A atividade de jogar está presente ao longo da história da humanidade desde bastante cedo e de forma mais visível nos últimos 25 anos.
O surgimento da internet fez emergir um espaço recreativo habitado por diferentes tipos de jogadores, compradores e internautas nas redes sociais. E num período em que de forma regular são lançados diferentes videojogos seria tentador falar acerca de algumas das suas características. Até porque a evidência dos números demonstra que as pessoas que jogam videojogos são hoje em maior quantidade comparativamente a qualquer outra altura. Mas não será este o caso!
A minha prática clínica dos últimos anos tem sido feita exclusivamente com pessoas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). As crianças, jovens e adultos com este diagnóstico apresentam um conjunto de dificuldades ao nível do processamento da informação acerca de si próprios, dos outros e do contexto.
A comunicação e interação social apresentam um compromisso em múltiplos contextos, assim como, a presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. Ou seja, estas pessoas experimentam dificuldades em inúmeras tarefas cognitivas e perceptivas e frequentemente sentem dificuldades sociais.
No entanto, tal como outras crianças, jovens e adultos neurotípicos (i.e., pessoas que não se encontram no espectro do autismo) as pessoas no Espectro do Autismo parecem gostar de jogar videojogos.
Não obstante as dificuldades comportamentais, cognitivas e de auto-regulação do comportamento e das emoções nas pessoas com PEA, estas podem ser frequentemente observadas a sentirem-se atraídas pelos videojogos. Sendo frequentemente reportadas situações em que estão longos períodos de tempo a jogar, bem como, concentrados de forma única enquanto realizam esta tarefa de entretenimento.
Ao ponto de muitas pessoas, sejam investigadores, clínicos, familiares e os próprios com este diagnóstico se perguntarem se há alguma relação entre as pessoas com PEA e os videojogos. Porque é que os videojogos parecem ser tão atrativos para as pessoas com este diagnóstico, quando elas próprias apresentam dificuldades em inúmeras outras tarefas e atividades? E de que forma as características comportamentais próprias desde quadro clínico interage com as características dos próprios jogos?
As pessoas sentem-se atraídas pelos videojogos por múltiplas razões. Em termos gerais, os jogos são apelativos porque vão ao encontro das necessidades psicológicas e ajudam as pessoas mais novas a fornecerem uma resposta às tarefas desenvolvimentais. Os jogos propiciam entretenimento, e as pessoas neurotípicas usam-nos por motivos recreativos, regulação do humor e escapar ao stress do quotidiano.
Os jogos providenciam desafios cognitivos, perceptivos e motores, e os jogadores reportam com frequência que estes desafios são atrativos com um poder incalculável. Jogar videojogos pode promover grandemente a interação social, especialmente com os pares, ser incrivelmente motivador para as crianças e adolescentes em particular, e as pessoas em grande número referem que o seu modo preferido de jogar é com outros jogadores em simultâneo.
No caso das pessoas com PEA é referido que estas se sentem atraídas às tecnologias (i.e., computadores, consolas, videojogos, etc.) porque podem em algumas circunstâncias não envolver fatores sociais, mas também porque as tecnologias são previsíveis e consistentes e permite à pessoa controlar e determinar o desenvolver da atividade.
Há poucas dúvidas de que os videojogos estão e irão continuar a estar presentes na vida da pessoa com PEA. As questões surgem quando há relatos de inúmeras situações de pessoas com PEA e com dificuldades de auto-regulação e utilização moderada na utilização dos vídeojogos. Sendo que em algumas situações alguns destes casos apresentam características de dependência aos videojogos pela internet. As pessoas com PEA devem ser encorajadas a jogar videojogos ou não?
A resposta a esta questão parece ser um “cuidadoso sim”. Os videojogos podem apresentar um conjunto variado de contributos positivos para a pessoa com PEA. Por exemplo, potenciar funções cognitivas (e.g., atenção, memória, etc.), motoras, de criatividade, mas também de proximidade de interação social com os pares e de ligação com o que se passa no Mundo. Mas tal como em qualquer outro utilizador de videojogos deve ser ajudado a usufruir desta atividade de uma forma saudável.
O facto da pessoa com PEA passar mais tempo a jogar videojogos parece ser semelhante a inúmeras outras atividades que se enquadram dentro dos seus padrões restritos de interesses e atividades. A dificuldade que apresentam ao nível da auto-regulação comportamental e emocional quando alguma outra pessoa procura limitar o acesso a esta atividade parece ser semelhante a inúmeras outras atividades. Contudo, os videojogos de uma forma geral parecem potenciar algumas motivações e suprir algumas necessidades fundamentais. Nomeadamente, de autonomia, competência e de pertença. Ou seja, de uma sensação de controlo, de estarem a fazer algo bem, e de se sentirem em conexão com o outro.
Tendo em conta as características na pessoa com PEA e nas dificuldades sentidas é compreensível a maior propensão para a utilização dos videojogos. Isto é, quando estão a jogar sentem-se mais competentes, contrariamente às inúmeras situações no seu quotidiano em que são considerados como menos capazes, até por si próprias. Mas também de autonomia, quando em bastantes atividades necessitam da presença de um mediador/facilitador, no caso dos videojogos as próprias características das atividades permitem que a pessoa seja totalmente autónoma na realização desta atividade.
No caso da ligação ao outro e apesar da pessoa com PEA demonstrar dificuldades nesta área, ainda assim, manifesta em número suficiente interesse e curiosidade na proximidade ao outro. E no caso dos videojogos jogados online permite funcionar como esse mediador e facilitador tendo em conta que há um interesse/tema em comum (i.e., videojogo) e a possibilidade de falar quase de forma exclusiva acerca do mesmo e com a mais valia de não ter de haver uma proximidade física. Mas também se verificam outras tantas situações em que jogar videojogos também permite escapar à realidade do quotidiano. Associado à sensação de presença, jogar videojogos pode propiciar uma sensação de dissociação que também ela facilita este sentimento de escape e de regulação do humor.
Em suma, é incontornável a presença dos videojogos na vida de muitos de nós, nomeadamente no Espectro do Autismo. Será importante procurar enquadrar esta aproximação aos videojogos na medida daquilo que eles podem ajudar a suprir enquanto necessidades. Para além de compreender que em muitos este poderá ser um dos seus interesses restritos. Mas também será fundamental ajudar a pessoa com PEA a integrar a utilização dos videojogos de uma forma saudável.
Pedro Rodrigues - Psicólogo Clínico no Núcleo de Perturbações do Espectro do Autismo e Núcleo de Intervenção nos Comportamentos Online
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