“Uma boa gargalhada e um longo sono são os melhores tratamentos no livro do médico”, recorda-nos um velho e sabedor provérbio irlandês. Palavras que o especialista em Medicina do Sono, Tiago Sá, transpõe para abertura de um dos capítulos do seu livro, Acabe com a Noites em Branco (edição Planeta). À pergunta, “dormir é o melhor remédio?”, o médico responde com um "sim". O sono é um dos pilares da nossa saúde, a par de uma alimentação equilibrada e do exercício físico. Contudo, a nossa sociedade parece menosprezá-lo e mesmo esquecê-lo. Vivemos num mundo de luzes, de ecrãs, de música, de velocidade, de noites que se assemelham a dias, não nos sobra agenda face às inúmeras solicitações. Não há espaço nem tempo para um bocejo. “Temos de desacelerar”, recorda-nos Tiago Sá, nascido em Braga, com estudos em Medicina na cidade de Coimbra e formação em Pneumologia no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Há bons argumentos para a travagem a fundo na vertigem dos dias. Porquê? Aprender, memorizar, tomar decisões dependem de um bom sono. Este, o sono reparador, coopera para afastar o pesadelo da diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial, enfarte agudo do miocárdio. Em termos absolutos, a privação do sono é mais do que um problema individual, mas também social e económico.

À conversa com o SAPO Lifestyle, Tiago Sá, fundador do Sleeplab, projeto para uma abordagem multidisciplinar ao sono, indica-nos como valorizar as horas em que nos entregamos nos braços de Morfeu, sabendo priorizar o sono na nossa rotina e dia a dia. “Não podemos esperar uma solução ‘mágica’ para o nosso sono se não tivermos uma atitude de mudança”, sublinha o médico.

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créditos: Stanisław Gregor/Unsplash

“Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer”. O adágio popular é de todos conhecido. Contudo, lendo o seu livro percebemos que os estudos mais importantes sobre o sono remontam ao século XX e que, só no século XXI, se generalizou a investigação dos distúrbios do sono. A ciência não percebeu durante séculos uma evidência?

É verdade. No campo do sono, assim como muitos outros campos importantes para a nossa saúde, a investigação é recente. Em abono da verdade, desde a Antiguidade que encontramos relatos sobre o sono e a sua importância, a relação entre os sonhos e determinados comportamentos. Escritos sobre o sono são bastante anteriores ao século XX. Não é menos verdade que nos últimos séculos a saúde e a investigação na área das ciências da saúde apresentaram enormes avanços. No século XX, começámos a aprofundar o conhecimento sobre o sono, a caracterizar diferentes tipos de sono, de atividade cerebral, muscular, respiratória durante o sono e começámos a levantar o véu sobre este tema de um ponto de vista biológico. Por exemplo, a apneia obstrutiva do sono, um distúrbio, foi descrita por investigadores franceses e alemães na década de 1960. Contudo, só na década seguinte o diagnóstico e tratamento de doentes com distúrbios do sono passou a ser uma rotina. No fundo, acaba por ser em linha com outros factos do século XX, como a descoberta dos antibióticos e a redução da morte no Mundo.

O sono teve um papel primordial no que toca ao sucesso da espécie humana?

Sim. Repare, o sono acaba por ser essencial nos primeiros anos de vida e no nosso desenvolvimento biológico. Sabemos que um recém-nascido necessita de dormir 14 a 17 horas por dia. É importante criar condições para que isso aconteça.

Obviamente que no passado remoto, a nossa espécie criar lugares de conforto e de segurança permitiu-lhe proteger a descendência nos primeiros anos de vida. Isso propiciou o desenvolvimento neurológico dos humanos em relação a outras espécies. Se pensarmos bem, a autonomia de um cachorro nas primeiras semanas de vida é enorme face a uma cria humana. Somos muito mais dependentes nos primeiros anos de vida, o que também permite que descansemos e possamos dormir, o que vai diferenciar o nosso desenvolvimento neurológico.

A quantidade não está diretamente ligada à qualidade do sono.

No que toca ao sono dizer que quantidade equivale a qualidade é erróneo? O que é um bom sono e como o podemos avaliar?

Em consultas de sono é frequente escutar que a pessoa dorme dez horas, mas que o sono não foi reparador. Ou seja, a quantidade não está diretamente ligada à qualidade do sono. Particularmente em pessoas que apresentam distúrbios respiratórios do sono, têm-no mais fragmentado, superficial e acordam cansadas.

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Muitas vezes, quando tratamos os distúrbios respiratórios do sono [entre outros, apneia obstrutiva do sono, apneia central do sono], é comum ouvirmos que a pessoa dorme menos horas, mas acorda com mais energia.

Isso não significa que o número de horas de sono não deixe de ser importante. É corrente ouvir a expressão “um chapéu não serve a toda a gente”. O que quero dizer com isto? Que somos diferentes e temos necessidade de diferentes horas de sono diário. Contudo, a evidência científica demonstra que para a maioria da população adulta, sete a nove horas de sono por noite são o ideal. Não quer dizer que exista uma pequena percentagem da população que, com menos do que essas sete horas, esteja restabelecida para o novo dia, sem consequências. Mas, o que vemos com mais frequência é pessoas que dormem menos de sete horas a habituaram-se à privação do sono. Atribuem o cansaço, a fadiga, a dificuldade de concentração a outras coisas que não o sono quando é este o responsável.

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créditos: elizabeth lies/Unsplash

Como também encontramos pessoas que precisam de dormir mais horas…

Sim, por outro lado, existem pessoas que precisam de dormir mais horas e que não têm, necessariamente, distúrbio do sono subjacente. Essas pessoas constatam que não dormem o suficiente quando, por obrigações profissionais ou sociais, passam a descansar menos do que as dez horas que dormiam anteriormente.

