Desorientação, ansiedade e incerteza. Estes são alguns dos sentimentos que assolaram grande parte das famílias portuguesas quando, a 18 de março, o Presidente da República decretou o Estado de Emergência em Portugal como resposta à evolução da pandemia. Que o digam Catarina, de 33 anos, e João, de 36. Com o encerramento das creches, escolas e universidades e após ficarem em teletrabalho por opção das respetivas empresas, o casal viu-se obrigado a tomar uma decisão: Catarina resolveu tirar uma licença sem vencimento para poder dar assistência ao filho, Guilherme, que na altura tinha acabado de completar três anos.

“Eu podia reduzir o horário laboral, mas tinha de assegurar blocos de trabalho e achámos que seria melhor o João, que ainda estava no período experimental e cujo rendimento era importante salvaguardar, não ter nenhuma interrupção. Então tirei uma licença sem vencimento durante dois meses. E isso ajudou: ele dedicava-se ao trabalho e eu só cuidava da casa e do Guilherme”, conta a advogada em entrevista ao SAPO Lifestyle sobre aquela que foi a melhor forma de manter a estabilidade familiar num momento de grande incerteza e dúvida. “Isso acabou por criar mais harmonia e adiou os sentimentos negativos da pandemia”, reforça João, gestor de produto em tecnologia, sobre esta decisão.

De acordo com o relatório de investigação “O Que Pensam e o Que Sentem as Famílias em Isolamento Social” (2021) desenvolvido pelo Instituto de Apoio à Criança (IAC) e que envolveu 807 famílias portuguesas com crianças entre os 4 e os 18 anos, os níveis de stress (Média =  11,4), depressão (M = 5,1) e ansiedade (M =  3,5) dos pais durante o primeiro confinamento encontravam-se, ainda que com algumas exceções, “dentro dos valores normativos para a população portuguesa”, mas cujo grau de stress em particular aumentava nas famílias com mais de dois filhos ao seu cuidado.

A licença sem vencimento acabou por criar mais harmonia e adiou os sentimentos negativos da pandemia

É o caso de Cláudia, de 41 anos, que ainda a gozar da licença de maternidade após ter dado à luz Alice, vê-se confinada com o filho, Tomás na altura com 5 anos, e sem a ajuda do marido que, numa fase inicial, continuou a ter de ir para o escritório. Na altura sentiu um misto de emoções que variaram entre a ansiedade e o alívio. “Entrei em ansiedade porque pensei como é que poderíamos estar em casa com uma criança de um mês. Na altura o Ricardo não conseguiu ficar em telebralho e eu sabia que ia estar sozinha com uma grande tarefa em mãos. Por outro lado, como sabia a dinâmica da minha empresa, senti-me aliviada por não estar a viver aquele momento e estar a viver uma licença plena”, refere a Técnica de Recursos Humanos sobre o seu estado de espírito que também é partilhado por outras mães. Prova disso é o relatório elaborado por Fernanda Salvaterra e Mara Chora que revela que a ansiedade (M = 3,83) e stress (M = 11,84) sentidos pelas progenitoras durante o confinamento era superior ao sentido pelos homens (M = 2,23 vs. M = 9,79) durante o primeiro confinamento.

A difícil tarefa de conciliar o trabalho, a família e o tempo a dois

crianças; brincadeiras
créditos: Foto de Tatiana Syrikova no Pexels

Trabalhar, tomar conta dos filhos e cuidar da casa, são tarefas e responsabilidades inerentes a qualquer núcleo familiar. Mas juntar confinamentos e pandemia a esta dinâmica torna tudo mais complicado. “Desde o início que houve momentos de tensão porque estamos habituados a estar com os miúdos períodos do dia e não o dia inteiro”, relata a recém-mamã que por vezes, deu por si, a definir um dia concreto para ir ao escritório - no seu caso a empresa manteve o teletrabalho - como forma de quebrar a rotina e manter a sanidade mental. “Tivemos de ajustar horários para não sentirmos que somos maus pais e maus profissionais.”

