Num dos primeiros passeios pelo Chiado, já com o movimento habitual, pós pandemia, dei por mim a sorrir com o olhar fixo num daqueles artistas que têm o dom de levar a arte à rua, como quem diz, até nós. O dispositivo circense era simples, duas varas de madeira, ligadas por um tecido (corda) que quando mergulhadas num líquido, aparentemente mágico, criava bolas de sabão, gigantes que levemente flutuavam pela Rua Garrett.
Só por mera ficção, posso crer que Pessoa, naquela mesma rua se tenha inspirado na figura do seu heterónimo Alberto Caeiro, para em Guardador de Rebanhos, escrever: “as bolas de sabão que essa criança; se entretém a largar de uma palhinha; são translucidamente uma filosofia toda” (in Athena n.º 4, 1925). Numa poesia da simplicidade e de uma certa objetividade visual, há a captura mágica de uma realidade, a leveza da bola de sabão a vencer a gravidade e as leis da física clássica.
Na verdade, há uma física que desafia os nossos olhos e permite por segundos criar momentos de ilusão poética. O truque está na química da solução: água, sabão, glicerina e açúcar. A água não se evapora tão rapidamente, fazendo com que tensão superficial se mantenha e a bolha permaneça, relativamente estável, voando.
O fascínio e a química das bolas de sabão, cruzam-se no nosso pensamento com algumas ideias sobre as relações amorosas. No nosso ideal romântico, o mito das almas gémeas e da unidade sempre nos disse muito pouco. Não gostamos da ideia de encerramento ou de perda de individualidade, contudo a ideia de leveza encerrada na bola de sabão é muito sedutora. Talvez o estado de paixão quando vivido a dois, seja uma boa ilustração dessa leveza. Uma bolha na qual os dois amantes parecem momentaneamente repousar, suspensos do chão. Uma insustentável leveza, que desafia as leis da gravidade, até que a bola se dissipe.
E depois? Depois da bola desaparecer, onde fica o romance?
O romance fica possivelmente, contido na próxima bola de sabão. Fica no movimento quase repetitivo do artista circense, que vai mergulhando as varas com o tecido, na solução aquosa, ensaiando novas bolas de sabão. Se nos mantivermos na metáfora, concluímos que o romance está dependente, por um lado da intencionalidade do artista que mergulha as varas na solução na procura de novas bolas de sabão e por outro lado na qualidade do racional químico da solução aquosa.
A intencionalidade nas relações amorosas, é muitas vezes interpretada como sendo uma certa reificação da espontaneidade, um racionalizar do sentir. Há em alguns discursos românticos a crença que o comportamento espontâneo é o melhor indicador do sentir e do gostar. Neste sentido a intencionalidade é um deformar do sentir, um espartilho que trava a emoção e repõe um chão racional. Esta é uma tese que não acompanhamos.
Numa divagação sobre o tema, pelas planícies do Alentejo, onde o sol, a secura e o horizonte trémulo, pareciam convidar a uma racionalidade ponderada, ficou claro no contraditório do debate, que o tema das bolas de sabão se reduzia à convicção e à destreza como o artista força a sua produção. Neste sentido arriscamos afirmar a importância da intencionalidade. As relações, precisão de ser pensadas, imaginadas de forma criativa. É necessário um sonho que desafie o quotidiano, um sopro que leva a relação para novos voos, isto é, um atrevimento que permite insuflar novas bolas de sabão numa tentativa de mover a relação, retirando-lhe o peso.
A intencionalidade oferece à relação um pré sentido, que permite afirmar o desejo. Sem intencionalidade o artista, não mergulha as varas na solução aquosa e não corre o risco de criar ou não, mais uma bola de sabão. Sem intencionalidade, não há um trabalho prévio de elaboração da melhor solução química, através de um equilíbrio perfeito entre água sabão glicerina e açúcar. Resumindo não nos parece que o romance sobreviva, sem um sopro de intencionalidade constante que procure a criação de novas bolas de sabão que permitam ao casal romântico flutuar sobre a realidade. Se a magia está nas bolas de sabão, o segredo está na intencionalidade da solução aquosa e na forma como o artista manuseia de forma delicada as varas.
A intencionalidade de criar bolas de sabão talvez seja mesmo o segredo da felicidade, Nietzsche em Assim Falava Zaratustra, escreve: “Quanto a mim, gosto da vida: borboletas e bolhas de sabão e todas as coisas que, entre os homens, se assemelham a elas, parecem conhecer mais sobre a felicidade. Vendo flutuar essas almas leves, tolas, móveis, móveis, pequenas – isso. Seduz Zaratustra a lágrimas e canções”
Nietzsche parece deter-se à semelhança de Pessoa, perante uma simplicidade do real, relegando uma certa metafísica (perdoem o palavrão) para um segundo plano, afirmando em sentido positivo a simplicidade da emoção associada ao flutuar. Filosofia à parte, a leveza da borboleta ou da bola de sabão é aos nossos olhos, simplesmente cativante. À semelhança de um beijo a bola de sabão, parece agregar num momento a inteligência racional do projeto e a emoção do sentir no presente.
A filosofia da simplicidade esconde na verdade uma racionalidade que alimenta e construi o momento. A paixão e a sua forma etérea para se manter no tempo, tem que ser alimentadas por um processo pensado. Não podemos deixar de concluir que há uma intencionalidade por detrás da magia do romance que nos faz voar e voar repetidamente!
Um artigo de Pedro Vaz Santos, Psicólogo Clínico e Terapeuta Familiar e de Casal.
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