HealthNews (HN) – Como é que a combinação específica de motivações e regulação emocional permitiu distinguir os quatro perfis de jogadores, particularmente entre o Perfil Envolvido e o Perfil Relacional?

Cátia Martins e Castro (CMC) – Os resultados obtidos nos instrumentos que avaliaram as motivações para jogar e as dificuldades na regulação emocional, contribuíram para a distinção dos quatro perfis identificados, através de uma abordagem estatística centrada na pessoa. Esta metodologia permitiu captar padrões psicológicos complexos, integrando dimensões emocionais e motivacionais numa análise que respeita a individualidade dos jogadores.

O Perfil Envolvido corresponde a jogadores com uma regulação emocional estável, que integram os videojogos de forma equilibrada nas suas rotinas sociais. Jogam sobretudo pelo prazer da exploração, do desafio, da construção de identidade e da imersão na fantasia, mantendo, no entanto, uma relação responsável com o jogo, sem sinais de sofrimento psicológico associado.

Por contraste, nos jogadores do Perfil Relacional, observam-se dificuldades no controlo dos impulsos, na aceitação das emoções e na definição de metas pessoais. Entre os motivos para jogar, destaca-se a socialização, podendo o videojogo tornar-se uma via de procura relacional que, no mundo offline, se revela mais desafiante. Outros motivos incluem a busca de estatuto, o sentimento de competência e a tentativa de lidar com emoções negativas.

Assim, o que distingue estes dois perfis é, sobretudo, a qualidade da regulação emocional: no Perfil Envolvido, o jogo é vivido como um espaço de enriquecimento e equilíbrio; no Perfil Relacional, pode tornar-se uma estratégia compensatória, associada a um risco acrescido de uso problemático.

HN – O Perfil Desregulado associa-se a jovens homens com baixa escolaridade. Que fatores socioeconómicos ou psicológicos explicam esta maior vulnerabilidade, além das motivações escapistas?

CMC – O Perfil Desregulado evidencia um padrão de risco acentuado, predominantemente entre jogadores mais jovens, do sexo masculino e com níveis mais baixos de escolaridade. Para além das motivações de escapismo, como o uso dos videojogos para evitar emoções difíceis ou a realidade do quotidiano, este perfil integra um conjunto de vulnerabilidades que se reforçam mutuamente. Entre estas, destacam-se dificuldades significativas na regulação emocional, em domínios como a impulsividade, a definição e concretização de metas, a clareza emocional e a aceitação das próprias emoções.

Este perfil está igualmente associado a estilos de vinculação inseguros, que podem comprometer a capacidade de procurar e receber apoio emocional fora dos espaços digitais. A estes fatores somam-se níveis elevados de mal-estar psicológico, numa procura de alívio momentâneo.

A baixa escolaridade, observada de forma consistente neste grupo, está muitas vezes relacionada com a juventude deste grupo e, em particular, com estudantes em idade escolar ou académica, para quem a estrutura da vida ainda está em formação. O Perfil Desregulado recorda-nos que o comportamento problemático no uso de videojogos raramente surge de forma isolada: tende a emergir num contexto mais vasto, tecido por vulnerabilidades emocionais e relações interpessoais marcadas pela insegurança ou pela ausência de suporte.

HN – De que forma podem os profissionais de saúde e educação utilizar estes perfis para criar estratégias de prevenção personalizadas, especialmente em contextos escolares?

CMC – Os quatro perfis poderão fornecer uma ajuda para o desenvolvimento de estratégias de prevenção diferenciadas e baseadas em evidência, com particular relevância em contextos clínicos e escolares. Em primeiro lugar, podem permitir uma avaliação precoce do risco, ajudando profissionais de saúde e educação a distinguir entre jogadores com uso responsável, jogadores em risco e aqueles que já manifestam sinais de uso problemático, com base nas características de cada perfil. Além disso, podem abrir caminho para intervenções mais ajustadas, personalizadas às motivações e dificuldades emocionais específicas de cada grupo.

