O Fábio da Silva intitula-se um “astronauta da curiosidade”. Antes de chegarmos ao espaço, há que perceber como preparou esta sua missão de vida. O que incendiou o rastilho que o fez querer voar rumo à conquista do espaço?
O que incendiou o rastilho que fez descolar a minha nave da curiosidade foi, curiosamente, um rastilho no céu, uma espécie de rastilho cósmico: a passagem do belo cometa Hale Bopp, em 1997, tinha eu seis anos. E aquilo fez faísca! Para um miúdo, como eu, que achava que a minha cidade-natal, Tomar, era o centro do universo, aquilo teve um efeito profundamente desconcertante: “como assim, há mais coisas lá fora do que a minha cidade ou do planeta Terra”. Contactar com esta realidade, ver aquelas imagens maravilhosas do cometa e acompanhar a discussão sobre um corpo celeste que vinha de fora do sistema solar, teve um impacto magnetizante em mim e expandiu literalmente o meu universo. Foi preciso uma rocha gelada viajar milhares de milhões de quilómetros ao longo de quatro mil anos da sua órbita para levar um miúdo de seis anos a olhar para cima de outra forma. A partir de então, segurei-me na cauda do cometa e lá fui eu, viajando com ele para conhecer melhor o universo - e tomar notas.
Acender a paixão de terceiros em relação a um tema – neste caso o espaço – implica que o comunicador viva essa paixão. Tendo de elencar alguns argumentos para libertarmos os olhos da Terra e os virarmos para as estrelas, quais são os que lhe ocorrem de imediato?
Olhar para cima, para o céu à noite, é extremamente divertido, útil e ajuda-nos a calibrar o nosso posicionamento com a realidade que nos rodeia, lá fora, e em relação a nós próprios, cá na Terra.
Em relação ao primeiro, garanto: a natureza da realidade em que vivemos é mais fascinante e desconcertante do que o melhor filme de ficção-científica, e as pessoas merecem saber disso. Por exemplo, não é preciso vermos o Interstellar para contactar com a dilatação do tempo que vemos no filme, porque agora mesmo, enquanto lemos este texto, o tempo está a passar mais devagar nos nossos pés do que na nossa cabeça. Depois temos tanto a acontecer “lá em cima”: o céu à noite é uma máquina do tempo e tudo o que vemos, vemos no passado – e até podemos estar a olhar para uma estrela que já pode ter morrido. Isto, porque a luz, como o som, também demora a chegar até nós. Encontramos buracos negros, planetas onde chove diamante, formas de vida exótica – que pode bem existir até no nosso Sistema Solar (microbiana). Todos os dias, à nossa volta, há algo de fascinante a acontecer nesta peça de teatro no palco do universo – fora tudo aquilo que não sabemos que ainda não sabemos. E é fácil de aderir a este fascínio.
Depois, há uma dimensão muito humana e terrena na compreensão do universo, quase “construtora de caráter”, como diria Carl Sagan. Isto porque aprender sobre o cosmos vai além de aprendermos sobre o muito distante; é na verdade aprender também sobre o muito próximo. Estima-se que, desde a formação do universo até ao seu fim, a vida como a entendemos, só será possível durante um milésimo de um bilião de bilião de bilionésimo, de bilião de bilião de bilionésimo, de bilião de bilião de bilionésimo por cento. São sessenta zeros decimais. Estamos na primavera da consciência deste universo, e na curta janela que se abre para cada um de nós, somos portadores da tocha da vida. Podemos e devemos saber cuidar melhor uns dos outros e do nosso planeta. Somos todos, literalmente, feitos de matéria estelar – de estrelas que outrora morreram e cujos ingredientes foram os blocos fundadores do nosso Sol, da Terra e de nós próprios. Ora, se somos tetra-tetra-netos de estrelas, isso faz de nós estrelas também. Podemos e devemos comportarmo-nos como tal e aprender que olhar para cima é também olhar por nós e pelo nosso planeta. O céu à noite, disponível para todos, é como tapeçaria de estrelas que nos passa esta mensagem todas as noites, e nós devemos estar atentos.
Criou o projeto Universo Perpendicular uma “rampa de lançamento”, como escreve, para este seu livro. Antes de nos determos na obra em papel, quer falar-nos um pouco da sua presença online no “Universo Perpendicular”?
