processos de construção de identidade e os riscos que decorrem de contextos sociais e emocionais de grande vulnerabilidade.

Um dos aspetos mais marcantes da série é a evidente lacuna na comunicação entre pais e filhos e as consequências que daí decorrem. A comunicação entre pais e filhos deve ser um ponto trabalhado e construído na base do relacionamento familiar, por forma a que a rotina se estabeleça numa estrutura de abertura e empatia.

“A capacidade de os nossos filhos raciocinarem sobre a informação na internet resume-se a uma palavra: desoladora” – Michel Desmurget, neurocientista
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Deste modo, estar-se-á a promover um ambiente mais seguro para que os jovens possam partilhar com os seus pais as suas fragilidades, sem receios de julgamento e melhor resolver as suas dores emocionais.

Toca ainda, a meu ver, no impacto que o contexto social e a pressão dos pares pode assumir nesta faixa etária, na medida em que demonstra como o reconhecimento de pertença, ou não, pode levar a um desequilíbrio do self perigoso e organizar comportamentos impulsivos e até mesmo agressivos. Este ponto cria, conforme se percebe na série, espaço para um retrato da vulnerabilidade emocional dos adolescentes quanto à forma como lidam com frustrações, inseguranças e expectativas.

Muitos pais manifestam choque com conteúdos como os apresentados na série, apesar de convivência diária com os filhos. O que acredita estar a potenciar este distanciamento entre gerações?

Por um lado, a rápida evolução tecnológica dificulta a compreensão, por parte dos pais, do mundo dos jovens, enquanto o ritmo acelerado da vida reduz, muitas vezes, o tempo de qualidade com os filhos. Ora, estas duas condicionantes acabam por fomentar um fosso entre gerações que conduz a um desconhecimento do que afeta efetiva e profundamente os nossos jovens. Por outro lado, percebe-se ainda que algumas mudanças no conceito de autoridade parental e o receio de abordar temas sensíveis levam alguns pais a evitar conversas essenciais. Para reduzir essa distância, é fundamental investir numa comunicação aberta, demonstrar curiosidade genuína e criar um ambiente de confiança onde os filhos se sintam à vontade para partilhar as suas experiências.

Algumas mudanças no conceito de autoridade parental e o receio de abordar temas sensíveis levam alguns pais a evitar conversas essenciais.

Considera que em termos gerais, enquanto sociedade, temos sido muito permissivos em relação à natureza dos conteúdos veiculados nas redes sociais?

Parece-me que controlar o que é veiculado é de uma complexidade tal que nos pode distrair daquilo que está mais próximo de nós e ao nosso alcance. Não é uma questão de permissão ou proibição. É uma questão de uso consciente. Se nos envolvermos nos nossos contextos e, de um modo participado, criarmos esta atitude do uso consciente das tecnologias digitais, estaremos certamente a ir ao encontro da solução. Este é um tema central que deve ser trabalhado logo desde a infância, assumindo que as tecnologias digitais existem e que temos de as considerar, com regras e limites, adaptados às diferentes faixas etárias. Proibir por proibir não me parece que seja a solução. Desperta a curiosidade e instiga ao uso oculto.

Considerando que os desafios do ambiente digital são multifacetados, de que forma é que a responsabilidade se pode partilhar entre pais, escolas, instituições e os próprios jovens para criar um ambiente mais seguro e saudável?

Eu faço aqui um paralelo com a abordagem e resposta que a sociedade no geral deu ao tema da educação para a sexualidade. De igual modo, nos tempos que correm e com o impacto que as mesmas têm, é de extrema importância que seja levado a cabo um trabalho estruturado e concertado de educação para o uso consciente das tecnologias digitais.

“Se fizéssemos um referendo global, possivelmente a maioria das pessoas votaria para que as redes sociais desaparecessem” – Álvaro Bilbao, neuropsicólogo
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Os riscos são muitos e cada vez mais conhecidos - e esta série cumpriu o papel de alertar para mais alguns – e têm de inspirar boas práticas de educação para que os jovens e os seus sistemas familiares consigam integrar estas realidades com abertura, empatia, apoio e respeito. Mais do que impor regras rígidas, é essencial criar um ambiente de confiança, onde os adolescentes sintam que podem recorrer aos pais em momentos de dificuldade. A educação para uma parentalidade consciente é algo que tem de ser visto como uma prioridade multissistémica.

As redes sociais são frequentemente descritas como uma forma de adição. Que comportamentos e efeitos associados a este fenómeno observa, especialmente entre os mais jovens?

