[Este artigo foi publicado originalmente em janeiro de 2022 a propósito da comemoração dos 40 anos da publicação de “Cozinha Tradicional Portuguesa” e é agora recuperado devido à morte de Maria de Loudes Modesto.]
Leite-creme queimado, bacalhau à Brás ou amêijoas à Bulhão Pato são alguns dos sabores de que vão percorrer as próximas linhas. Há mais aromas que acompanham os livros e as histórias de Maria de Lourdes Modesto, autora da obra “Cozinha Tradicional Portuguesa”, que comemorou, no início de 2022, o 40.º aniversário da sua publicação. Para traçar o perfil e apurar histórias da “guardiã da gastronomia portuguesa”, como era conhecida, o SAPO Lifestyle falou em janeiro com o chef José Avillez, o gastrónomo Virgílio Nogueiro Gomes, e com a filha Nucha, que nessa altura realçaram o sentido de humor e o gosto pelo simples e bem feito da antiga apresentadora de “Culinária”. Este texto recupera as impressões dadas pelos entrevistados.
Mais de 400 mil exemplares vendidos e mais de 26 edições publicadas. Cozinha Tradicional Portuguesa, editado pela primeira vez em janeiro de 1982, é um dos livros mais vendidos de sempre em Portugal e guarda as tradições, sabores e histórias do nosso país. Foram vinte anos, muitos quilómetros de pesquisa e milhares de cartas recebidas enquanto apresentava o Culinária. Destas milhares de cartas, 1574 eram receitas.
Apesar do trabalho exaustivo de recolha, edição, experiências e muitas conversas com as famílias que guardavam as receitas, Maria de Lourdes Modesto sempre se referiu a esta obra como um trabalho feito por todos e coordenado por ela. Está presente nas prateleiras ou cozinhas de muitos portugueses e José Avillez afirma que é “o trabalho mais completo e importante sobre a gastronomia portuguesa e que vai ficar para sempre”.
Na altura, António Cabrita, o fotógrafo, acompanhou-a para todo o lado, registando as receitas que eram, quase todas, testadas em casa das famílias. Hoje, todas estas fórmulas de cozinha estão online e divididas por região no site da Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal.
Ter provado uma folha de alcachofra e comentado naturalmente o sabor parece ter sido a chave do sucesso quando a televisão ainda dava os primeiros passos. Corria o ano de 1958 quando Culinária foi para o ar pela primeira vez e o à-vontade com que cozinhava em direto mantiveram-na na RTP à frente do programa durante doze anos.
Antes de a cozinha ter aparecido na sua vida, Maria de Lourdes acalentava o sonho de ser restauradora do Museu de Arte Antiga e uma grande vontade de sair da província. Aventurou-se no curso de Educadora de Economia Doméstica, em Lisboa. Havia uma disciplina de cozinha que a cativou mas foi o ensino que inicialmente levou a melhor. Não queria regressar a Beja e ficou em Lisboa a trabalhar como professora de trabalhos manuais, no Liceu Francês.
O gosto de ensinar mantém-se até hoje e vemos a vontade de partilhar o conhecimento nos livros que tem vindo a publicar. Coisas que Eu Sei, lançado em 2021 pela Leya, “é um manual, com um sentido de humor esmagador”, conta Francisco Camacho, o seu editor.
O ânimo e sagacidade também são ingredientes muito referidos pelo seu amigo de longa data Virgílio Nogueiro Gomes, conhecido gastrónomo, com quem partilha a ideia de a comida ser património e cultura. Com muitas opiniões coincidentes e várias refeições partilhadas pelo país, o crítico destaca o carácter “determinado, claro e perspicaz” da amiga. Conta também que, apesar da idade já muito avançada, era uma pessoa “nada agarrada ao passado, muito para a frente” e que gostava de continuar a aprender e a inovar.
O que não gostava mesmo, conta-nos Virgílio, Nucha e Avillez, é que deturpassem o nome das receitas. E explica com sabores: as amêijoas à Bulhão Pato não levam vinho. Se alguém junta vinho às amêijoas – “que não acrescenta nada”, destaca Virgílio – então o nome pode vir a ser “Amêijoas à Bulhão Pato com vinho”. Percebemos a ideia. Portanto, bacalhau espiritual com batatas ou com natas é outro exemplo. “Ela ficava furiosa com isso. As pessoas pedem um prato e sai outra coisa. Era muito impositiva quanto a isso”, conta-nos o crítico, que concorda com este ponto de vista.