O Universo Perpendicular é o produto da minha vontade de “dar espaço” e contar a toda a gente estas dimensões fascinantes e humanas do universo. Como infelizmente não me tornei nem cientista, nem astrofísico e muito menos astronauta, decidi ser “astronauta da curiosidade”. Pensei para mim: “jamais poderei ir à Lua fisicamente, mas posso ir com a mente. Ora, se a minha mente chega à Lua, pode chegar a qualquer lado. E se eu posso, então todos podem”. Esta foi a forma que encontrei de participar no fenómeno – ser a ponte, ou o buraco de minhoca, entre o cosmos e o público. E a viagem tem sido fantástica: comecei em 2021, em plena pandemia, e desde então o projeto tornou-se no maior projeto digital 100% dedicado à comunicação de ciência em Portugal. E nasceu sobretudo da vontade de contar as estórias do universo através de um ângulo criativo e acessível, das mais complexas às mais simples e sem esquecer os temas mais profundos. E ao falar do Universo Perpendicular, não posso deixar de enviar uma mensagem especial a todos os que ajudaram o projeto a chegar até aqui, com o seu apoio fantástico. Esse é o maior combustível que posso ter e que alimenta este projeto: perceber que há mesmo espaço para a ciência em Portugal e que, dos mais leigos aos especialistas, todos gostam de ser astronautas da curiosidade.
Hoje, graças a este crescimento, o projeto já expandiu além-fronteiras do digital, com convites para workshops, palestras e vários trabalhos na área da consultoria em comunicação de ciência com a academia e empresas do setor – e claro: com o livro que tive o prazer de escrever e lançar.
Vivemos um tempo de contradições. Avançamos no conhecimento, mas debatemo-nos com desinformação, dogmas, aversão à Ciência. Enquanto comunicador de Ciência que desafios lhe colocam o tempo presente?
Não deixa de ser bizarro como vivemos simultaneamente numa era na qual, num ano, é produzida e partilhada mais informação entre seres humanos do que em toda a história da Humanidade (até certo ponto do século passado, claro), e na qual, em paralelo, o sentimento em relação a ciência é cada vez mais polarizado. Além disso, as fundações sobre as quais a nossa civilização assenta são todas alicerçadas na ciência e no método científico. Virtualmente tudo, tudo sem exceção, o que está à volta de quem estiver a ler este texto vem de uma ideia que foi sistematizada e aplicada sob o método científico. Mesmo se estiver a ler isto no meio da selva precisa, pelo menos, de um telemóvel e de ligação à internet. Negar a ciência é negar a máquina que faz, desde os princípios da Humanidade, a nossa civilização evoluir – desde a descoberta do fogo aos foguetões que aterram sozinhos da SpaceX. Ciência é o motor do progresso.
Parece-me claro que um dos sintomas de excesso de partilha de informação, especialmente com a maturação das redes sociais, é rápida proliferação de falsa ou desinformação. E o público menos treinado acaba por ser mais vulnerável a estas mensagens, seja por ausência de conhecimento, seja por ser mais confortável aderir a um dogma que se aproxima mais das suas crenças do que em desconstruir e recalibrar as suas convicções.
Enquanto comunicador de ciência, chamo a atenção para a necessidade de ser adotado um discurso agregador em resposta à descrença/desconfiança na ciência. Ciência não deve dividir; deve agregar. Esta abordagem não se esgota apenas nas pessoas que não acreditam que fomos à Lua ou naquelas que dizem que a Terra é plana. Já vi pessoas dizerem que a SpaceX não lança foguetões nenhuns e que as imagens são falsas. Esta abordagem estende-se também a períodos críticos como os que vivemos durante a pandemia. Em períodos nos quais somos confrontados, num curto espaço de tempo e a uma escala global, com uma realidade desconhecida para a esmagadora maioria das pessoas, é normal haver três tipos de grupos: os que aceitam a ciência; os que não aceitam a ciência; e os que têm dúvidas legítimas. Cabe à comunicação de ciência informar e esclarecer os dois últimos grupos, e não rotular imediatamente estes grandes grupos de pessoas de negacionistas. O instinto deve ser o de agregar, de informar, encontrar novas formas de comunicar e de chegar ao público; não deve ser o de agredir e dividir. E enquanto houver um terraplanista ou antivacinas no mundo, temos trabalho a fazer.
Não obstante o Fábio estudar desde há muito as questões ligadas ao espaço, não tem uma preparação formal na área. Como consegue “descomplicar” temas densos para os entregar ao leigo na matéria?