É possível desenvolver uma adição no contexto do uso de tecnologias digitais e em particular das redes sociais e existem um conjunto de comportamentos descritos que sinalizam essa adição. Nomeadamente, o aumento de tempo isolado, sem contacto social presencial; irritabilidade e tendência para conflito quando chamado à atenção por estar diante de ecrãs; preterir outras atividades em detrimento de tempo online; alimentar a sua autoestima fundamentalmente pelo retorno obtido do ambiente online, transpondo para este universo a relevância das relações e interações mais comuns no ambiente offline. Por exemplo, referir que é popular, que tem muitos amigos verdadeiros, que as pessoas gostam muito dele, pelo número de likes que colocam.

Quando falamos de redes sociais parece-lhe prudente demonizá-las perante os jovens? No fundo fazem parte do seu quotidiano e, convenhamos, os pais também as usam.

Se considerarmos bem, a série que serviu de mote a esta entrevista ganhou projeção também devido às redes sociais. Esta entrevista chegará a muito mais leitores por ser dada numa plataforma online. As redes sociais existem e não devemos diabolizá-las ou tentar assumir que são proibitivas. Devemos integrar a sua presença e educar para o seu uso, tendo bem presente que nós próprios também podemos ser modelos para quem está perto de nós. As tecnologias digitais também cumprem um propósito social importante, do ponto de vista da evolução, inovação e acesso à informação.

As redes sociais existem e não devemos diabolizá-las ou tentar assumir que são proibitivas. Devemos integrar a sua presença e educar para o seu uso.

Dado que muitas vezes os próprios pais não estão plenamente informados sobre os riscos das redes sociais, que estratégias sugeriria para que consigam transmitir estes perigos de forma eficaz aos seus filhos?

Como com qualquer outra questão, a probabilidade de conseguirmos manter uma relação positiva com determinado estímulo implica que devemos estar informados a respeito dos efeitos positivos e negativos que essa relação nos pode trazer. Na relação e negociação com os filhos é muito importante que esta partilha dos efeitos positivos e negativos ocorra logo desde cedo, procurando falar abertamente dos perigos e de como os devemos enfrentar. Importa ainda que atitude seja clara quanto às responsabilidades, limites, liberdade e autoridade parental na regulação do uso, sendo que o modo como se comunica e monitoriza poderá fazer toda a diferença.

“Os adolescentes são hoje tecnocratas de mochila” – Eduardo Sá, psicólogo clínico
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Uma coisa é dizermos “mostra-me já o teu telemóvel e as conversas que andas a ter”, outra é “Com quem tens estado a conversar? E como te tens sentido nessas interações? Pelo que partilhas talvez seja importante vermos os dois o conteúdo dessa conversa.” É importante que, independentemente da idade, se consiga criar um espaço de respeito pela privacidade do adolescente, fazendo-o reconhecer conforto emocional e confiança para se abrir. Pode também ser importante regular os períodos e o tempo de uso e contacto com as tecnologias digitais e/ou as redes sociais, envolvendo as crianças e jovens também nas suas opções.

Considerando que as redes sociais atuam como amplificadoras do bullying, parece-lhe prudente a regulação do acesso dos jovens a estas plataformas de forma a salvaguardar o seu bem-estar?

Acredito que a regulação pode e deve ser feita não com base em critérios de imposição e obediência, mas sim em critérios de formação, educação e desenvolvimento. Isto aplicado aos diferentes contextos de vida. Até porque as redes sociais também podem amplificar aspetos positivos. É importante é tê-los claros.

O psicólogo Tiago Pimentel tem vindo a analisar os impactos psicológicos do ambiente digital e dos comportamentos expostos na série. Qual o papel que a intervenção de profissionais da sua área pode desempenhar na promoção de um desenvolvimento emocional saudável entre os jovens?

A intervenção psicológica junto dos jovens podem assumir um contributo muitíssimo poderoso na medida em que pode atuar no sentido de apoiar no processo de conciliação e integração das diferentes camadas emocionais que os jovens vivenciam nas suas experiências, com a sua estrutura do self. Apoiar processos de compreensão e entendimento acerca do que se passa à sua volta e melhor agir nos contextos relacionais, com os pares e com os seus familiares. Desta maneira, a intervenção psicológica, seja individual, em grupo, comunitária ou mesmo familiar poderá cumprir um propósito maior de contribuir para termos jovens, grupos, comunidades e sistemas familiares mais esclarecidos, mais aceites, mais respeitosos uns dos outros e também mais protetores. Destacaria ainda que o sucesso de qualquer intervenção é exponenciado quando combinado com as restantes áreas que impactam os sistemas que envolvem os jovens, isto é, professores, educadores, políticos, entre outros.