Nunca é demais refletir acerca daquela que é considerada habitualmente a mais grave das doenças mentais, mas também aquela que, nas últimas décadas, mais avanços tem tido ao nível do tratamento – a Esquizofrenia. Não obstante tais avanços, a Esquizofrenia é a doença mental na qual as pessoas afetadas mais sofrem de estigma.
A Esquizofrenia afeta cerca de 1% da população mundial, embora ao considerarmos o espetro mais alargado de todas as doenças psicóticas, um número ainda maior de pessoas padece destas patologias que são uma das principais causas de incapacidade devido a doença, associando-se a elevados custos, quer para os sistemas de saúde, quer para a sociedade.
A Esquizofrenia caracteriza-se por diferentes grupos de sintomas, embora aqueles que mais frequentemente são associados à doença sejam os chamados sintomas psicóticos. Este grupo de sintomas refere-se a manifestações clínicas que condicionam a perda de contacto com a realidade, isto é, os delírios e as alucinações. O delírio corresponde a uma alteração do pensamento em que a pessoa doente faz um julgamento falso acerca da realidade. Alguns exemplos de pensamento delirante são a crença de ser perseguido sem de facto o ser, ou a crença de que existem seres ou entidades que conseguem inserir ou roubar os seus pensamentos. Por sua vez, as alucinações correspondem a uma perturbação da experiência sensorial do mundo em que as pessoas que ouvem, cheiram, vêem, ou sentem pessoas, objetos ou animais que não estão realmente presentes ou não existem. Os sintomas psicóticos estão quase sempre presentes desde o início da doença e constituem a sua manifestação mais exuberante, razão pela qual são frequentemente apresentados para retratar a Esquizofrenia, seja na literatura, no cinema ou artes plásticas. No entanto, enquanto estes sintomas globalmente respondem aos tratamentos atualmente disponíveis, permitindo que as pessoas com Esquizofrenia voltem ao contacto com a realidade, são os chamados sintomas negativos, aqueles que mais prejuízo causam no funcionamento global. Tais sintomas referem-se, por um lado, a uma restrição das emoções e da comunicação verbal e não verbal, o que dificulta a comunicação com outras pessoas e, por outro lado, à falta de motivação para realizar as mais diversas atividades do dia a dia. Tal se traduz em dificuldades ao nível relacionamento social, familiar e profissional. A estas somam-se aquelas que resultam dos sintomas cognitivos. De facto, as pessoas com Esquizofrenia apresentam dificuldades na capacidade de manter a atenção, de planear simples tarefas do dia-a-dia e de interpretar os sinais sociais ou o estado mental e emocional das outras pessoas, que são competências necessárias para adequar o nosso comportamento social.
Apesar de hoje ainda não conhecermos todos os mecanismos que levam ao aparecimento da doença e que explicam os seus sintomas, a investigação tem demonstrado que no cérebro das pessoas com Esquizofrenia existe uma perturbação na comunicação entre diferentes regiões cerebrais que afeta os mecanismos de processamento e integração da informação. Estas alterações resultam de alterações no desenvolvimento cerebral que ocorrem alturas consideradas críticas, como é o caso do período perinatal e adolescência, por ação de diversos fatores de stress (p.e. ter tido experiências adversas numa idade precoce como bullying ou abuso sexual, viver em meios urbanos, ser alvo de discriminação racial/étnica, consumir drogas como cannabis).
Atualmente os tratamentos disponíveis, incluem intervenções farmacológicas e não farmacológicas. Os fármacos atuais não só são eficazes no tratamento dos sintomas psicóticos como causam menos efeitos secundários incapacitantes comparativamente com os fármacos do passado. Não obstante, é de realçar que o tratamento deverá contemplar abordagem dos outros sintomas que são menos responsivos aos fármacos e visar as dificuldades funcionais provocadas pela doença. Nesse sentido, as guidelines internacionais recomendam também intervenções não farmacológicas como são a psicoterapia, a terapia ocupacional, a remediação cognitiva, o treino de atividades de vida diária e aptidões sociais, apoio à formação académica e ingresso no mercado de trabalho. Em Portugal, apesar de recentemente ter sido aprovado um diploma governamental que tornou gratuita a dispensa dos fármacos mais modernos, existe ainda uma significativa carência de tratamentos não farmacológicos e que urge implementar de forma generalizada.
Um aspeto a destacar é que o episódio psicótico inaugural da doença – o Primeiro Episódio Psicótico - (PEP), ocorre habitualmente no final da adolescência ou no início da vida adulta. Este tem sido considerado um “Período Crítico”, dado que os estudos realizados sugerem que a deterioração clínica e funcional, ocorre sobretudo no período próximo e no período subsequente ao aparecimento dos primeiros sintomas. Nesse sentido, é fundamental que as pessoas que começam a apresentar os primeiros sintomas psicóticos, ou que mesmo antes do aparecimento destes sintomas, evidenciem um declínio marcado no seu funcionamento global, iniciem um acompanhamento clínico especializado, o mais precocemente possível. Tal permitirá otimizar os resultados da intervenção realizada, uma vez que quanto maior for o período sem tratamento adequado, pior será o prognóstico.
Por fim e tal como sugere o título do recente relatório da comissão Lancet “o estigma e a discriminação em relação à doença mental são piores que a doença em si”, salientando que o estigma é um dos maiores obstáculos ao acesso a cuidados de saúde. O estigma viola os direitos humanos essenciais e conduz à marginalização e exclusão social. As intervenções mais efetivas para reduzir o estigma envolvem o contacto entre pessoas com doença mental e pessoas não doentes. Cabe aos governos implementar programas de redução de estigma e aos media fornecer informação precisa, responsável e baseada na evidência e não baseada em mitos e estereótipos (como a ideia falsa de que as pessoas com Esquizofrenia são mais violentas). Uma das principais medidas para reduzir o estigma passará necessariamente por alocar um financiamento adequado para disponibilizar o tratamento da doença mental em todas as suas dimensões, o que até agora não sucedeu.
O ónus da ação também está em todos nós, na nossa vida pessoal e profissional, para melhorar a nossa saúde mental e daqueles que nos rodeiam. Acabar com o estigma em relação à doença mental deve ser um objetivo primordial.
Um artigo do médico psiquiatra Miguel Bajouco, no Centro de Responsabilidade Integrada (CRI) de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), e Professor Convidado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. É ainda investigador no Coimbra Institute for Biomedical Imaging and Translational Research (CIBIT).
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