O segredo é nunca perder de vista justamente o ponto de partida desta viagem, e manter sempre o instinto de olhar para estas matérias na pele do Fábio de seis anos, como naquela vez em que vi o cometa Hale Bopp da janela – por mais que tenha aprendido sobre o espaço e me tenha equipado com conhecimento técnico. Ao longo de todos estes anos, e ainda hoje, nunca deixei de ser uma pessoa olha para astronomia, astrofísica e cosmologia da perspetiva do leigo. E esta perspetiva ajuda-me muito a olhar para temas complexos sempre na ótica de quem nunca ouviu falar deles, e é justamente assim aprendi e ainda aprendo sobre eles. Por mais que compreenda, por exemplo, a Relatividade Geral de Einstein e as suas implicações em relação à natureza da realidade e nas nossas vidas, eu vou sempre querer traduzir a ideia em algo tangível, fácil de entender, como aquele exemplo de o tempo passar mais devagar nos pés do que na cabeça. Razão pela qual eu gosto de dizer que jogo mal à bola: porque penso mais rápido do que executo. É assim que aprendo estas disciplinas e é deste modo que me sinto bem em explicar a quem me acompanha.
Por exemplo: uma coisa é eu dizer que uma aurora boreal é resultado da interação entre os ventos solares e o campo eletromagnético da Terra; outra coisa é eu dizer que o Sol e a Terra namoram, e quando o Sol suspira a Terra arrepia-se toda e fica corada. Eu interesso-me pela simplificação, sim, mas também em ajudar quem me lê e vê com exemplos práticos e terrenos – ajudar as pessoas a olhar o universo desse ângulo diferente. Outro exemplo, de natureza mais filosófica: a Lua está no céu à noite todas as noites. Mas quantas vezes parámos para olhar para ela, conscientes de que aquela bola de luz foi a mesma bola de luz para onde olhavam Camões, Cleópatra, Sócrates, ou mesmo os nossos mais primitivos antepassados? Através desta lente, a Lua deixa de ser uma rocha indiferente aos nossos olhos e passa a ser o ponto de encontro para todos os olhares, ânsias e segredos de toda a gente que já viveu, como que uma guardiã de pensamentos da Humanidade.
Em concreto, o que vai o leitor encontrar em As 100 Maiores Curiosidades Sobre o Cosmos que outros livros sobre o tema não lhe entreguem? O facto de “não ser um livro de ciência normal”, como o descreve no prólogo à obra?
Na realidade, já há muitos e muito livros de ciências do espaço que descrevem conceitos científicos ou que viajam pela história da ciência. Não iria oferecer nada de novo se seguisse esse caminho. Neste livro decidi escrever prosa científica, desafiando o leitor a embarcar numa viagem à descoberta do universo, feita de porquês e alimentada com o combustível da curiosidade – sempre norteada pelo mais rigoroso conhecimento científico. No fim, depois de visitar estas cem paragens cósmicas, o desafio é que o leitor sinta que afinal de contas é mesmo divertido e intrigante conhecer os mistérios do universo através desta perspetiva. Da natureza do universo, ao nosso relacionamento com o cosmos, tentando responder a perguntas como “de onde viemos, quem somos, para onde vamos?”, acima de tudo pretendo transformar o modo como o leitor olha para cima, para a Terra e para nós próprios, questionando o que sabemos e o que julgamos saber, sem medo dos porquês, bem na fronteira do nosso conhecimento, sobre o presente o futuro da nossa espécie e o nosso lugar no cosmos. No fundo, este livro é um convite para que o leitor se torne, à sua maneira, um poeta do espaço; um astronauta da curiosidade, e que no fim sinta que aprendeu algo verdadeiramente novo, divertido e inspirador sobre o universo.
Não pretendendo ser exaustivo em relação aos temas que leva para o livro, mas há um tema que vale a resposta do milhão de euros: “A Terra é a norma ou a exceção?”. O Fábio quer dar-nos o seu parecer, ou deixa a resposta entreaberta?
A resposta até já está a começar a ganhar forma, e de resto essa é a beleza da ciência: empurrar, aos poucos e para bem longe, as barreiras do conhecimento. No livro desafio o leitor a pensar neste tema. No Sistema Solar há três planetas que estão na zona privilegiada deste nosso bairro cósmico: são eles Vénus, Terra e Marte, e vivem os três na baixa, na zona de Goldilocks, a zona habitável do nosso sistema - onde nem faz muito frio, nem muito calor e onde a vida teria condições para florescer.
No entanto, o mais intrigante é que, dos três, a Terra é hoje o único com as condições atmosféricas que lhe permitem exibir a medalha da vida. Daí decorre essa pergunta: será a Terra a exceção ou a norma? O que aconteceu a Vénus (é um inferno, com atmosfera muito densa graças à quantidade gigante de dióxido de carbono e efeito de estufa descontrolado) e a Marte (é um deserto, com atmosfera demasiado fraca, que se deteriorou ao longo dos tempos) era suposto acontecer a nós? Se não aconteceu, porque é que não aconteceu? Esta questão é profundamente desconcertante e coloca em perspetiva a fragilidade do nosso planeta e do quão privilegiados somos por termos sido agraciados com a ínfima probabilidade estatística de podermos existir. Quanto à resposta, deixo uma pista: a Lua, sem querer, pode ter sido a nossa salvadora. Mais uma razão para olharmos para ela com um olhar diferente.
