Há uma palavra atualmente pouco usada que resume aquilo que nos oferece a mesa: Convivialidade. À mesa celebramos, nela também debatemos e entretecemos relações. Sobre a mesa também descansa este nosso mundo. A cozinha há muito que se faz de trocas, de assimilações, algumas que, de tão remotas, nem as adivinhamos no ato de saborear um prato. Sobre estes mundos gastronómicos se detém Bernardo Gaivão no seu livro À mesa não se envelhece (edição Oficina do Livro). Nascido em Lisboa, em 1988, o autor tem uma carreira ligada à comunicação e à educação. O presente livro não marca a estreia de Bernardo Gaivão nos escaparates. Em 2017, ofereceu-nos a obra Turista Infiltrado. Agora, o homem que colabora com várias empresas, fundações, entre outras organizações sem fins lucrativos, lança-se num longo caminho. Nas mais de 300 páginas do seu novo título, o autor desenreda a meada dos comeres e dos alimentos desde a Pré-História até ao presente, das ancestrais refeições humanas ao mais requintado banquete Michelin ou às armadilhas hipercalóricas da fast food. De permeio, Bernardo Gaivão navega nas águas do Mare Nostrum, visita Colombo, traça o rumo da globalização alimentar, não esquece os nossos comeres (há feijoadas, cozidos, alheira, tripa, açorda, entre outros acepipes), traz-nos memórias do bacalhau, lambarices conventuais, cozinha científica e uma visita de Frankenstein. Sobre alguns destes caminhos da cozinha conversámos com Bernardo Gaivão.
Em 2017, o Bernardo deu aos escaparates o livro Turista Infiltrado. Com este livro procurou uma perspetiva diferente de Portugal. Que país encontrou? Um país que vendeu a alma ao turismo ou um turismo que ainda nos dá um país genuíno?
Encontrei um bocadinho de tudo. Gente boa com vontade de receber bem, gente cansada do turismo em massa e gente com vontade de “fazer negócio”. Agora é preciso notar que fiz as minhas viagens “cá dentro” em 2015. O Portugal dessa altura ainda era um país deslumbrado com as cidades de cara lavada para o turista. Hoje pensamos mais nas rendas elevadas e nos aeroportos sobrelotados.
Logo na badana do atual livro lemos que este pretende ser “a biografia que a comida nunca recebeu”. Que biografia procurou o Bernardo traçar?
Imagine o curriculum vitae de uma pessoa. Temos episódios soltos das nossas vidas, organizados em secções: educação, experiência profissional, interesses, idiomas, entre outros. Todos eles são peças que ajudam a compor a imagem final. Foi isso que tentei fazer com o livro. Desconstruir o castelo para perceber a origem de cada uma dessas peças.
O Bernardo escreve a abrir o livro que este nasceu de um dos “seus devaneios psicológicos”. Entre o devaneio e a concretização da obra há todo um caminho. Como se lançou na pesquisa das histórias para este livro, ao que parece começou dentro do seu frigorífico?
Não é nada fácil. Como com qualquer outro tema, comecei por ler o que mais me interessava. Por exemplo: qual será a origem do Cozido à Portuguesa? Mas isto é apenas a chave que abre a caixa de Pandora. Quanto mais lia, mais tinha necessidade de ler e conhecer. O trabalho sério é feito pelos historiadores, eu simplesmente me “aproveitei” daquilo que eles já fizeram para escrever de um leigo para outro. Foram muitos livros, estudos, blogues e tudo o resto a que consegui deitar a mão.
Na cozinha há uma espécie de clubismo, todos consideramos que a nossa é a melhor. O Bernardo também quis demonstrar que todas as cozinhas têm o seu encanto, acima das preferências nacionais?
Claro que sim. A gastronomia de um país é uma componente essencial da sua cultura. Para a compreendermos temos de olhar para a sua história, para a língua, para a sua identidade. Ou seja, comer é viajar e viajar é, de certa forma, o que fazemos com cada garfada. Limitar os nossos paladares apenas aquilo que conhecemos do nosso bairro, é viver uma vida mais pobre. Então hoje, que é tão fácil alargar estes horizontes.