Estes perfis podem contribuir também para a promoção da literacia digital e emocional, ao demonstrar que os jogadores não constituem um grupo homogéneo e que existem características distintas a serem trabalhadas, como por exemplo a impulsividade ou necessidade de pertença social. Finalmente, podem ser um recurso útil na comunicação com as famílias, servindo como exemplos concretos que ajudam os pais a reconhecer sinais de alerta, compreender as diferenças entre um uso responsável e um uso problemático, e reforçar o diálogo com os filhos sobre emoções, pertença, pensamento crítico e os desafios da interação com o mundo digital.

HN – Considerando a menção a loot boxes e recompensas variáveis, que elementos do design digital exigem regulação urgente para mitigar riscos nos perfis mais vulneráveis?

CMC – Elementos como loot boxes, sistemas de recompensa variável, ranking competitivo permanente, desafios diários, e eventos temporários com pressão para jogar são mecanismos de design potencialmente aditivos, sobretudo para jogadores com baixa regulação emocional.

Nos perfis Desregulado e Relacional, onde se observam dificuldades ao nível da impulsividade, definição de metas e aceitação emocional, determinados elementos do design dos videojogos podem atuar como reforçadores intermitentes, semelhantes aos mecanismos utilizados nos jogos de azar (gambling). Estes estímulos imprevisíveis e repetitivos têm o potencial de gerar descontrolo no tempo de jogo, um investimento emocional desproporcionado em recompensas digitais, frustração crescente perante resultados insatisfatórios e gastos monetários excessivos, realizados de forma impulsiva e sem regulação consciente.

Por isso, é fundamental que exista uma regulação legal clara das loot boxes, equiparando-as a jogos de aposta quando envolvem dinheiro real. Esta regulação deve incluir a obrigatoriedade de transparência nas probabilidades de obtenção dos itens, permitindo aos utilizadores saber com que hipótese contam antes de gastar.

É igualmente essencial garantir um controlo parental eficaz, simples e acessível nas próprias plataformas de videojogos, incluindo filtros que permitam bloquear compras integradas e funcionalidades potencialmente arriscadas, como chats ou sistemas de comunicação dentro do jogo.

Além disso, as mecânicas de recompensa variável devem ser claramente assinaladas, para que pais e jogadores possam fazer escolhas informadas e conscientes, pois muitas das vezes os videojogos disponibilizam informação em linguagem pouco clara e coerente.

Também um mecanismo que verifique que a regulamentação já em vigor seja efetivamente cumprida. Estas medidas são especialmente relevantes em videojogos populares entre jovens em situações de maior vulnerabilidade emocional e social.

HN – Tendo em conta que a Perturbação de Jogo Digital exige 12 meses de sintomas, como é que este estudo ajuda a identificar sinais precoces antes do agravamento clínico?

CMC – Este estudo, ao adotar uma abordagem preventiva e dimensional, pode permitir identificar sinais de risco antes da manifestação clínica do diagnóstico. Embora os critérios diagnósticos (gaming disorder pela Organização Mundial da Saúde) exijam, na maioria dos casos, uma duração mínima de 12 meses de sintomas, esse período pode ser reduzido em casos de exceção a ser ponderada caso a caso, em que a funcionalidade do jogador se encontre gravemente comprometida, seja em contexto académico ou profissional, social ou familiar.

Neste sentido, os perfis Relacional e Desregulado podem ser particularmente relevantes, uma vez que, mesmo sem preencherem ainda os critérios formais de diagnóstico, já evidenciam padrões emocionais e motivacionais de risco. Estes perfis associam-se a fatores preditores reconhecidos de agravamento, como dificuldades na regulação emocional, mal-estar psicológico e relações interpessoais fragilizadas.

Assim, este trabalho poderá oferecer uma via para a intervenção precoce, ao permitir traçar perfis psicológicos diferenciados que sinalizam vulnerabilidades antes do aparecimento de quadros clínicos mais graves.

HN – Por que razão o Perfil Relacional tem maior prevalência entre pessoas não-binárias, e que medidas específicas propõem para este grupo?