Pedir-lhe entre cem histórias que escolha uma, é como pedir a alguém que eleja o seu filho favorito. De qualquer forma, arrisco esta pergunta. Há alguma história que o seduza em particular?
É uma missão astronómica. Diria que todos os temas que colocam em perspetiva o nosso lugar no cosmos, no tempo e no espaço, de modo profundo e filosófico, me fascinam. Há um tema em específico que me emociona, que numa primeira leitura pode parecer triste, mas que na realidade é uma mensagem de esperança. Um dia, daqui a triliões e triliões de anos, o universo vai morrer. Sozinho, sem ninguém, e ainda por cima de frio – a morte térmica do universo [hipótese do Big Freeze]. Este é o cenário mais provável, em virtude do estado de arte da ciência contemporânea. E é particularmente emocionante imaginar que este lugar ao qual chamamos universo, outrora divertido, colorido e rico em vida e quem sabe consciência, um dia vai ser um jardim estéril, frio, extremamente sombrio; um cemitério de estrelas das quais não tivemos chance de nos despedirmos.
E inevitavelmente, num futuro remoto, quando o último buraco negro tiver explodido ou evaporado, o universo terá dado o seu último suspiro. O último testemunho de vida deste universo; o ponto final desta história de milhares de triliões de anos – e é aqui que entra a mensagem de esperança. Mais do que um ponto final nesse lugar longínquo do tempo e do espaço, esse será um ponto de encontro. Um ponto de encontro entre tudo o que foi, é e será; entre todos nós, a nossa civilização, e o nosso futuro; outras civilizações; toda a arte, cultura, lendas, amores e terrores: vai estar tudo ali, testemunhado naquele último vestígio de vida neste universo. E a mensagem inspiradora que nos chega deste ponto de encontro é que hoje, tantas vezes desencontrados, saibamos que inevitavelmente nos vamos encontrar nesse último suspiro; que apesar de o ponto final estar escrito, temos controlo sobre a história que queremos escrever, coletivamente. E que saibamos usar a palavra humanidade para nos representar nessa história.
O Fábio com este seu livro também quis desconstruir alguns mitos relacionados com o espaço. Quer contar-nos sucintamente alguns deles?
Muitos destes mitos surgem ou por algumas imprecisões na comunicação de ciência, ou simplesmente de a mesma mensagem ser de tal modo filtrada que se desvirtua do sentido original, como no jogo do telefone estragado. Desde temas clássicos, sobre se a Terra é mais lisa do que uma bola de bilhar; se Saturno flutuaria ou não num lago; se o telescópio espacial James Webb desmentiu ou não a Teoria do Big Bang. A temas de índole mais informativa, como qual a diferença entre meteoro, meteorito e asteroide; a relação entre religião e ciência; a possibilidade existir vida fora da Terra e que tipo de vida será, por definição, mais provável de encontrarmos. Tudo cabe neste roteiro cósmico.
Imagine que lhe era dada a possibilidade de desvendar um dos mais notáveis segredos do Universo. Qual escolheria e porquê?
Adorava desbloquear o que se passa no interior de um buraco negro, porque muito provavelmente seria fundamental para expandir nossa compreensão da natureza e estrutura do cosmos. O que se passa num buraco negro? O que acontece ao tecido do espaço-tempo após a formação de um buraco negro? Existe relação entre a formação de um buraco negro e os famosos “buracos de minhoca”? Durante a sua formação, o tecido do espaço-tempo é torcido de tal modo que se unem duas regiões diferentes do mesmo universo, ou cria-se outro universo do outro lado? São buracos negros (os supermaciços) eles próprios universos dentro do universo? Será o nosso universo um buraco negro no interior de outro universo? Será o hipotético multiverso uma hiper-matrioska de universos com universos dentro de universos? Tudo isto parecem perguntas absurdas, mas sobre as quais não fazemos a mínima ideia da sua plausibilidade – e desbloquear a natureza dos buracos negros dar-nos-ia uma perspetiva importante sobre elas – mesmo que estejam todas erradas. Além de ser fascinante o que pode acontecer além do horizonte de eventos e da mecânica do seu interior, desvendar os segredos dos buracos negros seriam um enorme trampolim para desvendar ainda mais perguntas. A beleza da ciência é esta: encontrar respostas que vão desbloquear ainda mais perguntas, porque fazer perguntas é o motor do pensamento científico.
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