Desde o início que houve momentos de tensão porque estamos habituados a estar com os miúdos períodos do dia e não o dia inteiro

Para aliviar muitos pais da difícil tarefa que é conjugar o teletrabalho e cuidar dos filhos em contexto de pandemia, no dia 22 de fevereiro foi publicado um novo decreto-lei que previa o alargamento do apoio excecional à família no âmbito da suspensão das atividades letivas e não letivas presenciais. O objetivo foi “promover o equilíbrio entre trabalhadores no desempenho do apoio à família e reforçar as condições atribuídas na prestação de assistência a filhos, concretizando as situações em que, por necessidade de assistência à família, o trabalhador pode optar por não exercer atividade em regime de teletrabalho.” Uma medida vista como insuficiente por parte da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN).

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Tendo em conta que em Portugal as “famílias com filhos vivem à pele”, Ana Cid Gonçalves, da APFN, não vê com bons olhos este conjunto de medidas visto não serem iguais para todos. “Como é que é possível pensar que um membro do casal, de repente, vai ficar com 66% do salário? E que o limite mínimo e máximo [do apoio] não deve estar indexado ao número de pessoas que vivem na casa? Um dos casos que não está coberto é quem tem profissões essenciais. Como é que, neste caso, os casais fazem a partilha para ter direito aos 100%?”, diz a secretária-geral em entrevista ao SAPO Lifestyle.

A APFN - cuja missão é “identificar todas as dimensões em que as famílias numerosas são prejudicadas e procurar mudar isso, de forma as tratar com equidade e justiça” – refere que diariamente recebe 30-40 contactos de famílias desesperadas, a viver em situações limite. Uma forma de conseguir dar uma melhor resposta a cada um dos casos que lhe chegam foi através da criação de novos projetos. “Neste contexto de pandemia estamos a tentar chegar a muita coisa que antes não conseguíamos e que agora é preciso. Estamos a criar um projeto – o SOS Famílias - cuja génese é a entreajuda entre famílias e que pode abranger diversas áreas”, explica. O conceito é simples: todos os associados dizem quais são as suas principais carências naquele momento – que podem ir da falta de alimentos à procura de produtos de puericultura ou a necessidade de procurar um explicador para ajudar os filhos nas atividades letivas - e as outras famílias podem oferecer os seus serviços.

Quando a Catarina vai ao escritório, eu fico sozinho com o Guilherme e a gestão da empresa reconhece que as pessoas são seres humanos e que estão em alturas excecionais da sua vida

Com o encerramento das escolas em todos os níveis de ensino, Guilherme, agora com 4 anos, e Tomás, com 6, voltaram a ficar sem atividades letivas. Isto obrigou a um esforço adicional por parte dos pais em entretê-los de forma criativa durante os confinamentos. Uma tarefa árdua que obrigou a pulso firme destes educadores que, desde o início, se recusaram a ceder às tentações dos dispositivos eletrónicos. Isto levou a que ambos ocupassem o seu tempo sem a companhia dos pais e em quase liberdade total. Uma estratégia defendida por Sandra Helena, Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta infantojuvenil da Psinove. “É de extrema importância o tempo de brincar em qualquer idade, não é necessário que sejam atividades organizadas, planeadas, é assim que o imaginário das crianças se constrói, com o tempo de não fazer nada, apenas pensar, experimentar, fantasiar, representar”, afirma.

Mas, como será que as empresas reagiram à obrigatoriedade do teletrabalho e esta transição laboral? Para João a experiência foi positiva, considerando-se um privilegiado por não ter visto os seus rendimentos mensais afetados de forma drástica pela COVID-19. “A empresa passou muito bem pela pandemia e mostrou que tem uma grande flexibilidade em conciliar as duas coisas. Quando a Catarina vai ao escritório, eu fico sozinho com o Guilherme e a gestão da empresa reconhece que as pessoas são seres humanos e que estão em alturas excecionais da sua vida.”

