Não raro, são-nos apresentados índices de felicidade por país, com as inerentes disparidades geográficas e de contextos sociais. Também não faltarão perceções diferentes do que é a felicidade. Transversal a todas as latitudes, assome o facto de a felicidade se apresentar como uma meta comum a todas as culturas e mais ou menos alcançável. No seu livro Hábitos simples para miúdos extraordinários (edição Planeta), a psicóloga Cristina Valente, parte de uma definição da felicidade (“a felicidade não é uma emoção, mas sim uma ferramenta. O ser humano tem que decidir ser feliz”) para, daí, nos apresentar um modelo de desenvolvimento estruturado para crianças e adolescentes, fazendo-os mais empáticos, resilientes, corajosos, autónomos e responsáveis, agora e na sua vida futura.

Para tal, cabe a pais e professores uma ação transformadora sobre os hábitos instaurados entre os mais novos, sublinha Cristina Valente na entrevista que dá ao SAPO Lifestyle. Como discernir bons de maus hábitos? A autora resume-o: “um mau hábito é todo o comportamento que não contribui para a nossa felicidade, saúde e sucesso”. Mas, como fazer de um mau hábito um bom hábito, transportável para a vida futura? “Com pequenas alterações nas rotinas, criar diariamente hábitos simples, eficazes”, como sublinha a entrevistada.

Três entre os muitos exemplos que Cristina Valente nos deixa: incentive o seu filho a ir sozinho para a escola, seja a pé, de bicicleta ou de transportes públicos. Promova que o seu adolescente decida duas vezes por semana a ementa para o jantar. Desafie-o para que dê explicações a um colega com mais dificuldade.

Um processo que, nos seus contornos, desvendamos na conversa com a também autora, entre outros, dos livros Coaching emocional para pais; O que se passa na cabeça do meu adolescente.

A abrir o seu livro, adverte-nos que não seguirá o mesmo caminho de outras obras sobre parentalidade, ou seja, estão cheias de promessas. O que não nos promete no seu novo livro?

Decididamente, não prometo resultados sem que o leitor entenda conscientemente os processos mentais relacionados com a criação e a manutenção de bons hábitos. Não prometo receitas milagrosas que não têm em conta a biologia e a neurociência. A neurociência não obriga ninguém a mudar. Apenas revela que a mudança é possível e que com este conhecimento tudo se torna mais gratificante.

O que posso garantir é que o livro explica de forma simples a forma como o cérebro humano funciona tanto para criar um mau hábito como para criar um bom hábito: na verdade, o processo é igual.

A felicidade é matéria transversal a todo o seu livro. Para a alcançarmos há que saber que objeto procuramos. Como defini-la?

“Os castigos não são positivos no desenvolvimento da criança” – Álvaro Bilbao, neuropsicólogo
“Os castigos não são positivos no desenvolvimento da criança” – Álvaro Bilbao, neuropsicólogo
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A felicidade é um estado dinâmico e de plenitude, o que não significa propriamente um estado de êxtase ou alegria incessantes. A felicidade não é uma emoção, mas sim uma ferramenta e que, portanto, para ser usada precisa de uma decisão. O ser humano tem que decidir ser feliz. A partir daí, o indivíduo decide olhar para o mundo e para as circunstâncias de uma forma intencional. Vai poder também levar essa felicidade para fora dele, para os outros. Existe melhor coisa do que fazer os outros felizes? Existe melhor coisa do que pais e professores fazerem felizes as crianças e os adolescentes?

Bem, tal escolha consciente resulta de um processo que inclui alguns fatores e que definem o estado de felicidade: cultivar emoções e relacionamentos positivos, ter momentos de foco e envolvimento em atividades apaixonantes, ter um propósito e celebrar conquistas. Esse estado de felicidade não estará completo sem um equilíbrio físico que passa por sono, nutrição e atividade física.

A felicidade é um estado dinâmico e de plenitude, o que não significa propriamente um estado de êxtase ou alegria incessantes.

O Modelo PERMA-V que aborda no seu livro é um indicador que mede os parâmetros que concorrem para a felicidade? Pode explicar-nos?

Sim, o Modelo PERMA-V defende que a felicidade é composta pelas seis dimensões que já referi, as emoções positivas, os relacionamentos positivos, envolvimento, propósito, conquistas e vitalidade, ou seja sono, nutrição e atividade física. Não preciso ser vidente para descobrir que momentos de felicidade acontecem sempre que alguém conquista um objetivo, realiza um sonho, atinge uma meta ou realiza um desejo - não existe outra forma. Sendo assim, a felicidade significa conquistar algo.

