Diz-nos a gramática que a vírgula, enquanto sinal de pontuação, marca as pausas e as inflexões da voz na leitura. No caso da chef Marlene Vieira, a vírgula que trouxe para o nome de batismo do seu novo restaurante de fine dining (Marlene,), em Lisboa, é muito mais do que uma pausa, serve de afirmação e é porta para possibilidades futuras. É meia tarde quando nos sentamos à mesa do Marlene,. Na cozinha, em jeito de ilha, em plena sala de refeições, prepara-se o jantar, prelúdio para o que chegará finda a tarde. A equipa de Marlene Vieira trabalha compassada, sem atribulações. O caos é palavra que não cabe no léxico da chef de 41 anos, nascida na Maia, senhora de muita determinação e assertividade.

Ao caos, Marlene contrapõe a disciplina e o rigor. Como nos revela, afirmou-se num mundo de homens ao manter, sempre, objetivos, fosse ao inscrever-se na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira, aos 16 anos, a fazer as malas e rumar a Nova Iorque, a dirigir restaurantes de autor em Portugal ou, em plena pandemia, a abrir o ZunZun Gastrobar, no terminal internacional de cruzeiros de Lisboa. Já este 2022, Marlene dá mostras de uma afirmação com futuro, o restaurante onde entrega a essência da sua cozinha, de raiz e alma portuguesa. Não faltam as memórias, as viagens e, também, um desejo, o de alcançar a sua primeira estrela Michelin.

Marlene Vieira
créditos: Manuel Manso

Neste seu Marlene, o que podemos encontrar da menina de 12 anos que pediu aos pais para a deixarem trabalhar num restaurante nas férias de verão?

O que aqui encontra dessa menina que fui é a curiosidade. A vírgula no nome do restaurante é um indicador dessa curiosidade e a constante vontade de trazer novidade para a minha vida. Sou uma mulher de desafios.

Nessa época, quando entrou na cozinha do restaurante o que a seduziu de imediato?

Primeiro, foi a sensação de caos organizado, de muita coisa a acontecer, de muita adrenalina, e de ali encontrar uma mulher a chefiar. Dei o nome à minha filha em homenagem a essa cozinheira, a Isabel, uma mulher muito delicada, mas forte e assertiva. Se ainda hoje é difícil à sociedade reconhecer o trabalho das mulheres, imagine há perto de 30 anos. No meu caso, até cresci numa família em que a matriarca, a minha avó galega, se sentava no topo da mesa. Mas mesmo assim, diziam-me que havia coisas que não podia fazer por ser rapariga. Mas fiz tudo o que me apeteceu, joguei futebol, basquetebol, voleibol [risos]. Não dava grande importância ao que me diziam, estava focada naquilo que queria fazer. Abdiquei de todo o desporto para me dedicar à cozinha. A cozinha foi um amor à primeira vista.

Após dois anos de muita luta, a chef Marlene Vieira inaugura o seu restaurante de cozinha de autor
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Apreciou encontrar uma mulher de pulso forte no restaurante.

Todas as mulheres com quem trabalhei, principalmente as que estavam em cargos de responsabilidade, eram muito serenas, assertivas, alguém em quem podíamos confiar. Mas tinham uma capacidade de trabalho tremenda. Criavam empatia, não as esquecemos. Exemplo disso é a Adozinda Gonçalves, que foi o braço direito do chef Hélio Loureiro no antigo Sheraton do Porto, hoje Porto Palácio, onde esteve muitos anos. A Adozinda nunca foi um nome com o reconhecimento que lhe é devido na gastronomia portuguesa, porque o que se queria era ouvir o nome de um homem. Mas era a Adozinda que tomava conta das equipas. Há um clube nacional de masculinidade nas cozinhas.

Todas as mulheres com quem trabalhei, principalmente as que estavam em cargos de responsabilidade, eram muito serenas, assertivas.

Parece ser um clube muito restrito. Como é que uma mulher faz frente a esse grupo?