Em todos estes contextos onde fica o tempo a dois? Em ambos os casos a resposta é unânime: é praticamente inexistente uma vez que os casais são obrigados a abdicar desses momentos para cuidar dos filhos. Se no caso de Catarina e João e, apesar de todas as dificuldades e desafios, o confinamento conferiu uma maior união entre eles, Cláudia é direta nos efeitos menos bons que a pandemia trouxe à sua relação com Ricardo. “A rotina esmaga qualquer dinâmica de casal. Os dias são todos iguais. Tentamos quebrar e fazer algumas coisas, mas há toda a parte da sociabilização que faz falta.”

“Há um vírus que faz mal às pessoas”: a reação das crianças à COVID-19

família; criança
créditos: Foto de Gustavo Fring no Pexels

Coronavírus e COVID-19 são termos com que Tomás e Guilherme já estão familiarizados. Neste aspeto, ambas as famílias elogiam o trabalho feito pelos educadores e professores que tiveram a missão de explicar aos filhos a evolução do vírus e fazer-lhes entender a importância de higienizar as mãos ainda durante o período pré-confinamento.

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Como reagem estas crianças após quase 12 meses confinados entre de quatro paredes? Surpreendentemente nenhuma se queixou, pediu para ir à rua ou para estar com os amigos. Ou seja, ambas tiveram uma boa adaptação ao confinamento, não se tendo registado quaisquer alterações no seu comportamento. Tomás e Guilherme correspondem a uma parcela muito pequena das crianças que, segundo os pais inquiridos para o estudo do Instituto de Apoio à Criança (IAC), não tiveram alterações no seu estado emocional durante o confinamento (9,5%). E a verdade é que isto não são boas notícias. A psicóloga Sandra Helena refere que esta reação “nem sempre é um bom sinal” uma vez que cada criança está a viver de forma diferente a pandemia que irá afetar a sua saúde mental de forma particular. Irritabilidade, agitação, ansiedade e medos relacionados com a COVID-19, dificuldades no sono, alterações de peso, tristeza, depressão e desmotivação escolar são alguns dos sintomas mais comuns apontados por especialistas. Mas que outros efeitos é que esta ausência de sociabilização e inexistência de aulas presenciais poderá ter no seu desenvolvimento futuro?

A rotina esmaga qualquer dinâmica de casal. Os dias são todos iguais. Tentamos quebrar e fazer algumas coisas, mas há toda a parte da sociabilização que faz falta

“Nas crianças e jovens com problemática psicológica anterior existe a possibilidade de intensificar a sintomatologia e as consequências inerentes a estas mudanças de vida evolvem todo o seu círculo familiar. Quem tem dificuldades de aprendizagem pode necessitar posteriormente de um reforço suplementar educativo e pedagógico para ultrapassar esta paragem escolar”, salienta.

Novos desafios e uma oportunidade para não repetir os mesmos erros

crianças; família
créditos: Foto de Ketut Subiyanto no Pexels

Com o agravamento da pandemia em Portugal, o Governo português decretou um segundo confinamento, que entrou em vigor a 15 de janeiro de 2021. Para as famílias esta segunda fase foi marcada por grandes contrastes face à primeira. Um deles foi o tempo disponível de ambas as progenitoras para cuidar dos filhos e outro foi a necessidade de coordenação entre o casal.

“Há um ano o Guilherme estava na creche, veio para casa e eu estava totalmente dedicada a ele. Agora está no pré-escolar e é preciso conjugar as aulas online com a nossa dinâmica de trabalho”, explica Catarina que diz que o facto de o filho se ter tornado mais autónomo entre os confinamentos acabou por facilitar nesta segunda fase em que já retomou as suas funções como advogada em regime rotativo. “Um ano depois ele já não usa fralda, já percebe que a mãe e o pai têm de trabalhar e isso faz muita diferença. Se não fosse isso nem sei como é que conseguíamos estar a trabalhar.”

