Portugal está a assistir a uma revolução na forma como bebe e encara as cervejas, corporizada no aparecimento de inúmeras referências artesanais. Novos sabores, cores, texturas, e diferentes teores alcoólicos para um público que procura neste produto “vivo” uma alternativa à padronização. Uma realidade onde entra “a origem e verdade agro-alimentar” e o recurso a matérias-primas nobres, como sublinha o Professor Rui Rosa Dias, doutorado em Economia Agrária pela Escuela Técnica Superior de los Ingenieros Agrónomos de Madrid.

Para este especialista em marketing agro-alimentar e conhecido como o “pai” do lançamento do leite biológico em Portugal, este é o momento para tirar as cervejas do capítulo dos produtos “sem alma e sem valor a que se tirou vida, para aumentar a longevidade nas prateleiras dos supermercados e hipermercados”.

Uma conversa que aponta caminhos para uma indústria agro-alimentar alternativa à grande escala, com um rosto e uma relação mais estreita entre produtor e consumidor. “O Portugal agro-alimentar pode ser competitivo, mesmo em negócios de pequena escala, contudo de enorme valor diferenciado”, explica o especialista em Economia Agrária, e Comportamento de Consumo, docente no IPAM.

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Esta é uma conversa em torno das cervejas artesanais. Em síntese, quais as diferenças de produção face às congéneres industriais?

Qualquer produto agro-alimentar que seja transformado sob processos industriais é diferente daquele que o é, de forma artesanal. Desde a seleção das matérias-primas, aos modos de produção, tempos de fabrico, cura, estágio, fermentação, conservação,  se for o caso, constituem diferenças que conferem mais ou menos sabor, cor, e consequentemente, valor nutritivo. Adicionalmente, um produto agro-alimentar, neste caso a cerveja, tem “vida” própria, ou seja, por norma são produtos que com o tempo vão evoluindo, mantendo uma diferença substancial daquelas cervejas cujos prazos de validade são alargados e o produto em si mesmo, com o passar do tempo, não sofre evolução por não ter “vida”.

Essas diferenças são perceptíveis em termos organoléticos, ou seja, quando provamos ou cheiramos uma cerveja artesanal?

Necessariamente. Sabor, textura, aroma, cor e o próprio som é bem diferente. São por norma, produtos organoleticamente mais complexos, mais verdadeiros, conferindo-lhes valor diferenciado.

cervejas
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Professor Rui Rosa Dias, em termos nutricionais estas referências artesanais apresentam vantagens face às congéneres industriais?

Caso as matérias-primas utilizadas sejam nobres e os modos de produção que lhes deram origem mais “limpos”, isto é, práticas agrícolas que promovem a biodiversidade, estarão reunidas as variáveis para que, as cervejas artesanais, tenham, hipoteticamente, mais valor nutritivo que as industriais.

É lícito afirmar que a industrialização da cerveja criou, em Portugal, durante décadas um perfil de consumidor pouco crítico em relação a este produto?

Sem dúvida. Este é um problema que não diz respeito apenas à indústria cervejeira. É transversal a toda a agro-indústria que tenta, à custa das eficiências produtivas e da escala para alcançar mais competitividade de preços, globalizar, padronizar os gostos. Ainda assim, nas ultimas décadas, a indústria cervejeira tem inovado, lançando novos sabores, novas fórmulas, novos teores de álcool, destinados a segmentos de mercado que desejam mais do que “qualidade verdadeira”, entenda-se, origem das matérias primas, processos artesanais e naturais de fabrico, inovação.

Cervejas artesanais:  “O consumidor quer que lhe comuniquem verdade e conhecer quem produz”
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A multiplicação de marcas, de produtores, de eventos desperta-nos para um mundo de cervejas antes impensável. Há, de facto, uma grande variedade de cervejas artesanais. Quais são as principais diferenças entre estas?

Tal como nos vinhos e outras bebidas de fermentação, nas cervejas, não só o uso de matérias-primas diferenciadas, pode posicionar diferentemente as cervejas. O processo de fabrico, estágio - se for o caso -, armazenamento, tamanhos, packaging, comodidade entre outros fatores e atributos, podem contribuir para demarcar e posicionar, num mesmo território artesanal.

Em seu entender o que está a mudar no perfil de consumo para assistirmos a esta tendência ligada à procura e ao conhecimento das cervejas artesanais?

O que está a mudar são os padrões de consumo dos portugueses. Autenticidade, origem e verdade agro-alimentar, serão fatores que determinarão cada vez mais as opções de compra. Paralelamente, os negócios de escala menor, apresentam-se com mais agilidade empresarial para desenvolverem produtos distintos dos que se posicionam no mass market e em multicanal. Agora, nos dias que correm, os mercados agro-alimentares têm tendência a evoluir mais rapidamente. O product life cycle é no caso agro-alimentar, mais curto. O consumidor deseja que lhe comuniquem verdade e acima de tudo, deseja conhecer verdadeiramente quem produz.

Na pergunta anterior referi-me a tendência, não a moda. Considera que não se trata aqui de um modismo?

Há uma grande diferença entre moda e tendência. A este respeito os padrões sociológicos e comportamentais da procura, têm de facto demonstrado uma alteração consistente e é transversal a outros setores, não só das bebidas, mas também na “alimentação sólida”.