Consegue ter este afastamento em relação à nossa cozinha e resistir a dizer que “é a melhor do mundo”?
Claro que consigo. Nem acho que seja. Gosto muito da nossa comida, não me entenda mal. Simplesmente não acredito que exista um ranking. Não acho que haja uma melhor que as outras. Cada uma delas tem os seus encantos. Claro que há exceções. Mas isso talvez seja uma questão de gosto. Nem todos gostamos do mesmo.
De certa forma também nos quer dizer: “saiam da vossa mesa e procurem o que de diverso tem este mundo no que toca a alimentos”. De certa forma, nós, portugueses, nos últimos anos, estamos mais abertos a isso, concorda?
Não concordo porque acho que sempre estivemos. Nos nossos pratos atualmente temos influências dos romanos, dos suevos, dos árabes, dos indígenas da Amazónia, da Índia, do Japão e de um pouco por todo o lado onde os portugueses passaram. Olhe para o pastel de nata e encontrará tudo isto. O facto de agora estarmos mais abertos a ir jantar fora a um restaurante etíope é mais do que fazer as pazes com o Preste João, é reconciliar-nos com o nosso passado multicultural.
O Bernardo é um viajante. As viagens que fez proporcionaram-lhe histórias para este livro. Quer partilhar alguma?
Sempre gostei muito de viajar e escrever sobre as minhas viagens. Para este tema especificamente as influências são quase demasiadas. Tenho dois episódios que me marcaram mais. Em primeiro lugar, conhecer de perto a realidade da produção açucareira no Nordeste Brasileiro. Um épico que um dia ainda dará um livro por si só. O outro foi à mesa de um restaurante em Kuala Lumpur, na Malásia. Mais concretamente num restaurante onde se realizava uma experiência imersiva: jantávamos às escuras, na cegueira total, estimulando outros sentidos. Ia jurar que um dos pratos era uma Carne de Porco à Alentejana, o que num país onde não se come porco me pareceu impossível. Era couve-flor e a influência da receita? Tão Portuguesa como o Camões.
A cozinha também proporciona alguns mitos, histórias que não sendo necessariamente verdadeiras, de tão contadas assumimo-las como tal. Na sua pesquisa destruiu algum mito?
Muitos. Aliás, tive de deixar bem claro aos leitores que “não se estraga uma boa história com a verdade”. Isto é, não menti a ninguém, mas não deixei de partilhar os mitos. No final lá revelo as verdades aborrecidas. O risotto que não foi descoberto por acidente numa partida entre colegas, o cozido que pode não ser à portuguesa, o esparguete que não teve nada a ver com o Marco Polo, ou as Tripas à Moda do Porto que têm tanto mito associado que lhes é difícil encontrar a origem.
No seu livro, o Bernardo recua às origens, regressa à Pré-História. Hoje, temos um certo fascínio por aquele tempo, basta recordarmos a Dieta do Paleolítico. Há tanto assim naquela alimentação a invejar?
Eu não acho. Gosto de um bom grelhado, mas porque limitar o nosso prato? O ser humano evoluiu e por alguma razão. Que bom que é ter opções. Essas dietas são muito pouco equilibradas nutricionalmente.
Traz para o seu livro a receita mais antiga que se conhece. É uma receita reproduzível ainda hoje?
Claro que sim, a dos bolos de chufa. Embora eu tenha de admitir que nunca tentei. Prefiro o salum sine salso: uma receita romana de Apício (o primeiro chef estrela da história) para um patê de fígados disfarçado de peixe.
Parte para o mundo clássico, o seu livro navega no Mare Nostrum. Grécia e Roma tinham uma cozinha de opulência. Há algum episódio que gostasse de salientar?
Quero deixar alguma coisa para os leitores descobrirem no livro, mas posso já levantar um pouco o véu. Por exemplo, sabia que o pesto e a açorda alentejana podem ter a mesma origem? Os pisos romanos eram utilizados para fortificar os pratos e dar-lhe um pontapé de sabor. Uma das boas heranças que nos chegou desde esse tempo.
No seu livro também nos fala de alimentos globais. Aliás, antes das viagens marítimas já fazíamos trocas terrestres. Há algum alimento que se destaque na lista de alimentos globais?
