Quem percorre as poucas centenas de metros que unem o Miradouro de São Pedro de Alcântara ao Jardim do Príncipe Real, em Lisboa, fá-lo através de buliçosa artéria que cunha o nome a personalidade que ficou inscrita na nossa História. Alguns, entre nós, por referência ao nome dessa artéria, hão de recordar a efígie, de bigode bem aparado, que figurava nas velhinhas, e há muito apartadas das nossas carteiras, notas de mil escudos.
Hão de também alguns espíritos reparar, transposta a porta número 56, da dita rua, na tela a óleo que nos recebe à entrada do Café Príncipe Real em Lisboa. Atenção, café só de nome, porque aqui os comeres têm trato de restaurante e de cocktail bar, ambos com cartas de assinatura.
Não percamos o fio à meada, retornemos à outra arte, a dos pincéis e óleos. Esta com chancela do artista plástico Barahona Possolo. Na tela, encontramos representado um monarca falecido jovem, aos 24 anos, defensor da abolição da escravatura e atento ao seu povo. A obra contemporânea pela mão de Possolo reproduz uma outra, mais antiga em mostra no Palácio Nacional da Ajuda.
Como se juntam todos estes factos? Através da menção de uma personalidade, D. Pedro V. O monarca que dá nome à rua de acesso ao hotel Memmo Príncipe Real, um cinco estrelas que é a terceira unidade do grupo, depois de Alfama e Baleeira (Algarve) e onde vamos encontrar este Café Príncipe Real.
Pedro V que figurava nas notas de mil escudos faz aqui as honras da casa, representado a corpo inteiro na enorme tela exposta à entrada do restaurante que agora visitamos. Um monarca aqui em farda do século XIX, embora enquadrado num cenário pintado desta nossa Lisboa do século XXI.
Um artista com sentido de humor? Também, mas acima de tudo um alertar-nos para a visão mundividente desta capital e deste espaço, o Café Príncipe Real onde é monarca na cozinha o chefe Vasco Lello. É neste restaurante de vista desafogada sobre a capital que há perto de um ano este chefe, depois de alguns anos no restaurante Flores do Bairro, também em Lisboa, reúne no mesmo prato ingredientes que provêm de um cadilho de culturas, tempos, lugares, harmoniza-os, dá-lhes forma e emprata-os com requinte.
Vasco Lello recebeu um desafio antes de assumir a cozinha do Café Príncipe Real. Criar uma carta com personalidade para um restaurante que apesar de viver dentro do Memmo, tem um espírito aventuroso, independente da unidade onde se integra.
Um gostinho por andanças, aqui inspirado na epopeia lusa que durante séculos foi fazendo oceano fora aquilo que é uso hoje encontrarmos à mesa, a fusão, miscigenação ou mistura, como preferir o leitor. Aqui, no Café Príncipe Real, Vasco Lello expressa essa miscigenação (optámos por este termo) entre África, América e Ásia não só na carta da estação (a da primavera/verão chegará com o mês de maio) como também no Menu Semanal, sugestões para o almoço que incluem entradas, principais e sobremesas.
Isto sem repetições, ou seja, o menu é alterado todas as semanas, considerando os produtos frescos disponíveis, seja o peixe, a carne, o marisco ou mesmo os vegetais e frutas. Vasco Lello é apologista de uma cozinha em proximidade com o território e privilegia a relação com os pequenos fornecedores. Dois exemplos: os legumes chegam da região Oeste, o peixe da banca familiar da recentemente falecida peixeira lisboeta Açucena Veloso.
Pois é precisamente um destes menus semanais que nos ocupa nestas linhas. Um desfilar de acepipes que nos chegam à mesa com um extra, o de saborearmos por antecipação o futuro próximo em que, espicaçadas pelo estio, as enormes portadas em vidro do restaurante se abrirão para o largo deck onde se espraiam cadeirões, mesinhas e uma piscina de água aquecida. Um espaço onde chega um serviço de mesa mais ligeiro, com petiscos e cocktails de assinatura, assim como os clássicos. Isto com a benesse de estarmos nesta colina de São Roque, nas alturas, mais próximos do céu luminoso de Lisboa e resguardados do bulício da capital.
