O cenário é o hotel Evolution Cascais-Estoril, com vista privilegiada sobre o mar. Apesar de pertencer ao mesmo grupo do estrelado Fifty Seconds, o espírito aqui está longe dos códigos clássicos do fine dining. Foi no passado mês de abril, que o restaurante The Kitchen teve a sua primeira experiência com o público através do evento Wine & Grill Kick Off Dinner. Tratou-se de uma noite de celebração em torno da carne, do fogo e da harmonização vínica.

Ao leme da cozinha está Javi Mendez, chef sevilhano com uma carreira passada em restaurantes estrelas Michelin. “Comecei a cozinhar mais a sério durante um ano. Mas naquela altura, Sevilha era muito focada em tapas, e essa era também a época do El Bulli [de Ferran Adrià]. Acabei por ir para Barcelona trabalhar”, explica.

Passou por cozinhas como o Lasarte, o três estrelas Michelin de Martín Berasategui, o Aponiente, de Ángel León, também três estrelas, e a Enoteca Paco Pérez (duas estrelas), do Hotel Arts, o que o tornou íntimo do universo Michelin. Foi precisamente dessa escola que decidiu afastar-se, trocando a sofisticação técnica pelo sabor direto e intencionalmente simples.

“Quando comecei a pensar no conceito, a ideia foi clara: foco no produto, sem muita intervenção ou técnicas demasiado modernas. Queria que o produto falasse por si e que fosse imediatamente reconhecível, sem aquele lado do mundo estrela Michelin, onde tens de explicar cada prato, como foi feito, o que é, o porquê de cada elemento. Aqui não: queria que o cliente abrisse a carta e lesse 'ribeye' ou borrego e dissesse logo ‘ok, sei o que é, quero isto’.”

Depois de anos em cozinhas premiadas, Javi mudou de país por amor: conheceu uma portuguesa e a mudança foi inevitável. Trocou a exigência da alta cozinha por uma vida mais simples… e com menos calor. “Apaixonei-me pelo Estoril, por Sintra, aquele romantismo, o fresquinho. Sou de Sevilha, já estava farto do calor. Nós, sevilhanos, adoramos Cascais”, conta, entre risos. Isso foi há seis anos, quando abriu um restaurante com a esposa na Aldeia da Areia, no concelho de Cascais. Até que surgiu o convite para assumir a posição de chef executivo do Evolution Cascais-Estoril.

A acompanhá-lo nesta estreia esteve o sommelier Marc Pinto, distinguido no Guia Michelin 2025, na gala que decorreu em fevereiro, no Porto. Com ele, Javi já tinha trabalhado anteriormente em Espanha, o que ajudou a reforçar a sintonia entre cozinha e carta de vinhos.

Sobre o conceito do The Kitchen, o chef é perentório. "A ideia foi criar algo muito diferente do que já existe em Cascais", explica. Foi João Neto, diretor-geral do hotel, e com quem também tinha colaborado em Espanha, tal como com Marc Pinto, que lhe propôs a criação de um restaurante centrado em carnes maturadas. "Por aqui o foco é muito peixe. Ele viu o potencial deste espaço, eu adorei a ideia e aqui estamos. Estou muito satisfeito com o resultado", admite. “Gosto de peixe, claro, mas acho que a carne é mais desafiante. O peixe é mais direto: sai do frigorífico e vai para o fogão. Com a carne, há todo um processo.”

No trato do produto, a técnica, ainda que discreta, está longe de ser simples. As carnes são cozinhadas lentamente, a baixas temperaturas, durante horas, antes de serem finalizadas na grelha com um toque de fumo. “É quase como uma churrasqueira basca. O segredo é temperar bem e cozinhar muitas horas. Por exemplo, o borrego começa a ser feito ao meio-dia, a 45ºC, lentamente. Isso permite que a fibra da carne se abra e fique suculenta. Depois, grelhamos e finalizamos com uma caramelização para criar textura. O resultado é uma textura suculenta, sabores concentrados e uma caramelização subtil”, partilha.

Este processo estende-se aos restantes cortes: “Usamos o calor das lâmpadas de secagem para cozinhar a carne lentamente, entre 50 a 55ºC. É aí que a fibra se abre e acontece a transformação. Só depois levamos ao grelhador para o toque final. O ribeye, por exemplo, leva cerca de duas horas. O borrego, cinco. É como se fazia antigamente, com a lareira: deixava-se o “chuletón” ao lado da brasa desde manhã cedo para se comer ao almoço.”