“Algo está a falhar quando encontro crianças que trabalham mais horas diárias do que eu” – Cristina Valente, psicóloga
“Algo está a falhar quando encontro crianças que trabalham mais horas diárias do que eu” – Cristina Valente, psicóloga créditos: Editora Planeta/Natacha Cardoso

A felicidade é uma meta com características intemporais? Ou seja, a matéria que faz a felicidade da geração Alpha [nascidos entre 2010 e 2021] é a mesma que fez a da geração X [nascidos entre 1965 e 1980]?

A felicidade, tal como é definida no modelo PERMA-V é intemporal, sim. Este modelo tem em conta a forma como o sistema humano foi criado: o nosso cérebro humano tem a linda idade de 200 mil anos. Portanto, é intemporal. Sendo assim, o que faz feliz a geração Tradicionalistas, Baby Boomers, X, Millenials, Z ou Alpha é o mesmo. E isso torna muito mais fácil o nosso trabalho de pais, professores ou de qualquer outro líder.

Porque compara a vida das crianças e adolescentes atuais ao progresso que fazemos numa cadeira de balouço?

A vida das crianças e dos adolescentes atuais é cheia de movimento para cá e para lá - da escola para a explicação de matemática, a seguir para o treino de ginástica ou futebol, depois as aulas de violino e ainda os escuteiros e as festas dos amigos aos fins de semana. Ah, e não podem faltar os torneios de sábado e domingo. Algo está a falhar quando encontro crianças que 'trabalham' mais horas diárias do que eu. Há muito movimento, mas sem progresso, sem saúde e sem felicidade. Os resultados que os pais e professores ambicionam simplesmente não estão a ser alcançados.

É lícito afirmarmos que os estilos de vida das famílias portuguesas não estão estruturados de forma a promoverem a felicidade das crianças e dos adolescentes?

Claro que não promovem a felicidade. E como poderiam, se a sociedade tem critérios errados para atingir estados de felicidade? Começando pelo mundo corporativo, seguido pelo mundo escolar e familiar que seguem a mesma filosofia. Podemos afirmar que os estilos de vida de alguns países do Norte europeu, com níveis de felicidade muito interessantes, incluem pouco tempo de escola, pais com empregos que respeitam a sua saúde mental e emocional, muito tempo ao ar livre e tempo de qualidade em família. Já que gostamos tanto de importar culturas, modismos e tendências, seria interessante que houvesse vontade política e sentido crítico para exigirmos estilos de vida com mais qualidade. Falta-nos fé na nossa capacidade de mudarmos e criarmos um futuro mais feliz e equilibrado.

Podemos afirmar que os estilos de vida de alguns países do Norte europeu, com níveis de felicidade muito interessantes, incluem pouco tempo de escola, pais com empregos que respeitam a sua saúde mental e emocional

Das suas palavras tiramos que a escola também não está estruturada para promover a felicidade.

Todos sabemos que não. A escola está estruturada para promover a infelicidade. Os gregos definiam a felicidade como um instante que vale por si mesmo. Na escola, os alunos vivem a olhar ansiosos para a nota que precisam de ter: uma espécie de estágio para a vida adulta, em que passarão a olhar ansiosos para o dia em que recebem o salário. O que me pergunto é se os governantes precisam de ser filósofos gregos para entenderem isto.

“A capacidade de os nossos filhos raciocinarem sobre a informação na internet resume-se a uma palavra: desoladora” – Michel Desmurget, neurocientista
“A capacidade de os nossos filhos raciocinarem sobre a informação na internet resume-se a uma palavra: desoladora” – Michel Desmurget, neurocientista
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Ainda a propósito do ensino: mantemos a preocupação entre relacionar o percurso escolar e um bom emprego futuro. Contudo, diz-nos, que o ingresso na universidade pode não ser um bom investimento futuro. Porquê?

O que digo são duas coisas muito claras: a primeira é que ir para a faculdade ou para o mundo técnico-profissional é um passo muito interessante; a segunda é que não é inteligente dar esse passo sem ter um plano (criar e manter hábitos para ser forte e feliz). Entrar na faculdade não será um bom investimento se os pais e os alunos acreditarem que uma boa educação formal e uma universidade de prestígio significam e garantem um bom trabalho e um bom futuro. Isso é um mau investimento, sim.