Com rebeldia [risos]. Mesmo quando me tentaram abafar eu procurava sempre fugir. Isso permitiu-me lutar muito pelos meus objetivos. Todos encontramos pedras pelo caminho, mas temos de ser determinados.

É de músculo o novo restaurante da chefe de cozinha Marlene Vieira

Sim, mas também há que trabalhar muito. Quando foi trabalhar para os Estados Unidos terá encontrado grandes desafios…

Foi um momento dificílimo da minha vida, coincidindo com a entrada na vida adulta. Na época, podia ter olhado apenas para o lado mau da experiência, mas aprendi muito. Assim como aconteceu mais recentemente com a pandemia. Há que saber direcionar o nosso foco. Encontramos sempre o bom e o mau, estão lado a lado, temos de saber escolher. Foi o que aconteceu em Nova Iorque.

Mas em concreto o que houve de mau?

Olhe, apanhei o 11 de Setembro com toda a energia pesada que nos rodeava. O que aquela cidade viveu nos meses seguintes é indiscritível. Eu vinha de uma cidade pequena e encontrei uma cidade gigante que é o centro do mundo. Nunca tinha ficado presa à saudade da família e, naquela altura, só queria estar perto dela. Tive de aprender a viver naquela loucura que é Nova Iorque.

Mas também refere que foi necessário ir trabalhar para os Estados Unidos para redescobrir a cozinha portuguesa. Porquê?

Sim, mas antes tive de encontrar o lado positivo de toda aquela experiência nos Estados Unidos. No Alfama, fazia-se cozinha portuguesa num ambiente de fine dining. Obrigou-me a estudar a cozinha portuguesa, a elaborar receitas novas. Quem não estuda a cozinha portuguesa, quem não vai às fontes, não percebe nada. Naquela altura, a cozinha portuguesa com que me deparei foi um caminho que se abriu. Só queria fazer o melhor possível com o que tinha à minha frente. Para já, queria trabalhar num ambiente de fine dining porque me parecia ser o local onde se dá, realmente, valor ao que fazemos. A equipa era muito jovem, só com portugueses e determinados em fazer bem. Trabalhávamos com excelente produto nacional que chegava duas vezes por semana a Nova Iorque. Tínhamos uma clientela com estrelas de Hollywood e também grandes nomes nacionais.

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créditos: @manuelmanso

Quer falar-nos de alguém em particular?

Lembro-me da fadista Marisa, chegada de Lisboa e que foi ao Alfama. Quis pastéis de nata pois sabia do reconhecimento que nos fora dado pelo jornal The New York Times.  Disse-lhe, “faço-lhe os pastéis de nata, mas tem de nos cantar um fado”. E cantou. Todos nos emocionámos. A Marisa convidou-nos para ir no dia seguinte ao seu espetáculo. Foi maravilhoso.

Cada um tem os seus objetivos. Sou muito exigente comigo, mais do que a maioria dos clientes é comigo.

Há o momento em que volta para Portugal. O que vai fazer na época?

Quando voltei para Portugal, a convite do chef Jerónimo [Jerónimo Ferreira], queria fazer uma cozinha gastronómica, portuguesa, e fui abrir o novo Sheraton no Porto. Na época, a cozinha portuguesa estava a sofisticar-se, a encontrar um novo movimento. Surgiu uma nova geração, com chefs hoje conceituados como o João Rodrigues e o Henrique Mouro. Em Lisboa, toda a cozinha de topo que havia tinha uma inspiração francesa.

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Trabalhou em cozinhas de hotel. Há uma grande diferença entre essas cozinhas integradas em unidades hoteleiras e as de um restaurante “puro e duro”?

O restaurante de hotel é mais organizado e isso trouxe-me uma grande vantagem. Há toda uma gestão muito controlada nos custos e stocks. Agora, não vai encontrar tanta liberdade criativa, pois tudo passa pela aprovação da direção e, isso, para quem é criativa, como no meu caso, é difícil. Não voltaria para um restaurante de hotel [risos].