Por agora, com o firmamento de Lisboa ainda nimbado e as águas da piscina agitadas pela brisa fresca, concentramo-nos dentro da sala, tomada pelo conforto e aconchego dos tapetes rústicos, dos painéis em madeira, do mobiliário robusto e em tons calorosos.
E no prato se faz matéria a visão do chefe Vasco Lello
Centremo-nos na carta, ou melhor olhemos para o prato onde descansam uns ouriços-do-mar, fresquíssimos (a cor laranja viva e a textura assim o indicam) chegados neste mesmo dia do Cabo da Roca.
O primeiro momento de um trio de entradas numa carta que se completa com um outro trio de principais (uma das opções vegetariana) e duas sobremesas. O comensal pode combinar uma entrada com um principal, pagando 22,00 euros. Optando por uma das sobremesas pagará mais cinco euros. Vinhos também à parte, numa lista interessante com amplitude de regiões portuguesas e com sugestões a copo (4,00 euros).
No caso vertente, provamos o Ouriço-do-mar ao natural, acompanhado por um molho sabayon de Alvarinho e ovo. Sabe bem capturar a carne tenra (melhor dizendo, as gónadas) da criatura marinha, aproveitando na boleia da colher uma golpada de molho. Este, fresco, cremoso sem ser espesso, onde também vive a água de travo salgado do próprio ouriço.
Do mar para terra, ainda nas entradas, como resistir à tenrura da carne de rabo de boi, desfiando-se no interior de um pastel de massa tenra, acompanhando com mandioca? Pergunta de retórica, naturalmente. Outra das entradas em preparação do palato para o trio de principais da semana.
No que respeita aos pratos de resistência temos a oportunidade de provar um Cabritinho assado, todo ele desossado e de pele estaladiça, com um tempero tradicional. Vasco Lello apresenta-nos a portugalidade nesta peça de carne assada no ponto e que não dispensa, nos cheiros e sabor, o alecrim, tomilho, assim como o alho, o colorau, a pimenta. Tudo o mais é gustação no molho preparado com o caldo da colação dos ossos do animal.
Do mar dos Açores, somos presenteados com um Boca negra na chapa com milhos de mexilhão e camarão. Como acompanhamento deste peixe de carne delicada a pedir mão de mestre, uns vegetais laminados, onde preponderam o bolbo de aipo, a curgete e a cebola.
Vasco Lello põe literalmente a mão em todo o elenco da carta, das entradas às sobremesas. E neste particular não foge ao conceito que orienta esta mesa, um “taste the journey” onde, naturalmente não pode faltar o global cacau. Como também não falta o nosso tão querido pão-de-ló que encontrou expressão no outro extremo deste mundo, no Japão com o “Castella”.
À mesa do Café Príncipe Real o hemisfério mais doce é síntese de tudo isto. Chamam-se precisamente estes finalmente da carta de “Sobremesas do Mundo”. Hoje provamos um Pão-de-ló de Alfeizerão, vertendo um interior de ovo untuoso e delicioso, com um consistente gelado de chá verde. Acrescentamos a esta mesa doce, um Crocante de grué de cacau com creme de cardamomo preto e abacaxi macerado. Para fechar o trio, um Suspiro com colie de morangos e frutos vermelhos.
Vasco Lello confessa-nos estar a viver um trabalho de descoberta, da cozinha de outras latitudes. Este portalegrense de nascimento, com um avô angolano e um pai que trabalhou em Angola e Cabo Verde, cedo se habituou a calcorrear estas partidas do nosso mundo. Agora, à frente deste Café Príncipe Real maravilha-se com aquilo que outras geografias nos oferecem à mesa, como o Pequi, um fruto brasileiro. Tem um caroço pejado de espinhos, mas uma polpa de sabor peculiar, semelhante ao queijo.
Um desafio de harmonização para Vasco Lello que vê nesta singularidade não um obstáculo mas a oportunidade de laborar novos momentos gustativos nas suas cartas do Café Colonial.
Café Príncipe Real
Hotel Memmo Príncipe Real
Rua D. Pedro V, 56, J 1250-094 Lisboa
Contactos: Tel.: 961 844 248 Email: cafe.preal@memmohotels.com
O restaurante conta com estacionamento privativo.
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