Muitas das conversas que tenho com pais/cuidadores sobre autonomia e rotinas, começam sempre com o desespero de ter todas as tarefas orientadas antes de sair de casa e no regresso a casa, ter novamente todas as tarefas orientadas antes de ir para a cama.
Manhãs e finais de dia – as horas de ponta da família … o desespero, o cansaço, a irritabilidade… e a eterna questão “ele não faz porque não quer.” E se o tempo é curto, nestes momentos de conflito parece eterno…
Com este pequeno texto pretendo refletir sobre a interligação da rotina e autonomia, e como por vezes as crianças não fazem porque não lhes é dada a oportunidade de falhar e criar novas estratégias de concretizar a tarefa inicial e desta forma não se autonomizam.
Vou propor um exercício – pesquisar no doctor google:
1. Autonomia
• Do grego autonomía - a junção de auto (si mesmo) e nomos (lei)
• A Wikipédia refere “Aquele que estabelece a própria lei” (sic) mais ainda explica que “É a capacidade de um individuo racional de tomar uma decisão não forçada baseada nas informações disponíveis.” (sic)
• Priberam – liberdade para usar leis próprias, independência
2. Rotina
• Do francês routine, route – caminho
• Priberam – “Caminho já trilhado ou sabido”; (sic)
• ”Hábito de fazer uma coisa sempre do mesmo modo”(sic)
Vivemos numa época acelerada, com exigências por vezes dantescas. As rotinas familiares são pautadas predominantemente, por horários em contra-relógio, em tempos que não chegam para nada… em esticar daqui, cortar dali … como se o tempo fosse infinito, e como se fosse possível ser omnipresente.
Associada a esta corrente de pensamento, surge a culpabilidade das famílias… que por mais que façam, dificilmente conseguem aceder ao lugar da família perfeita, que consegue conciliar casa, trabalho, atividades extra, felicidade e alguns trocos poupados no final do mês.
As crianças aprendem por imitação, e por norma imitam quem admiram… os pais, são os modelos primários. De forma muito abrangente, podemos ver que tudo o que os pais fazem os filhos querem fazer… a grande diferença está na experiência prévia dos pais, e no reportório de experiências que estes tiveram para poder executar as tarefas de forma ligeira e célere.
E por muito que a criança tente, há detalhes que vão qualificar o resultado da tarefa, detalhes esses que estão associados à maturação do adulto e às experiências de insucesso que este teve previamente, e aos planos b que executou para ter sucesso e ser autónomo.
Associando os termos supraferidos – Autonomia e Rotina. A rotina promove autonomia, e a autonomia permite novas rotinas. Ou seja, não é possível ser autónomo numa tarefa sem ela ter sido aprendida… não é possível aprender sem tentar… e falhar na tarefa, é igualmente inevitável e até mesmo importante.
Quando repito uma tarefa diariamente com sucesso, transformo-a numa rotina… se alguém a faz por mim, não só me está a dizer que sou incapaz, como não me permite ter uma rotina satisfatória, nem me autonomizar.
Frequentemente ouço os pais a dizerem “se eu não fizer nada acontece…” quando questionados e estimulados a explorar este pensamento, os pais percebem que muitas vezes as suas rotinas são ajustadas às suas necessidades de adultos e que por economia e gestão de tempo não arriscam deixar os filhos fazerem tarefas normativas do desenvolvimentos, como vestir/despir sozinho, calçar… ‘é mais rápido se eu fizer, e nós não temos tempo…. Se ele fizesse como lhe digo e quando lhe digo’.
É muito importante que os pais conheçam bem os filhos e se conheçam ainda melhor a si mesmos. Saber quais as expetativas e taxa de esforço necessária para cada tarefa, antecipar eventuais variáveis parasitas, enquadrar… tudo ajuda a diminuir o conflito.
Ressalvo uma das minhas premissas, as crianças querem ser mestres e maestros. Mestres em algo e maestros na sua vida. Quando os adultos, nas suas rotinas, se esquecem de encontrar o tempo de deixar fazer, para deixar falhar e esta falha ser o feedback necessário para que a criança no seu reportório (significativamente mais pequeno que o dos pais) possa encontrar o plano B… os adultos estão a impedir a criança de ser autónoma.
Posso, em consciência, dizer que grande parte das crianças com quem privei, não faziam porque não lhes era permitido. Porque as rotinas eram desajustadas às capacidades, necessidades e motivações… por vezes basta trocar a hora do banho, a autonomia surge e o caos diminui. Não pretendo com esta minha reflexão, incitar à anarquia familiar, mas sim propor uma visão com uma lente mais abrangente, deixar o modo pixel. Um olhar estruturado e sensato.
Se a criança tem 3 anos não podemos esperar, mesmo que tenha repetido a tarefa mil vezes, que arrume os sapatos sempre no mesmo sitio… mas podemos esperar que saiba onde é a casa dos sapatos… menos ainda podemos esperar que a motivação para arrumar os sapatos seja igual à do adulto, principalmente se adorar andar descalça … mas podemos pedir que os pais, junto à entrada da casa construam a casinha dos sapatos (mesmo que a sapateira esteja noutro local) pois já sabem que o filho vai chegar a casa e vai logo tirar os sapatos (claro… se gosta de andar descalço). Desta forma os pais trabalham em feedfoward e os filhos em feedback.
Sabemos que a criação de novos hábitos e novas rotinas, implicam consistência, perseverança, tempo (algumas semanas por vezes)… sabemos que até ser uma competência, temos de nos esforçar e repetir… sabemos que há muitas maneiras de executar uma mesma tarefa… sabemos também que a árvore não nasce imediatamente após ter sido plantada a semente… e posto isto:
• Desafio os pais (sempre que possível), a fazer com, em vez de fazer por…
• Desafios os adultos a permitir que o feedback seja do contexto e não de si mesmo…
• Desafio os agentes de educação a permitir que o plano b surja…
• Desafio-nos a nós agentes de saúde mental, a facilitar que as famílias encontrem nas falhas das tarefas uma nova oportunidade.
Mafalda Correia
Terapeuta Ocupacional
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