Isto prende-se mais com os nomes das receitas do que com as inovações. “Gostvaa de experimentar tudo, só não gostava de coisas mal feitas”, continua o amigo. À parte disso, e apesar de aceitar e gostar de inovações, Maria de Lourdes considerava um pastel de nata de cereja uma heresia ou um pastel com queijo da Serra uma obscenidade.
O bacalhau à Brás, a cozinha conceptual do chef Avillez e as memórias de infância
Sempre que lhe perguntam o prato favorito, sabemos que o bacalhau à Brás era uma resposta frequente. Também o chef Avillez aponta este prato como o seu eleito, já quase por ser uma resposta pronta do que um destaque especial no meio de tantos sabores com que lida diariamente. Mas foi este o prato escolhido para confecionar, numa surpresa combinada com a filha, no 91.º aniversário da “avó Lourdes”, como a chamava carinhosamente, num almoço íntimo. O bacalhau à Brás do chef Avillez é também um dos seus pratos mais emblemáticos. “Não é a receita dela mas lembro-me bem de me explicar”, conta o cozinheiro, que realça que foi a gastrónoma que o ensinou a respeitar muito a cozinha tradicional.
Maria de Lourdes Modesto foi das primeiras pessoas a quem José Avillez expressou o desejo de ser cozinheiro. A propósito da sua tese de licenciatura, pediu a um familiar para os apresentar e recorda esse dia: “Levei um ramo de flores e ela ficou muito contente. Quando disse que tinha pensado ser cozinheiro, os olhos dela brilharam e eu achei que era possível. Era uma senhora fantástica e numa primeira fase foi ela que valorizou este meu sonho”, conta o chef responsável pelo Belcanto, distinguido com duas estrelas Michelin.
Foi no Tavares, onde trabalhava há onze anos, que o chef fez um dos pratos que Maria de Lourdes mais recorda. “Todos gostavam, mas ela ficou rendida”, conta e explica que o prato que representava uma ostra petrificada, “um prato muito conceptual, de vanguarda”, foi uma grande experiência.
Das grandes às mais pequenas experiências, a filha Nucha realça que a mãe era uma apreciadora das suas memórias de infância e que “fica feliz com um pão alentejano e umas azeitonas”. Gostava muito de açordas, coentros, poejo e ervas. “Adorava farófias e a Justa Nobre tinha a generosidade, de vez em quando, de as oferecer”, conta a filha.
Quem também levava comida e doces a casa de Maria de Lourdes, no momento em que ela já pouco saía, era o seu amigo Virgílio. Levava-lhe o leite-creme do restaurante Poleiro, em Entrecampos, e queimavam em casa, ou arroz de forno com miúdos do JNcQUOI e a sopa de cação do Degust’ar. Virgílio sabia quais os seus gostos e tentações. Tem muitas memórias de refeições partilhadas e conta que aconteceu irem a um restaurante, “ela gostar muito de um prato e depois saber que era de um livro dela”.
Questionada sobre o que se comia na sua casa quando era mais nova, Nucha conta que a mãe fazia muitos gratinados, e recorda a sopa de cebola para ceia, com uma descrição que faz crescer a água na boca, a casa cheia aos fins de semana e os crepes. “Cozinhava lindamente”, remata.
Pseudónimos franceses e anónimos e carreira às camadas
Mas em casa, no dia a dia, era normalmente a empregada que cozinhava, e Maria de Lourdes pedia sobretudo para confecionar guisados e carne assada, recorda-se Nucha. Afinal, a gastrónoma sempre gostou de segurança profissional e conciliou o interesse pela cozinha com um emprego a tempo inteiro. Trabalhou 31 anos na Lever, hoje Jerónimo Martins. No escritório, já não era a Maria de Lourdes. Tinha um pseudónimo – era Francine Dupré, fazia cadernos de receitas e dava apoio à publicidade.
“Em Portugal, era um bocado mal visto uma mulher ter um trabalho fora de casa e, além de estar o dia no escritório, depois ia para a televisão”, conta a filha Nucha, que recorda mais detalhes de uma época em que a ditadura azedava o país: “Recebeu umas cartas pouco simpáticas, não gostava mas tinha de andar para a frente”. Até porque, também recebia muitos elogios, “era muito abordada na rua, e as pessoas tinham sempre palavras amáveis para lhe dizer, ela era a única”, conclui.