CMC – O Perfil Relacional revelou a maior prevalência de pessoas não-binárias, sugerindo que, para este grupo, os videojogos podem assumir um papel particularmente significativo enquanto espaços de expressão identitária e social. Estes ambientes digitais podem oferecer, muitas vezes, oportunidades de validação e pertença que o mundo offline, por vezes, nem sempre consegue proporcionar.

Para responder a estas necessidades de forma ética e informada, é essencial garantir espaços seguros e inclusivos, onde pessoas não-binárias possam explorar e partilhar livremente o papel dos videojogos nas suas vidas, sem receio de estigma ou marginalização.

O apoio psicoterapêutico deve ser sensível à identidade de género, validando as experiências emocionais específicas e reconhecendo a importância do meio digital como espaço de construção de si.

Paralelamente, é importante promover comunidades online positivas, com moderação ativa, que acolham a diversidade e rejeitem discursos de ódio.

Por fim, a integração de personagens e narrativas não-binárias nos próprios videojogos pode contribuir para reduzir o uso compensatório e fortalecer o sentimento de pertença, promovendo uma vivência mais saudável e afirmada da identidade.

HN – Além de evitar a estigmatização, como podem famílias e educadores promover o uso saudável identificado no Perfil Envolvido em contraste com práticas de risco?

CMC – O Perfil Envolvido representa jogadores com uma regulação emocional sólida, que se aproximam dos videojogos com motivações equilibradas centradas na exploração, no divertimento e na aprendizagem. Nestes casos, o jogo é integrado de forma responsável nas rotinas diárias, funcionando como uma forma de lazer que não compromete o bem-estar psicológico nem interfere negativamente com a vida académica, profissional, social ou familiar.

Para promover este tipo de relação responsável com os videojogos, sem estigmatizar os jovens, pais e educadores podem:

  • Estabelecer regras flexíveis, mas consistentes, co-construídas e em acordo, por exemplo, tempos de jogo que variem com a rotina, mas sem comprometer o sono, a escola ou relações sociais. Alguns exemplos como jogar depois dos trabalhos de casa, e cerca de uma hora antes de dormir desligar os ecrãs;
  • Estabelecer zonas livres de ecrãs, como à mesa das refeições, promovendo momentos de convívio e presença plena em família. Onde o bom exemplo dos pais/educadores no uso responsável de ecrãs e cumprimento das regras acordadas é um fator positivo de modelo a seguir.
  • Dialogar com os jovens sobre: os jogos que jogam, interessando-se pelas histórias, objetivos e escolhas; se algum elemento do jogo ou alguém os deixa desconfortáveis e explorar as razões. Conversar abertamente sobre os perigos como o ciberbullying, a desinformação e os conteúdos que podem não ser adequados à idade, promovendo uma utilização crítica e consciente.
  • Estar presente e acessível, mostrando-se um porto seguro caso os jovens enfrentem problemas online como assédio, ciberbullying ou conteúdos perturbadores, procurar escutar sem julgar e ajudar.
  • Oferecer alternativas de expressão e pertença no mundo offline, como atividades ao ar livre, desporto, arte ou projetos colaborativos. Explorar os recursos de atividades na área de residência. Organizar tempo e atividades em família regulares;
  • Ensinar literacia digital e emocional: acompanhar a evolução das tecnologias em conjunto com os jovens. Ajudando-os a identificar o que sentem ao jogar, os motivos por detrás dessas escolhas, a refletir sobre a informação que consomem e a desenvolver pensamento crítico sobre com quem interagem online e em quem decidem confiar.
  • Optar por controlos parentais que ajudem a definir limites de tempo e acesso a conteúdos adequados. Manter-se atento ao uso que os jovens fazem dos dispositivos, sem invadir a sua privacidade, optando por um acompanhamento feito com diálogo e confiança.

Procurar cultivar uma relação de confiança e curiosidade mútua, onde os videojogos podem ser um ponto de partida para conversas, não um ponto final de preocupação.

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