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Este consumo de cerveja artesanal também tende a romper com alguns hábitos, nomeadamente o de que a cerveja é para beber fresca e no verão. Estamos a falar de uma nova dimensão de consumo que inclusivamente harmoniza a cerveja com a cozinha. Gostaria de o ouvir a esse propósito.

Desde há muito tempo que a cerveja se foi associando a determinados alimentos. Com a variedade de portefólios e agora com a chegada das cervejas artesanais, há uma clara investida destes produtos nas vertentes gastronómicas de cariz mais, nacional, regional. A cerveja é agora aconselhada a ser consumida acompanhando pratos típicos portugueses, com maior ou menor grau de sofisticação. Em mercados maduros, uma das opções estratégicas é precisamente “reinventar” novos momentos de consumo.

Na realidade Portugal, quando comparado com outros países europeus não tem larga tradição associada à cerveja, antes ao vinho. Mais do que redescobrir não considera que estamos a desbravar território virgem no nosso país?

É um processo de aprendizagem. Não obstante, no nosso país, há casos de negócios familiares ligados à cerveja artesanal, que detêm muita história para contar. Como em tudo, a industrialização, o acesso aos mercados e as regras de produção, que limitaram muito as produções artesanais, acabaram por contribuir para um “esquecimento” do saber fazer de gerações. Quando o domínio dos mercados é exercido por poucos players, naturalmente que a margem para que floresçam negócios diferenciados, é menor, mas não deixa de constituir uma oportunidade de negócio. É isso que estas empresas, muitas delas Family Business, fizeram. A renovação dos mercados cujo drive empresarial é de resistência à entrada a novos players por domínio exercido pelas empresas lideres, faz-se normalmente, pelo lado da procura e não da oferta. A procura dá sinais, deseja, mostra interesse, a oferta mais ágil, mais inovadora, reage e desenvolve.

Neste sentido têm um grande peso os pequenos produtores. São eles verdadeiramente os promotores desta nova abordagem. Concorda?

Sim. São.

Mas também têm a responsabilidade de, verdadeiramente, produzirem cervejas artesanais, não cervejas fabricadas a partir de kits

Sem dúvida. Quando se posiciona um negócio, esse é um passo estratégico, logo, salvo raras exceções, de médio e longo prazo.

Cervejas artesanais:  “O consumidor quer que lhe comuniquem verdade e conhecer quem produz”
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Julga que seria interessante assistir ao agrupamento destes pequenos produtores para terem força a uma só voz?

Todas as iniciativas que possam fazer conviver grandes empresas com pequenos produtores, são bem-vindas. A procura deseja diversidade. Os modelos de governance que impliquem associação e agrupamento em Portugal, ainda têm muito para evoluir. Há num entanto caminho a percorrer e isso é positivo. Nem que se associassem apenas para comprar mais e consequentemente melhor. Participei muito recentemente numa estratégia de procurement global numa das maiores empresas agro-industriais do país, que acabou por pressionar a associação de vários players no processo das compras. Os ganhos foram visíveis e claro está, win-win. É um caminho, mas o único.

No futuro, de que forma podem estas cervejas de cunho artesanal conquistar mais mercado?

Podem através da verdade do marketing agroalimentar, ou seja, comunicar sempre verdade ao consumidor.

Pode esta proliferação de marcas tornar-se contraproducente? Até que ponto o mercado português, pequeno, terá capacidade para absorver tantas referências?

As marcas artesanais mais sérias, competitivas e que apelem à verdadeira autenticidade, sobreviverão. Os canais curtos de distribuição e os canais tradicionais, as, lojas da especialidade, têm demonstrado comportamentos de crescimento muito positivos. Se as marcas souberem posicionar-se nos canais, sobreviverão. Por outro lado, o mercado de exportação poderá estar recetivo à experimentação destes produtos únicos. O Portugal agro-alimentar pode ser competitivo, mesmo em negócios de pequena escala, contudo de enorme valor diferenciado.

Mexilhões à minha moda
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Paralelamente vemos as grandes marcas a segmentar e a criar novas cervejas. De certa forma um “se não os podes vencer junta-te a eles”. Há razões para a grande indústria, o Golias temer estes David?

Os segmentos a que se destinam estas cervejas são distintos. Apreciam a diferença. Desejam conhecer o rosto de quem produz, mais do que os resultados operacionais de determinada gestão que tem por missão, entregar valor adicional aos investidores e/ou acionistas. Recordo-me que há dez anos, a propósito do lançamento do projeto do leite biológico fui chamado por muitos de “louco” de “poeta agro-alimentar” e não conhecer a realidade produtiva e empresarial do cluster dos lacticínios.

Não é com vaidade, muito menos por gosto pessoal, que me referenciam como o “pai” do leite biológico em Portugal. O projeto nasceu no seio de uma grande indústria. Foram instalados produtores em Mogadouro. Iniciou-se a recolha de leite biológico e transformação em derivados, também. Até se conseguiu uma ajuda adicional aos produtores por contribuírem, através das pastagens biodiversas plurianuais, para o cumprimento das metas do protocolo de Quioto. Veja-se o que aconteceu neste caso do segmento dos lácteos biológicos em Portugal, veja-se o que está a acontecer agora a este segmento e o que está a agro-indústria, passados dez anos, a fazer. Também nos mercados agro-alimentares a inovação, embora muitas vezes mais lenta, acabará por falar mais alto.