Para se afirmar na cozinha teve de se esforçar o triplo?

Não tenho a certeza disso. Cada um tem os seus objetivos. Sou muito exigente comigo, mais do que a maioria dos clientes é comigo. Tive pessoas na minha vida, homens e mulheres, que tentaram segurar-me, não me deixavam passar. Nunca perdi muito tempo à volta disso, porque vivo de estratégia e de encontrar as soluções. Esse é o grande segredo. Mas, sejamos francos, a sociedade cria mais oportunidades para os homens do que para as mulheres.

Marlene Vieira
créditos: Manuel Manso

Subsistirá um certo preconceito face a uma mulher chef?

Sim, mas também há mulheres que não dão valor ao facto de encontrarem uma mulher a liderar. Inclusivamente, na sociedade em geral, as mulheres são muito mais críticas para as mulheres do que os homens. Está enraizado, mas felizmente estamos a mudar.

Ainda me continuam a ligar a convidarem-me para marcar presença em eventos porque é preciso a participação de uma mulher. Ou seja, para fazer número. Para muitos, ainda não estou ao mesmo nível dos homens que atingiram este lugar.  Mas também noto o carinho das pessoas que sentem orgulho de estarem perante uma mulher chef. Há uns anos quando ia à sala algumas pessoas ficavam espantadas e diziam: “uma mulher chef?” Isso deixava-me irritada. Olhe, no restaurante Avenue acontecia-me isso.

Em 2015, saiu do Avenue quando foi mãe. Houve relação entre a sua saída do restaurante e a maternidade?

Sim. Nesse caso e também quando decidi retomar no Mercado da Ribeira. Fui a uma entrevista de trabalho e perguntaram-me como ia fazer dado ter uma filha pequena. Da minha parte, a entrevista terminou ali, não houve margem para mais qualquer tipo de conversa.

A sua participação na televisão foi importante na afirmação do feminino na cozinha?

Infelizmente é necessário haver essa exposição. Se não dermos a conhecer o nosso trabalho, levará muito tempo a nos afirmarmos. A televisão é forma mais rápida de abrir portas. É claro que tem de haver conteúdo, empatia com quem está a receber o conteúdo. Há muita gente que, infelizmente, sendo muito bons, não geram empatia. Quem se propõe a ser chef tem de estar disponível para aparecer de diferentes formas, no restaurante, na televisão, por aí fora. Temos de sair da nossa zona de conforto.

Se não dermos a conhecer o nosso trabalho, levará muito tempo a nos afirmarmos. A televisão é forma mais rápida de abrir portas.

É preciso ordem militar na cozinha?

Claro que não. Tem um grande exemplo, o do programa MasterChef Austrália onde não vê agressividade, há sim assertividade. A agressividade nos programas de cozinha vende-se em países que ainda estão um pouco atrasados. Os muitos anos de atraso que vivemos ainda se sentem. Uma coisa lhe posso dizer, não se evolui a sofrer humilhações na televisão.

A Marlene está a trabalhar para a estrela Michelin?

Trabalhei e trabalho para isso e também investi nisso, a nível profissional, financeiro, entre outros. Espero um dia poder ter a estrela Michelin, mas tem de ser de forma justa. Não quero que seja pelo simples facto de a quererem entregar a uma mulher. Quero fazer coisas novas, abrir novas portas, para mim e para a minha equipa, e isso faz-se com a estrela Michelin. E, confesso, gostaria de a ter.

Deixámos um desafio a Marlene Vieira, o de completar cinco frases proferidas por famosas com relação direta, ou não, com a cozinha.

