Num ecrã gigante assistimos a um breve filme. Percebemos serem as mãos da gastrónoma Maria de Lourdes Modesto. Gestos conhecedores, calmos. Desfia o bacalhau, corta a cebola, ripa a batata. Corta finamente salsa, abre dois ovos para uma tigela. Bate-os. Irrompe o som das batatas a fritar, depois as rodelas de cebola. É-lhes junto o bacalhau. Finalmente, já no prato, a salsa. Temos um Bacalhau à Brás.
No palco desta sessão inaugural do evento “Sangue na Guelra”, o simpósio subordinado ao tema "Cozinha Portuguesa. E agora?" estão os gastrónomos Duarte Galvão e Maria de Lourdes Modesto. Duas gerações, diferenças de perspetiva, mas também algumas abordagens comuns ao tema cozinha tradicional portuguesa.
“Nem todos os gestos que me viram fazer neste vídeo repito na minha cozinha. Socorro-me da tecnologia. Creio que não sou completamente casmurra. Não estou fechada ao progresso”, sublinha Maria de Lourdes Modesto, acrescentando que a sua presença no simpósio não se destina a representar o passado.
Isto para logo acrescentar, “a expressão cozinha portuguesa aplica-se a muita coisa que não o é. São utilizados nomes de receitas longe da raiz do prato. Os portugueses sentem-se traídos quando o nome do prato diz uma coisa e o que lhes aparece à mesa é outra coisa”.
Já Duarte Galvão afirma que “os portugueses gostam da cozinha tradicional, não são os novos cozinheiros que a vão destruir. O grande perigo é a industrialização da cozinha, com utilização do mau produto”.
Ainda de acordo com o gastrónomo, “os portugueses já não são tão conservadores em relação à cozinha nas grandes cidades. Sabem distinguir a cozinha tradicional da cozinha moderna”.
“Quando vou ao restaurante de um novo chefe não vou à procura de cozinha tradicional portuguesa”, sublinha a gastrónoma que há 60 anos comunica a gastronomia nacional. “A cozinha que eu faço é a que se faz nas famílias, quer na cidade, quer no campo, seja mais elaborada ou rústica”.
“Não posso é aceitar que se diga, como vejo no manifesto deste evento, que devemos fazer equivaler o saber cozinhar ao saber ler e escrever. A cozinha tradicional portuguesa deve ter nascido da cabeça e das mãos de analfabetos. Respeitemos a memória das pessoas que criaram a nossa cozinha”, refere Maria de Lourdes Modesto.
Também de acordo com a gastrónoma, “os chefes têm desamor em relação aos restaurantes onde trabalham. Há muita rotatividade o que é prejudicial. A identidade do que um cozinheiro faz é muito importante no restaurante onde desempenha a sua ação”.
Duarte Galvão concorda, “ pasma-me a vida que os cozinheiros levam, com as viagens, a ausência dos restaurantes . Por vezes parece-me que têm vergonha de serem cozinheiros e preferem mostrar-se como gestores dos restaurantes”.
Maria de Lourdes Modesto quis, contudo, sublinhar a forma como os atuais chefes elevam o nome e a cozinha portuguesa. “São pessoas cultas, estudaram, conhecem as técnicas”, finaliza.
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