Num discurso pessoal, por vezes humorístico, a pediatra Joana Martins conta-nos como é o dia a dia de uma profissional de saúde em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2. Este é o décimo episódio:

Não, o SARS-CoV-2 não foi “bonzinho” para os portugueses. As medidas de confinamento é que conseguiram mudar o curso de uma pandemia que, sem margem para qualquer dúvida, prevíamos ser esmagadora para o nosso sistema de saúde. Mas nada disto acabou. Nada passou. E temo bem que as expectativas optimistas de dispormos de uma vacina em larga escala para o último trimestre deste ano sejam irrealistas.

Se há coisa que consegue salvar vidas, como vimos, são as medidas de saúde pública. Mais do qualquer médico, individualmente, por mais brilhante que seja, é capaz de fazer. E este confinamento, não duvidem, salvou muitas vidas. Poderia continuar a salvar muitas mais.

Como profissional de saúde, a estratégia óbvia seria manter o confinamento até haver uma vacina protetora. Aspirações irrealistas, bem sei. Mas eu sou médica no terreno, bem na base da cadeia alimentar, longe dos círculos de decisão, onde estarão pessoas com mais experiência, mais deliberação, mais informadas do que eu. E se chegou a hora de abrir, pois que seja. E se falharmos? Podemos sempre voltar atrás. Estamos a escrever um guião de uma novela da Globo: a cada semana podemos sempre reescrever o episódio seguinte, matar o protagonista, apanhar o ladrão, retroceder nas medidas que avançamos. Não é indecisão política. É desconhecimento. É navegar à vista. Porque ninguém, absolutamente ninguém, sabe bem o que estamos a enfrentar.

Isto é como jogar às escondidas. Ficámos tão bem escondidos que já não sabemos se os nossos companheiros de jogo foram apanhados, se estão à nossa espera, se vamos poder chegar em último, driblar quem está à nossa procura e salvar todos no fim

Com a reabertura das creches e posteriormente do ensino pré-escolar, prevê-se um aumento do número de infetados. Temo bem que voltaremos às enchentes das urgências do período pré-COVID, com a pequena desvantagem de estarmos a lidar com algo nunca antes visto. Das poucas informações científicas fiáveis que vamos recebendo dos nossos colegas italianos, espanhóis e ingleses, conseguimos perceber que a idade pediátrica é globalmente poupada. Ou pelo menos, mais poupada que os adultos. Há uma preocupação com as crianças com menos de 1 ano de idade que nos foi transmitida pelos estudos chineses, que não pode, nem deve ser negligenciável. No entanto, nas últimas semanas chegaram-nos relatos de um número crescente de crianças gravemente doentes, com uma síndrome hiperinflamatório com afetação pulmonar, cardíaca, vascular e renal. Com isto quero dizer que, sim, há muita coisa que não sabemos sobre este novo vírus. E é capaz de não ser tão benigno assim para os miúdos. Mas temos que pagar para ver. Não há volta a dar.

O mundo não pode ficar em suspenso. Isto é como jogar às escondidas. Ficámos tão bem escondidos que já não sabemos se os nossos companheiros de jogo foram apanhados, se estão à nossa espera, se vamos poder chegar em último, driblar quem está à nossa procura e salvar todos no fim. Só que não vamos conseguir salvar todos no fim. E o jogo não pode durar para sempre.

Pior que que fazer alguma coisa é não fazer nada. E pior do que morrer de infeção pelo vírus SARS-CoV-2, é morrer de fome. Reparem, nos últimos 50 dias, o Banco Alimentar recebeu 11.600 pedidos individuais de apoio. Se pensarmos que provavelmente os agregados familiares têm mais do que dois elementos e que, na realidade, estes pedidos digam respeito a cerca de 55.000 pessoas, percebemos que o confinamento mergulhou os mais pobres, os remediados, os assim-assim, no absoluto desespero.

Recebo tantas mensagens de pais preocupados com os seus filhos, que tento, dentro das minhas possibilidades, serená-los: será uma boa medida, reabrir as creches no dia 18 de maio? Não sei. Mas quem é que sabe?

Se há momento em que a transparência é necessária, é este. Sejam cuidadosos com os filhos dos outros como gostariam que fossem cuidadosos com os vossos filhos

Se têm filhos com menos de um ano de idade e têm com quem deixá-los, então, por favor, optem pela hipótese mais segura. O mesmo se aplica para todas as crianças com patologia respiratória ou outras doenças crónicas comprovadas. Se não, vão para a creche. Creches mais limpas, com menos crianças por sala, com (ainda) mais vigilância e (ainda) mais cuidado. Mas por favor, tudo isto será em vão se decidirem enviar o vosso(a) filho(a) para a creche com febre, mesmo que só 38,2ºC, mesmo que disfarçada com a toma de um paracetamol logo de manhã. Já todos fizemos isto. Não pretendo atirar pedras. Mas se há momento em que a transparência é necessária, é este. Sejam cuidadosos com os filhos dos outros como gostariam que fossem cuidadosos com os vossos filhos. É tão simples quanto isso.

Em relação ao uso de máscaras, a Academia Americana de Pediatria não recomenda o uso de máscaras abaixo dos 2 anos de idade, precisamente porque não é possível controlar uma criança pequenina e fazê-la compreender as regras da sua utilização. De que serve uma máscara se os miúdos estiverem continuamente a mexer nela, a esfregar o nariz e a boca com comichão? De nada.

Por isso, dentro das possibilidades de todos, vamos manter o distanciamento social, vamos manter a higiene das mãos, vamos evitar mexer na cara, vamos afastar-nos naturalmente de locais públicos fechados. Vamos tentar, de todas as maneiras e feitios, garantir que esta abertura será mesmo faseada, com um aumento de número de casos expectável, mas controlado. Vamos não deitar a perder os esforços de todos, mas sobretudo daqueles que nada têm e que deram por si na posição desesperada de ter que pedir para comer.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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