Na semana passada, foi aprovado na generalidade um projeto-lei relativo aos crimes contra a liberdade sexual com dois contributos importantes: - por um lado, o prazo para apresentação de queixa, na atualidade de seis meses, pode vir a ser alargado para um ano, o que confere à vítima mais tempo para refletir, e, por outro lado, alcançou-se a possibilidade de concessão de apoio judiciário com natureza urgente e sem necessidade de prova da insuficiência económica, reduzindo o quadro de desigualdade social, à semelhança do que existe com as vítimas de violência doméstica.
Este projeto aprovado pela Assembleia da República terá agora de ser discutido na especialidade, o que será potenciador de um amplo debate quanto à possibilidade de o crime de violação passar a ser um crime público, porquanto a atual lei não permite que o processo-crime seja denunciado por qualquer cidadão relativamente a factos de que tem conhecimento, sendo necessária a apresentação de queixa por parte da vítima em relação ao agressor.
A natureza pública do crime de violação tem sido alvo de muitas discussões e, na verdade, constitui uma importantíssima e almejada alteração legislativa que tem como objetivo que o crime de violação, na esmagadora maioria das vezes praticado contra as mulheres e crianças em contexto de relações de intimidade, seja entendido como uma violação dos direitos humanos das mulheres na esteira das orientações preconizadas pela Convenção de Istambul a que Portugal se vinculou e que está em vigor no ordenamento jurídico português.
O principal objetivo da consagração da violação como crime público é o garantir da possibilidade de punição do crime em questão enquanto crime hediondo e profundamente atentatório dos direitos humanos das mulheres que ao longo dos anos tem ficado muito aquém da apreciação judicial precisamente pela falta de apresentação de queixa quase sempre alicerçada na vergonha e silêncio da vítima, quando a tónica da vergonha deve ser colocada, sim, no agressor. Tendo presente que a esmagadora maioria das vítimas conhece o agressor, a não apresentação da queixa significa para as vítimas continuar a viver no medo e na vergonha, o que constitui em si mesmo um paradoxo. Assim, se o crime passar a ser público, aumentará exponencialmente a possibilidade de os agressores virem a ser julgados pela prática do crime, que poderá ser denunciado por qualquer pessoa que dele tenha conhecimento, sem que a vítima tenha de tomar essa iniciativa, evitando-se também a reincidência da prática criminosa.
Acresce que, o argumento comumente utilizado que as vítimas não apresentam queixa para não terem de se expor é muito pouco válido porquanto será um crime investigado em segredo de justiça, o que significa que o processo jurídico não ficará acessível para consulta de terceiros.
Evidentemente, se atingirmos o patamar da natureza pública dos crimes sexuais, o Estado terá a obrigação de estabelecer um regime jurídico que proteja as vítimas de violência sexual durante a pendência processual, à semelhança do que sucedeu com o regime jurídico estabelecido para as situações de violência doméstica.
Tudo visto, é altura de atentarmos na importância do bem jurídico protegido nos crimes de natureza sexual, que é a liberdade de autodeterminação sexual, não pertence só às vítimas, a toda a sociedade, que não se pode compadecer com qualquer tipo de violência, muito menos com as formas de violência que constituem violação dos direitos humanos.
Alcançarmos a natureza pública do crime é permitir a mudança, abandonar conceitos que fazem parte de uma sociedade patriarcal e com enorme resistência em percecionar e interiorizar o que significam os direitos humanos das mulheres e como devem ser combatidos os crimes de género.
Importa, pois, continuar a promover a mudança da consciência social, ter uma lei e aplicação da lei que transmitam a ideia de intolerância e impunidade em relação à violência praticada contra as mulheres por serem mulheres e de uma vez por todas elimine a cultura machista, pois, a mensagem será passada para a sociedade em geral e para os agressores em particular que sentirão que esta tipologia de crimes não mais ficará impune.
Este tem de ser o grande e primordial de qualquer Estado de Direito Democrático, alicerçado em Convenções Internacionais às quais se vinculou e que tem de ter como grande bandeira o respeito pelos Direitos Humanos.
Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.
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