Da alta cozinha para a grelha com o chef Javi Mendez no novo The Kitchen em Cascais
Da alta cozinha para a grelha com o chef Javi Mendez no novo The Kitchen em Cascais créditos: LOUIE THAIN

Parte do segredo está também na escolha do produto. O chef optou por trabalhar exclusivamente com carne portuguesa, destacando o compromisso com o território nacional. “Queria mesmo trabalhar com produto local”, afirma. Ainda assim, reconhece os desafios: sem maturação, muitas carnes nacionais apresentam pouca infiltração de gordura, o que as torna mais difíceis de trabalhar. Foi aí que entrou Marc Pinto, que o apresentou a um produtor especializado em maturação com quem acabaria por desenvolver todo o conceito do restaurante.

Na opinião de Javi Mendez, as carnes portuguesas têm vindo a evoluir muito nos últimos anos, e embora existam já produtores altamente reconhecidos, optou por colaborar com alguém menos mediático, com o objetivo de crescerem em conjunto. “A verdade é que esta carne tem uma personalidade incrível. Este ribeye, por exemplo, não sabe a sangue, tem um sabor quase a presunto. Estou mesmo contente com isso.”

Já o pão servido no The Kitchen vem da Padaria do Miguel, um pequeno projeto artesanal da linha de Cascais que o chef descobriu por acaso, quando ainda vivia na Parede. Desde então, nasceu uma colaboração próxima, com Javia Mendez a desafiar o padeiro a explorar referências da sua terra natal, a Andaluzia. “Pedi-lhe para fazer um pão típico da minha região e ele aceitou logo. Trouxe-lhe tostadas, regañás, coisas muito nossas, muito sevilhanas.” A abertura ao diálogo e à experimentação foi decisiva: “Ele é um encanto, e trabalha com uma vontade de criar que me conquistou.”

O grande trunfo do The Kitchen parece ser essa informalidade pensada: o ambiente é descontraído e o foco está no sabor, não na estética. Ainda assim, Javi Mendez reconhece que a estreia ficou marcada por uma linguagem visual ainda demasiado próxima da sua experiência em alta cozinha.

“Hoje senti que os empratamentos foram demasiado fine dining”, admitiu no final do jantar. “Pensei: ‘Tenho de mudar isto’. Quero que seja mais ousado, mais solto, quase como uma tábua: o ribeye aqui, os espargos ali, a béarnaise acolá. Mais comida de conforto.”

Apesar da técnica apurada e da experiência de fine dining de quem lidera a cozinha, a ambição do The Kitchen não passa por se tornar um restaurante de luxo exclusivo. Pelo contrário: o objetivo é chegar a todos, em especial à comunidade local. “Não queremos ser inacessíveis. A ideia é mesmo atrair os vizinhos”, afirma, reconhecendo que Cascais ainda preserva um lado mais familiar e descontraído. “Não vamos servir wagyu a 200€. Queremos manter os preços médios entre os 35 e os 50€. Claro que quem quiser pode gastar mais, mas a ideia é manter o restaurante acessível e familiar”.

A carne pode ser o fio condutor da carta, mas o menu também ganha estrutura com entradas populares e pensadas para agradar a todos. “Vamos fazer uma burrata, quero fazer húmus, mas vou fumá-lo”, partilha o chef. A ideia é apresentar pratos comerciais, no melhor sentido da palavra: acessíveis, diretos, com um toque de originalidade, mas sempre centrados no sabor. “Quero que tudo gire à volta da grelha, do fumo.”

Os vegetais da época também terão destaque, com produtos vindos da horta da Quinta do Pisão, em Cascais, com quem Javi Mendez já trabalha há vários anos. E para equilibrar a robustez da carne com propostas mais leves — e ajudar aumentar a procura por vinho branco, uma vez que estamos a entrar na época quente, haverá uma secção com mariscos grelhados, preparados num pequeno grelhador próprio para esse efeito.

De acordo com o chef, a carta será intencionalmente extensa. “Queremos que o cliente volte, que sinta que aqui há sempre algo novo, como nos restaurantes antigos, onde se regressa não por um conceito, mas porque se come bem”, conclui.

O SAPO Lifestyle esteve no The Kitchen a convite do Evolution Cascais - Estoril.