Além de Francine, Maria de Lourdes Modesto teve ainda mais um pseudónimo. Este a meias, partilhado com Duarte Calvão, no Diário de Notícias. Eram os Guardanapus e poucos sabiam quem é que escrevia aquelas críticas gastronómicas.
Cogumelos, queijos e receitas aquecidas em crónicas e livros
Além das crónicas publicadas nos jornais, os livros de receitas sob pseudónimo, Maria de Lourdes publicou muitos outros livros. Orgulha-se particularmente de As Receitas Escolhidas, publicado em 1978. Todas as receitas foram experimentadas em sua casa, conta-nos Nucha, tal como Queijos portugueses: e um olhar gastronómico sobre famosos queijos europeus de 2007 ou Cogumelos do campo até à mesa - conhecer, conservar e cozinhar, de 2010.
“Tirou ideias de vários sítios, experimentou e testou cá em casa”, conta a filha, que afirma que teve o privilégio de provar muitas coisas e também foi o apoio em muitas das receitas. “A minha mãe não gostava nada de desperdiçar comida. Testava muitas receitas, queria ter a certeza de que resultavam, e quando a comida era muita, dava aos vizinhos”, recorda.
A família era apreciadora e em geral havia consenso, principalmente quando foi confecionado o livro As Receitas Escolhidas. “Não há nada de muito estranho, mas muitos ingredientes não existiam cá na altura. Lembro-me do gengibre que não era uma especiaria muito comum e tínhamos de mandar vir. Até nos esquecemos que não havia tanta coisa como há agora.”
Entretanto, os anos passaram e as novas edições foram tendo outros sabores e juntaram-se novos ingredientes. “Há a moda de comer mais vegetais e muitos que não se usavam e agora já se comem, e os doces, por exemplo, o tiramisu só veio nas últimas edições porque não tínhamos tanto conhecimento das outras gastronomias e agora já é comum”, explica Nucha.
Ainda em maio do ano passado, Maria de Lourdes lançou mais um livro – Coisas que Eu Sei, editado por Francisco Camacho, depois de Sabores com História, em 2014. Vão buscar algumas das crónicas do DN e não se tratam de livros de receita, mas andam à volta dos alimentos e das técnicas de cozinha, indo à essência do que é cozinhar, explica-nos o editor da Oficina do Livro, que foi criando uma relação próxima com “a grande referência da gastronomia portuguesa”.
Francisco realça que o tom e o sentido de humor apurado está muito presente nos livros bem como a forma de se referir aos alimentos com se tivessem uma personalidade. Há quem chame a estes livros um manual e Francisco explica: “O livro lê-se com muita facilidade, coleciona uma série de dicas e segredos, é quase uma bússola”.
Referência e influência sobre a mesa
Sobre Cozinha Tradicional Portuguesa, que completa 40 anos, o editor afirma que olha com muito respeito para esta obra e que tem pena de não ter sido ele a editá-la. Apesar de os tempos serem outros, os livros de Maria de Lourdes continuam a ser sucessos, “a gastronomia é um fenómeno de interesse, temos chefs respeitados e o interesse pela Maria de Lourdes mantem-se”, explica o editor.
É nos livro que as receitas, histórias e segredos ficam para sempre guardados. E é o amigo Virgílio que garante que “nestes livros se sente bem o espírito dela”. A sua influência é inegável: Miguel Esteves Cardoso chama-a de diva, para o New York Times é a Julia Child portuguesa. Em 2004, foi feita Comendadora da Ordem do Mérito e ainda no passado novembro, o restaurante JNcQUOI lançou um livro em sua homenagem. São 500 exemplares apenas mas que em 258 páginas enaltecem os melhores pratos criados pela gastrónoma, com esculturas de açúcar feitas pela artista Alexandra Albergaria e tendo como base a obra que comemora agora 40 anos.
As receitas deste livro revertem para a Associação Caritas e a introdução foi escrita pelo seu amigo e gastrónomo Virgílio em que realça o gosto da sua amiga pela culinária, “especialmente enquanto esta é a responsável pelos melhores atos conviviais que são as refeições”. E continua para concluir: “Sempre atenta aos avanços desta atividade impõem pelo conhecimento e cultura sempre presentes. Ainda bem que temos uma Maria de Lourdes Modesto.”
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