Se no primeiro confinamento tivemos de dar ao Tomás responsabilidades e rotinas, neste segundo tivemos de o relembrar de que as íamos retomar

Será possível analisar o impacto que o confinamento vai ter na saúde mental dos pais e educadores? “Com um ano de vivência em pandemia já conseguimos ter uma perceção de alguns problemas. O cansaço pandémico é maior do que no primeiro confinamento. No primeiro confinamento existiam muitos receios pelo desconhecimento do vírus e informação reduzida ou em constante mudança, mas na maior parte dos casos as pessoas puderam aproveitar para sentir como era ter mais tempo e possibilidade de estar mais disponíveis para os filhos. Aprender e experimentar fazer coisas foi o tema da maior parte das famílias. Este segundo confinamento traz um cansaço acrescido pela soma de tempo confinados e por ser difícil compreender quando tudo vai terminar”, elucida a psicóloga da Psinove sobre o tema.

Cláudia é sincera nos efeitos que a COVID-19 teve na sua forma de estar: apesar de ser uma pessoa positiva por natureza, a pandemia tornou-a numa pessoa mais ansiosa e saturada. De forma a contornar esta situação e com o apoio do companheiro, teve de arranjar estratégias para não voltar a cometer alguns dos erros do primeiro confinamento. “Tive que dar a volta à situação e estabeleci que os dias podiam começar e acabar mais tarde.” Outra das estratégias do casal para manter o equilíbrio foi criar rotinas na vida de Tomás uma vez que Alice, que acabou de completar um ano, ainda requer muita atenção dos pais. Acordar, fazer a cama, tomar banho, vestir-se, pôr a mesa e ajudar em casa, foram algumas das tarefas atribuídas ao filho mais velho que ainda está no pré-escolar mas sem aulas devido à COVID-19. “Se no primeiro confinamento tivemos de dar ao Tomás responsabilidades e rotinas, neste segundo tivemos de o relembrar de que as íamos retomar”, refere.

Na opinião de Sandra Helena esta é uma boa tática a seguir pelos progenitores e que pode ajudar a conferir alguma normalidade às famílias neste contexto pandémico. “As rotinas familiares e escolares são importantes porque trazem tranquilidade, segurança e previsibilidade. Rotinas de sono, alimentação, exercício físico, tempo de lazer, de estudo e em família podem ajudar a organizar os meios de concretização dos planos escolares.”

Lado bom da pandemia: mito ou verdade?

Para Catarina e João estes 12 meses, tirando os passeios higiénicos em família e as saídas para o trabalho, foram passados em confinamento praticamente total. Apesar de em maio do ano passado ter sido aprovado o desconfinamento progressivo, a verdade é que o casal nunca desconfinou a 100%. Que balanço fazem deste período?

“No primeiro confinamento perdi o meu rendimento e do ponto de vista profissional não foi positivo. No geral a pandemia trouxe-me o teletrabalho, que na minha experiência profissional era algo raro e excecional. Sinto que trabalho melhor em casa pois o tempo rende-me mais. Para além disso, a COVID-19 permitiu-me conhecer pessoas online que, de outra forma não conhecia”, conta a advogada que não deixa ainda de salientar o facto de ter podido passar mais tempo em família. Acompanhar o crescimento do filho também é apontado como um ponto benéfico. Um sentimento partilhado por grande parte das famílias inquiridas pelo IAC que identificaram “a possibilidade de passar mais tempo com as crianças” (83,1%) e “de fazer tarefas para as quais não tinham tempo anteriormente” (54,2%) como alguns dos alguns aspetos positivos.

Já a família de Cláudia e Ricardo não se imagina a regressar às rotinas antigas laborais e acredita que o confinamento poderá levar à criação de um novo modelo de trabalho. “Conseguiu-se ganhar qualidade de vida por estar a trabalhar a partir de casa, como tomarmos o pequeno-almoço juntos, e poupar no trajeto para o trabalho. Por estar em casa consigo adiantar e libertar-me de algumas tarefas que não tenho de condensar num único momento do dia. Antevejo um futuro híbrido: passar metade do tempo no escritório e a outra metade em casa.”