"Não podemos cozinhar se não gostamos…”

Marlene: “…de tornar os outros felizes”

Frase original: “…das pessoas” (chef Joel Robuchon)

"Gastronomia é a arte de usar comida para criar…”

Marlene: “…memórias”

Frase original: “…felicidade" (Filósofo Theodore Zeldin)

“Os melhores pratos são…”

Marlene: “…os de marisco”

Frase original: “…muito simples” (chef Auguste Escoffier)

“Não suporto pessoas que não…”

Marlene: “…criem empatia”

Frase original: “…levam comida a sério” (escritor Oscar Wilde)

"Pessoas que gostam de comer são…”

Marlene: “…muito mais fáceis”

Frase original: “…sempre as melhores pessoas” (chef e apresentadora Julia Child)

 

A gestão não lhe tira criatividade, tempo para criar na cozinha?

É uma escolha, há momentos em que fico um pouco frustrada por não estar tanto tempo com a minha equipa e vice-versa.

A carta que apresenta aqui no Marlene, revela o percurso que a trouxe até ao presente?

O nosso fio condutor é a mesa portuguesa na atualidade e a sua evolução. Depois, tendo em conta a minha história gastronómica e memórias, privilegiamos os produtos nacionais e a sazonalidade. A cada mudança de estação mudamos o menu e definimo-lo tendo em conta os três vértices que referi. A refeição faz-se de 12 momentos, no máximo, pois temos um menu com sete momentos. Mas, na realidade são 16 pratos ou, se preferir, 16 construções. Começamos pelas memórias da minha infância, por exemplo, os tremoços e a broa de milho da minha avó. Cheguei a vender tremoço com a minha avó de porta em porta. Depois, evoco os Estados Unidos. Aprendi a fazer Ketchup há muitos anos com o Baena [chef Luís Baena]. Esse ketchup tão comum nos Estados Unidos conjuga com o tremoço que apresentamos. Depois há o marisco, o queijo, o azeite, o peixe, a carne.

Na ementa também não esconde a sua feição doceira…

Sim, e lá está a nêspera que na minha terra se chamam magnóris. Na minha escola primária existia uma nespereira. Jogávamos ao elástico sob a sombra e comíamos as nêsperas nesta época do ano.

A Marlene é casada com um chef, o João Sá. Cozinham a quatro mãos em casa?

Quando temos tempo para cozinhar em casa. Muitas vezes, não fazemos. Quem quer levar o trabalho para casa? [risos] Mas quando cozinhamos em casa, queremos fazer coisas muito rápidas, simples. Só quando recebemos amigos é que caprichamos. Adoramos marisqueiras e, como se sabe, o marisco nacional é de qualidade. Também adoramos cozinha do mundo. Somos frequentadores de fine dining, não só em Portugal como no estrangeiro. Normalmente as nossas férias são gastronómicas.

Noto o carinho das pessoas que sentem orgulho de estarem perante uma mulher chef.

Nas vossas viagens gastronómicas pelo mundo, algum prato vos tocou na alma?

Sim, há muitos anos no Quique DaCosta [Espanha], no Noma [Dinamarca], no Momofuku, em Nova Iorque, porque têm uma identidade muito forte. Eu e o João não somos muito críticos no que respeita à técnica, porque sabemos que muitas vezes não são os chefs que estão a preparar os pratos, mas as equipas. Gostamos mais da forma como os menus são construídos.

Desconstroem mentalmente os pratos?

É difícil desconstruir porque são coisas muito especificas daquele chef. Lembro-me no Eleven Madison Park [Nova Iorque] de nos apresentarem um chip estaladiço de batata-doce. Quando começávamos a comer, dentro da batata tudo era um mistério, pois sabia a churrasco americano. Como é que se chega a este nível? É inacreditável.

Os chefs guardam segredos?

Não são segredos, é algo muito próprios que é a nossa assinatura. Como um pintor que não consegue explicar a sua técnica, é um dom. Por exemplo, a aletria da minha mãe, posso seguir a receita à risca, mas nunca vai sair igual. É um dom, tem muito de intuição. É também estar atento à química, ao momento certo, por exemplo, para se perceber que um arroz está no ponto.