O ano de 2020 trouxe aos nossos dias uma realidade antes insuspeita. A pandemia alterou os quotidianos. Em março de há dois anos o léxico das relações familiares passou a conjugar as palavras confinamento e isolamento. Pais e filhos viram-se a coabitar as 24 horas do dia, cenário com consequentes oportunidades (mais tempo para a família) e tensões (ansiedade, conflitos). Uma nova realidade que o neuropsicólogo espanhol Álvaro Bilbao, acrescentou à quinta edição portuguesa do seu livro O Cérebro da Criança Explicado aos Pais (edição Planeta). Revisto e aumentado, o guia apoia a prática de uma educação assente no afeto e na compreensão, nas alternativas ao castigo, embora sem desmerecer a linha de fronteira que estabelece os limites às crianças.
À conversa com o SAPO Lifestyle, o especialista em plasticidade cerebral, também professor universitário na área da reabilitação da memória e psicoterapeuta, explica-nos como podemos, no seio familiar, sem pressões e com compreensão, estimular o desenvolvimento cerebral da criança. A fórmula está na segurança, no cuidado e no estímulo que a família oferece. A qualidade das relações que uma criança tem na sua infância determina a qualidade de vida que terá quando for um adulto, sustenta Álvaro Bilbao.
“Educar uma criança é uma grande responsabilidade e, provavelmente, o ato mais importante da vida de muitas pessoas”, sublinha o autor na introdução do seu livro, para o reiterar nesta entrevista, onde nos explica como ajudar os nossos filhos a crescerem sem medo e a desenvolverem o controlo e criatividade.
A pandemia trouxe ao contexto familiar, não excluindo as crianças, ansiedade e medo. Essas manifestações são transitórias ou deixarão marcas no futuro?
A ansiedade e o receio que terão experimentado algumas crianças, cujos pais viveram especialmente o medo e com precauções excessivas, poderão trazer problemas psicológicos no futuro, tais como uma maior vulnerabilidade à ansiedade. Um dos fatores que melhor prevê se uma pessoa em idade adulta voltará a sofrer de ansiedade, é se viveu anteriormente outros episódios de ansiedade. Esta é uma porta que, uma vez aberta, não volta a fechar-se. No entanto, estou bastante otimista, as crianças são resistentes e resilientes. Um bom trabalho dos pais, o regresso à normalidade, antevê que as crianças terão uma vida adulta tranquila. É verdade que nalguns casos estarão mais vulneráveis ao medo. Daí, penso que poderão aumentar ligeiramente os casos de transtornos que se manifestam entre os 12 e os 14 anos de idade, associados ao controlo e ao medo, como as perturbações obsessivo-compulsiva, as fobias e anorexia. Mas, julgo, serão poucos casos e que, na sua grande maioria estarão controlados.
Os confinamentos também trouxeram aspetos positivos na relação entre pais e filhos?
Creio que sim. Muitos pais contaram-me que o confinamento foi uma época dura mas bonita, porque passaram mais tempo com os seus filhos. Tomavam o pequeno-almoço juntos, cozinhavam juntos, faziam os trabalhos de casa com os filhos, divertiam-se com jogos de tabuleiro. Claro que não foi assim para todas as famílias. Sabemos que há casos terríveis, com maus-tratos sobre mulheres e crianças. Podemos imaginar o dia a dia de uma criança, ‘presa’ em casa, que sofre abusos sexuais de um progenitor.
O Álvaro Bilbao é pai. Que recordações tira dos confinamentos em família com os seus filhos?
Estou no grupo das pessoas para quem os confinamentos e a pandemia foram uma oportunidade de aproximação familiar. Antes, passava muitas horas no hospital, em consultas, assim como na escrita dos meus livros. O confinamento permitiu-me estar na companhia dos meus filhos, sem deixar de acompanhar os meus pacientes. Reduzi as horas de trabalho, fizemos jogos e vídeos em família e muitas conversas online com os avós.
Muitos pais contaram-me que o confinamento foi uma época dura mais bonita, porque passaram mais tempo com os seus filhos.
Lemos no seu livro a frase: “a infância é o jardim em que vamos brincar quando formos adultos”. Existem manifestações do nosso cérebro infantil no nosso cérebro adulto?