Diz-nos no seu livro que nascemos com recursos inatos e inesgotáveis. No entanto, esbanjamo-los. Fazemo-lo com maus hábitos?

O bebé nasce com a autoestima no máximo, a resiliência no máximo, a criatividade no máximo. Esses são os fabulosos e preciosos recursos de todo o ser humano. O que fazemos ao longo do nosso crescimento é deixarmos de usá-los ou fazemo-lo em sentido contrário, por assim dizer, justamente com maus hábitos físicos e mentais.

Como podemos definir um mau hábito?

Um mau hábito é todo o comportamento que não contribui para a nossa felicidade, saúde e sucesso. Nem sempre temos consciência dos nossos hábitos ou dos nossos filhos e aí temos um problema. Um outro problema é que não sabemos que possuímos quatro níveis de hábitos e que são os hábitos mentais os mais negligenciados e os mais importantes para uma vida cheia de sucesso e felicidade.

O bebé nasce com a autoestima no máximo, a resiliência no máximo, a criatividade no máximo. Esses são os fabulosos e preciosos recursos de todo o ser humano.

Todos os hábitos devem ter como corolário uma recompensa?

O ponto não é se um hábito deve ter uma recompensa. O ponto é que, para um hábito ter sido criado no cérebro humano, foi porque trouxe um ganho. No caso dos maus hábitos, o segredo está em descobrir qual a recompensa escondida e mantê-la, mas associando a esta recompensa um outro hábito mais saudável. Para isso é preciso entender a forma como funcionam as emoções e o cérebro. Comer a mais, estudar sem resultados ou ser pessimista, são hábitos de níveis distintos, porém todos eles garantem uma recompensa ou emocional ou fisiológica.

Podemos tornar um hábito negativo em algo positivo?

Sim, claro. Pode-se substituir um comportamento que seja prejudicial à criança (ou adolescente) por outro que seja saudável, mas que lhe garanta a mesma recompensa. Por exemplo, conhecendo as características dos jogos digitais que os mais novos adoram e garantindo que eles podem obter as mesmas recompensas, mas fazendo algo mais saudável, resolve-se o desafio e cria-se um hábito saudável e positivo. Mas é preciso perguntar: pais e professores sabem quais as características dos jogos digitais? No livro explico tudo.

Pode dar-nos alguns exemplos de como promover os hábitos simples no dia a dia?

Primeiro, ganhar consciência, sem a qual o ser humano não decide mudar. Em segundo, avaliar o estado presente e saber muito bem o que se pretende alcançar no futuro. E em terceiro lugar, planear. Como a maior parte das pessoas não conhece a forma como o ser humano se comporta perante os vários ambientes e gatilhos, é necessária uma ajuda profissional carinhosa e competente. Como trabalho com vista a resultados, estes três passos têm que acontecer nas minhas sessões de coaching psicológico que são recomendados em qualquer idade. Promover hábitos simples no dia a dia começa sempre por alterar ambientes.

Não será mais difícil alterar os maus hábitos nos adolescentes?

O que é mais difícil, mas não impossível, é alterar hábitos de adultos que foram criados durante a sua adolescência. Mas para responder à sua pergunta, depende muito do hábito específico, da atitude dos pais e do estilo de vida que esse adolescente possui. Na minha experiência, os adolescentes são os clientes mais fáceis de trabalhar, porque é muito fácil apaixonarem-se pelo processo.

Promover hábitos simples no dia a dia começa sempre por alterar ambientes.

Fala-nos na figura do mentor. Quem é e que características deve ter?

Existe um perfil ideal, mas tem que ser uma pessoa que ame o adolescente e que seja estimado por este. Tem que ser divertido e ter alguns gostos em comum. Os mentores continuam a existir nas culturas em que os adolescentes e jovens vivem percursos mais estáveis e saudáveis. É uma figura fundamental na vida de qualquer adolescente.

A hiperparentalidade é um entrave à autonomia, responsabilidade e resiliência dos nossos filhos?

O nome diz tudo. Claro que sim. A hiperparentalidade significa uma enorme insegurança da parte dos pais e uma falta de fé nas capacidades dos seus filhos.

Entrevista concedida por escrito em fevereiro de 2022.