Claro que sim. Basta pensar que quando acordamos não passamos sem um café, que vem da Etiópia. Que os portugueses são o povo europeu que mais arroz consome, um grão asiático. Ou como é que a produção do açúcar, que nos chegou pela rota das sedas desde Papua, influenciou de tal maneira a nossa doçaria. Mas se me pergunta como é que nós marcámos a diferença, aí então já temos de navegar. Fomos essencialmente nós, portugueses e espanhóis, quem ligou a Europa, Ásia e África com o continente americano. Dois mundos gastronómicos totalmente independentes. Sem isso não teríamos chocolate, milho, batata, malaguetas, entre outros alimentos.
O Sushi não é japonês?
A doutrina diverge. Se considerarmos o sushi aquilo que vemos na nossa app quando não nos apetece cozinhar...não. É uma modernice adaptada pelo mundo ocidental. Não sabemos ao certo onde originou a primeira “receita” de sushi. Sabemos que vem da Ásia, mas provavelmente ou veio da China ou da região do Mekong. Esta forma primária de sushi foi mais tarde adaptada no Japão. Por isso sim, podemos dizer que é japonês, mas como acontece em quase todas as cozinhas, não exclusivamente.
O Bernardo também se deteve nas pizzas. Todos as consumimos, sem pensarmos na sua epopeia de globalização. Há alguma história que gostasse de salientar?
A pizza é um caso interessante. Foi de besta a bestial, de volta a besta e novamente ao excelente. Já foi considerada comida de pobres, à semelhança das pastas, uma coisa abjeta que só as classes mais baixas de Nápoles comeriam. À boleia da Rainha Margarida de Saboia [a que alegadamente dá o nome à pizza Marguerita] popularizou-se entre as classes mais altas. Mas foi graças à imigração americana que se massificou.
No seu livro também se detém na nossa cozinha, nas feijoadas, nos cozidos, nas sopas, etc. Tanto já se escreveu sobre a nossa cozinha. Há alguma história que tenha descoberto que o surpreendeu?
Algumas. Mais uma vez não quero já revelar o menu todo, mas digamos que as Tripas não só à moda do Porto, que o Cozido pode ser à Espanhola e que as amêijoas mais famosas do país deveriam mudar de nome.
O Bernardo estudou as origens da nossa gastronomia, dos nossos pratos. Como avalia a forma como a estamos a tratar nos nossos restaurantes?
Há de tudo, como seria de esperar. À boleia dos petiscos e das “tapas” nacionais vemos renascer pratos “brutos” e tradicionais que já estavam muito afastados do português médio. Mas também vemos nas nossas mesas muita coisa que de nacional tem pouco. Muito tártaro de isto ou gyosas daquilo.
Nada contra, gosto muito de ambos. Agora se me pergunta se esta é a melhor forma de preservar a cultura gastronómica nacional, talvez não. Acredito que no meio está a virtude. A variedade e a multiculturalidade são positivas, mas não devemos perder o rasto ao que é nosso. Aliás, enquanto país, deveríamos promovê-lo. Incentivar a divulgação da gastronomia tradicional portuguesa cá dentro e lá fora.
Finalmente sobre a fast food. Considera que esta está a matar a identidades culturais no que toca à cozinha. Estaremos a vender a alma ao diabo em troca de disponibilidade, preço e gulodice?
Não quero demonizar o fast food, não vou ser hipócrita. Gosto de um bom hambúrguer como gosto de uma boa feijoada. É verdade que talvez lhe estejamos a dar demasiado palco, com tudo o que isso implica para a nossa saúde. Mas também é um facto que há muito que podemos aprender com ela. Dou-lhe o exemplo da pizza de que falávamos agora: começou como uma comida de massas, barata, acessível e objetivamente pouco variada do ponto de vista nutricional. Normalizou a sua reputação até ter sido agarrada novamente pelas multinacionais americanas. Serviram estas cadeias como porta-estandarte para divulgar um aspeto positivo da cultura italiana. O que é que eu quero dizer com tudo isto, que não gosto de linhas vermelhas, que a questão é complexa e que devemos olhar para o lado positivo de qualquer fenómeno gastronómico.
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