Num artigo publicado na revista Nature Communications, o grupo descreve como a relação gene-ambiente pode provocar a malformação craniofacial. O estudo foi conduzido no Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado no Instituto de Biociências (IB-USP).

“O nosso grupo acompanha famílias com casos de lábio leporino há anos e havia a suspeita de que, para que ocorresse a malformação, seria necessário um componente ambiental, além do genético. Pois, ao fazer o sequenciamento genético dessas pessoas, vimos que, apesar de muitas delas terem a mutação no gene CDH1, uma parcela importante não apresentava a malformação. Faltava uma peça que explicasse por completo o que levava à ocorrência do lábio leporino”, conta Maria Rita Passos-Bueno, pesquisadora do CEGH-CEL que coordenou o estudo.

De acordo com Passos-Bueno, outro elemento que reforça a hipótese é que, entre as pessoas acompanhadas, se observa uma variação grande em relação à gravidade das fissuras. “Pessoas com a mesma mutação genética podem não ter lábio leporino, apresentar apenas uma abertura no lábio ou no céu da boca, ou ainda ter o lábio e o céu da boca afetados”, conta.

A investigadora explica que, quando há mutação em um dos alelos do gene CDH1 (que codifica a proteína E-caderina), o resultado pode ser o desenvolvimento de lábio leporino e também de um tipo de cancro gástrico. A mutação interfere no processo de migração de células das cristas neurais – células presentes no desenvolvimento embrionário e que se diferenciam para a formação de ossos, cartilagem e tecido conectivo da face, entre outros tipos celulares.

Com o comprometimento da migração das cristas neurais durante o desenvolvimento embrionário, o processo de diferenciação é prejudicado, podendo resultar no lábio leporino.

No entanto, ressalta Passos-Bueno, essa variante sozinha não explica completamente a questão hereditária do lábio leporino. "Quando os dois alelos de CDH1 são afetados, o embrião morre. Já quando um alelo é normal e o outro mutado, há compatibilidade com a vida e, na maioria dos casos, não ocorre malformação. A esse fenómeno de hereditariedade dá-se o nome de penetrância incompleta: existe a mutação genética, mas ela não é traduzida no fenótipo", explica Passos-Bueno.

Na busca pela peça que faltava para montar o quebra-cabeça, os investigadores passaram a investigar algum fator ambiental que pudesse contribuir com o processo de malformação.

"Dados da população com lábio leporino mostram que obesidade, diabetes e outras situações pró-inflamatórias, como infeção materna [episódios de febre durante a gestação], são fatores de risco para a criança nascer com fissuras. Mas precisávamos mostrar como essa relação se dava. Os resultados do nosso estudo mostraram que moléculas inflamatórias denominadas citocinas [secretadas por células do sistema imune] induzem uma hipermetilação do gene CDH1 [modificação bioquímica que altera o padrão de expressão do gene]", diz Passos-Bueno.

É o fenómeno que os cientistas chamam de epigenética, ou seja, modificações bioquímicas nas células ocasionadas por estímulos ambientais (no caso a inflamação) que promovem a ativação ou o silenciamento de genes sem provocar mudanças no genoma (mutações).

"O desafio do estudo foi mostrar essa relação entre genética e ambiente, ou seja, o fator que leva à metilação especificamente ou prioritariamente do gene CDH1 em uma gestante portadora da mutação hereditária que apresenta algum estágio de pró-inflamação durante a gestação", conta Lucas Alvizi, que na época da pesquisa era bolsista de pós-doutorado da FAPESP. Atualmente Alvizi é investigador na University College London.

Vale destacar que a metilação é uma modificação bioquímica que consiste na adição de um grupo metil à molécula do ADN através da ação de enzimas. Trata-se de um processo natural e necessário para o funcionamento do organismo, pelo qual a expressão dos genes é modulada. No entanto, quando esse processo se torna desregulado – como no caso da hipermetilação do CDH1 – pode causar disfunções nas células e contribuir para o desenvolvimento de doenças e malformações.

Além de testes in vitro com células humanas, os cientistas fizeram experiências com camundongos e rãs para provar que a inflamação gerava a hipermetilação no gene CDH1. E comprovaram que a adição de um grupo metil a um trecho específico do ADN dificultava o processo de transcrição do gene, resultando em menor migração das cristas neurais.

"Expusemos as células e os embriões de camundongos e rãs com a mutação em um dos alelos do gene CDH1 a fatores ambientais, no caso, partículas de bactérias que induzem a inflamação. Depois pegamos em fêmeas com cópias normais do gene e as expusemos à mesma condição. E observámos que somente a prole das fêmeas portadoras da mutação apresentava defeitos na migração da crista neural, o que pode explicar o aparecimento da fissura", relata Alvizi.

Passos-Bueno explica que mutações no gene CDH1 também podem resultar num tipo de cancro de estômago hereditário. "Trabalhos recentes mostraram que algumas famílias tinham fissuras e cancro, porém, isso é algo mais raro. Pretendemos, em estudos futuros, investigar a relação entre esses dois fatores [genético e ambiental] com o cancro do estômago”, diz.

Outro objetivo futuro da equipa é entender que estados pró-inflamatórios durante a gestação, associados à constituição genética do embrião, são suficientes para ocasionar o lábio leporino. Esse conhecimento, na avaliação de Passos-Bueno, poderá orientar ações capazes de prevenir a malformação.

O estudo Neural crest E-cadherin loss drives cleft lip/palate by epigenetic modulation via pro-inflammatory gene-environment interaction pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41467-023-38526-1.