Não consegue imaginar todas as coisas que fazemos em adultos que ficaram gravadas no nosso cérebro infantil. Por exemplo, nas consultas, acompanho adultos que apresentam preocupações associadas à falta de poder aquisitivo, como o medo de ficarem na pobreza, e que estão ligadas a questões das suas infâncias, por terem vivido em famílias com dificuldades económicas. O medo de subir num elevador pode vir de algo que vimos acontecer aos nossos pais nesse contexto. Os filhos de pacientes que, por exemplo, têm esquizofrenia, crescem com medo de padecer de doença mental. Há conflitos que surgem entre o 'papá' e a 'mamã' por quererem fazer as coisas tal como eram feitas nas casas da sua infância. Também encontramos aspetos positivos. Por exemplo se os nossos pais gostavam de fazer exercício, ou passar o fim de semana em família, também poderemos gostar.
Escreve que o nosso cérebro reúne até aos seis anos um potencial que nunca mais voltará a ter. Que potencial é este?
Durante os primeiros seis anos de vida, o nosso cérebro desenvolve infindáveis conexões que, podemos dizer, são como os pilares de uma casa. São fortes, mas também devemos permitir-lhes alguma flexibilidade. Mais tarde, criará no adulto umas fundações fortes. O cérebro das crianças, nestes primeiros anos, sedimenta estes pilares que lhe trarão maior ou menor confiança na vida futura, desenvolvimento da linguagem e bases para resolver problemas e tomar decisões. Há que dar à criança muito afeto – todo, será sempre pouco -, mas também há que começar a construir com a criança limites e normas.
Depois do afeto e dos limites, o terceiro aspeto mais importante é dar atenção, tempo e responder às necessidades da criança de uma forma consistente. Se a criança tem fome, damos-lhe de comer; se tem sono pomo-la a dormir; se está preocupada, há que escutá-la; se tem medo, vamos protege-la. No fundo, sentir-se segura a todo o momento e saber educar sem gritos ou ameaças.
Durante os primeiros seis anos de vida, o nosso cérebro desenvolve infindáveis conexões que, podemos dizer, são como os pilares de uma casa.
Escutamos pouco os nossos filhos?
Como pais, muitas vezes não escutamos os nossos filhos. As crianças vão crescer com a ideia de que aquilo que dizem não é importante e, consequentemente, não se sentem importantes.
A conversação é muito importante para as crianças entenderem as suas emoções e sentimentos, mas também para desenvolverem a memória, a concentração, a atenção e o vocabulário.
No seu livro utiliza a metáfora de que temos três cérebros em um para nos explicar as diferentes etapas de desenvolvimento e estruturas deste órgão. Que ‘cérebros’ são estes e como podem os pais com eles comunicar?
O cérebro humano desenvolveu-se ao longo de milhões de anos. Os diferentes passos dessa evolução ficaram refletidos na configuração do cérebro, com estruturas mais antigas e outras mais modernas. Na metáfora que utilizo, o primeiro cérebro é o primitivo, o que herdamos dos nossos antepassados mais remotos, as criaturas que saíram dos oceanos e começaram a colonizar a Terra. Este cérebro primitivo satisfaz cinco necessidade básicas: o sono, a alimentação, a temperatura corporal, a proteção contra os perigos e, finalmente, a reprodução. Nas crianças mais pequenas esta última necessidade não está presente, embora haja manifestações como a sensação de enamoramento das crianças com a 'mamã'. Mas não tem a ver com órgãos reprodutores, antes a nível emocional, pois é a mãe a pessoa que vemos como auxílio.
As restantes quatro necessidades são importantes. A criança tem de sentir que não terá fome ou frio, que pode descansar sempre que necessitar e que os pais a protegem de perigos como, por exemplo, de um cão que o quer morder; de um irmão que lhe quer pegar. Comunicamos com este cérebro através de ações, quando dizemos à criança que tem de ir para a cama dormir.
Qual é o segundo cérebro desta sua metáfora?
O emocional. A sua função básica é recordar aquelas coisas que nos fazem sentir bem e provir a nossa sobrevivência, ou o inverso, as coisas que nos fazem sentir mal, pondo em perigo essa sobrevivência. Comunicamos com este cérebro através da empatia, dizendo à criança palavras e frases que a façam sentir-se compreendida. No fundo, sentir que entendemos o que lhe está a acontecer.
Em primeiro lugar, a criança sentirá que as suas emoções existem; em segundo, que são adequadas e, em terceiro, compreender-se-á a si mesma e que é alguém valioso. Desta forma, vai saber quais os amigos com quem se sente bem, as coisas de que mais gosta ou menos gosta. Muitos adultos não se compreendem a sim mesmos porque não tiveram, durante a sua infância, este aspeto emocional. Em vez de gritar com uma criança, há que perceber porque está zangada. Sempre que pomos palavras nas emoções, estamos a comunicar com o cérebro emocional.
Por último, o terceiro cérebro, o racional ou superior, é aquele que contém a lógica, a memória, a razão e a consciência de nós mesmos. Todas essas funções racionais, estão acessíveis para comunicação através da palavra. Mas, há que entender que, quase sempre, quando uma criança expressa uma ideia, corre atrás de necessidades básicas. Se quer subir a uma árvore e pede uma cadeira, está a expressar a sua necessidade de ser mais forte e de que o pai ou a mãe a vejam.
Refere que educar é simplesmente apoiar a criança no desenvolvimento de seu cérebro. A fórmula é assim tão simples ou há muita complexidade escondida nessa ação?
Enquanto pais queremos ajudar os nossos filhos a que cresçam felizes, que tenham sucesso na vida, que se relacionem com o próximo. O segredo para tudo isto está em ajudá-los a ter um bom cérebro, ou seja, que os três cérebros que referi, o primitivo, o emocional e o racional cooperem. Isto é complexo, até para quem há muito pratica a neuropsicologia como eu. Todos os dias aprendo com os pais. No livro, procuro traduzir todos os conhecimentos de neurociência, de psicologia infantil de uma forma clara e simples.
Em vez de gritar com uma criança, há que perceber porque está enfadada. Sempre que pomos palavras nas emoções, estamos a comunicar com o cérebro emocional.
Os seres humanos sempre usaram ferramentas. No seu livro apresenta-nos ferramentas úteis na educação da criança. Muitos pais quererão saber quais são essas ferramentas. Pode dar-nos dois ou três exemplos?
Sim. Uma das ferramentas é a empatia, ou seja, a ligação com a criança e o entendimento. É importante, pois muitos dos conflitos emocionais que há na família resolvem-se com a prática da empatia. Os pais que dominam a empatia e compreendem como esta é importante, estão a educar um futuro adulto que se ligará aos seus filhos de uma forma magnífica.
Também é importante saber estabelecer limites, pois as crianças precisam deles. Sou adepto da educação pela positiva, mas também sou um defensor dos limites, mas sem extremismos. Há pessoas que são muito extremistas e que não gostam que se destaque o afeto, porque defendem uma educação rígida; outras que consideram que só deve haver amor. Algo que está provado cientificamente é que o cérebro precisa de muito amor e limites.
As crianças devem ter o reconhecimento dos pais, aquilo a que chamo reforços. Não se pode confundir reforço com prémio, pois este é negativo. Por sua vez, com o reforço, em momentos-chave, a criança ganhará confiança. Por exemplo, no meu trabalho satisfaz-me quando um paciente me agradece. É reforço, não um prémio.
Por último, temos tudo o que se relaciona com as alternativas aos castigos. Os castigos não são positivos no desenvolvimento da criança e há ferramentas alternativas, como a reparação de ações que magoaram outras pessoas ou danificaram objetos.
Atualmente, vemos muitas crianças diagnosticadas com défice de atenção. O Álvaro Bilbao é crítico em relação à prevalência deste diagnóstico. Porquê?
Porque temos de ser mais pacientes, entendermos melhor as necessidades da criança. Temos de entender que as crianças precisam de brincar, de se mexer. O défice de atenção só se transforma num problema se não permitir à criança ter uma vida normal. Se tivermos pais e professores pouco pacientes, a criança não pode fazer uma vida normal e terá transtorno. Se formos mais pacientes, se dermos à criança mais tempo para se comportar bem, o índice de diagnósticos de défice de atenção será menor. Os pais têm de saber como propiciar tranquilidade às crianças seja a impor-lhes limites, como já referi, e a saber acalmá-los. Nesse sentido, é também importante que as crianças não usem tantos ecrãs, que lhes subtraem a atenção e aumentam a sua impulsividade.
As crianças precisam de mais atenção e menos medicamentos psicotrópicos?
Sem qualquer dúvida. Muitos estudos dizem-nos, por exemplo, que o índice de melhoria [índice de eficácia] da depressão com medicação do tipo de inibidores seletivos da recaptação da serotonina, como o Prozac, é de 75%. Também sabemos que uma intervenção psicológica adequada reduz igualmente a depressão em 75%. Porque não praticamos mais a psicologia e menos a medicação? Porque esta é mais barata, mais cómoda e mais rápida para os sistemas de saúde, mas é menos positiva a longo prazo. Os pacientes que fazem psicoterapia correm menos risco de depressões a longo prazo. Fenómeno semelhante passa-se com as crianças. As que têm uma boa intervenção psicológica, por exemplo no défice de atenção e na ansiedade, correm um menor risco de terem problemas no futuro.
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