Também encontra pessoas a quem o sono chega mais tarde e que se levantam mais tarde. Não são necessariamente mais doentes, mais preguiçosas ou menos produtivas, têm simplesmente um horário biológico que é diferente daquele que socialmente é entendido como o mais comum. São indivíduos que se debatem com grandes dificuldades para adaptar as suas necessidades de sono aos compromissos profissionais e sociais.

Durante a adolescência e juventude, o individuo tem uma apetência natural para se deitar e levantar um pouco mais tarde. A escola e a universidade obrigam-no a viver um pouco em privação do sono porque, mesmo que sinta a obrigação de se deitar e levantar mais cedo, acaba por padecer da tal privação.

Em suma, na questão do sono temos de questionar se existe um problema ou se é uma característica individual como a cor dos olhos.

Na questão do sono temos de questionar se existe um problema ou se é uma característica individual como a cor dos olhos.

Há quem veja no sono um parêntesis nos seus dias, minimizando-o. O que se passa no nosso corpo enquanto dormimos?

Dormir é ganhar tempo. O sono é uma tarefa essencial no nosso dia a dia, um pilar para a nossa saúde, a par de uma alimentação saudável e do exercício físico. Deve ser encarado com a mesma seriedade de qualquer outra obrigação social ou profissional. Diria que temos de inserir o sono na nossa agenda. Numa breve explicação, durante o sono vivemos um processo de repouso, de reparação celular, de sedimentação de memórias, de interligação de conceitos que nos permitem, depois, nos dias seguintes, conseguirmos mais facilmente raciocinar, integrar e relacionar informação. Tal só acontece se dormirmos com qualidade. É possível que o leitor já tenha passado o dia em privação do sono e sente quase como que uma névoa, comprometendo a sua produtividade e a capacidade de reação. No meu livro, relato situações na História em que a falta de sono teve consequências catastróficas, como o acidente nuclear em Chernobyl, na década de 1980. Um bom sono reduz os acidentes e os erros humanos.

Está demonstrado que a estratégia mais eficaz no tratamento, por exemplo da insónia, não é farmacológica, é a terapia cognitiva ou comportamental
créditos: Matheus Vinicius/Unsplash

No fundo, um mau sono tira-nos anos de vida…

Claro. Por exemplo, sabemos que a sonolência é uma das causas principais dos acidentes de viação e mortes que lhes estão associadas no mundo ocidental. Determinados distúrbios do sono levam a patologias cardiovasculares, ataque cardíaco, hipertensão arterial, só para citar três.

As palavras são suas: “Portugal tem um caminho particularmente sinuoso a percorrer em relação ao sono da população. Isto quando falamos na adoção generalizada de hábitos de vida saudáveis”. Tem dados que sustentem o mau sono dos portugueses?

É aceite pela população que devemos ter uma alimentação saudável e que devemos praticar exercício físico regularmente. Temos de juntar outro elemento a esta dupla, o sono. No livro partilho alguns dados da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, em parceria com outras entidades. Neles percebemos que quase metade dos portugueses dorme menos do que as sete horas de sono. É manifestamente pouco. O que digo é que existe um caminho particularmente sinuoso, porque acredito que a população ainda não está tão alerta para o problema do sono como para outros hábitos de vida saudáveis.

Temos de alterar alguns comportamentos na nossa sociedade para promovermos um sono com mais qualidade.

Montámos uma sociedade que parece contrariar o sono. Vivemos neste aspeto um tempo perigoso?

A própria iluminação artificial promoveu alterações nos nossos padrões de sono. No passado, sem iluminação artificial, acabávamos por ter um padrão de sono diferente, adormecíamos mais cedo. Nos dias que correm, para além da iluminação, temos uma permanente intensidade de estímulos externos, muitas vezes absurda e contraproducente. Estarmos num centro comercial, com luzes, música alta, que nos captam constantemente a atenção e esperar que saíamos dali, cheguemos a casa e consigamos dormir repousadamente é irreal. Provavelmente, temos de alterar alguns comportamentos na nossa sociedade para promovermos um sono com mais qualidade. Nas zonas residenciais de alguns países europeus, o trânsito está limitado a determinados horários para promover o descanso. Também o conforto nos nossos espaços, no que respeita à temperatura e insonorização, é essencial para mantermos um sono de qualidade.

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créditos: Minnie Zhou/Unsplash

Também há atitudes à escala familiar que podem propiciar um bom sono…

Sem dúvida. Está bem estudado o efeito que a luz tem no nosso ritmo circadiano [ver caixa]. O nosso cérebro desenvolveu-se como resposta à diminuição do estímulo luminoso do sol associando o facto ao momento de irmos para a cama. Se mantivermos o excesso de estimulação luminosa, por exemplo à exposição aos ecrãs, estaremos a contrariar este processo natural. Estarmos ‘ligados’ às redes sociais, em discussões online, a assistir a um filme de ação antes de nos deitarmos, é natural que todo esse excesso de estímulo contrarie a propensão natural para adormecermos. É fundamental que adotemos rotinas e hábitos que promovam a higiene do sono e o valorizem.

Ritmo circadiano

Processo biológico que ocorre em, aproximadamente, 24 horas precisamente o tempo que a Terra demora a completar uma volta em torno do seu próprio eixo. Um dos ritmos circadianos mais importantes e conhecidos é o ciclo sono-vigília. Contém um bloco de horas onde temos propensão para estar acordados e um bloco de horas onde temos propensão para estar a dormir.

Fonte: Livro Acabe com as Noites em Branco, de Tiago Sá.

A pandemia agudizou os distúrbios associados ao sono?

É um fenómeno que está bem estudado, não só em Portugal, mas também em outros países europeus. A pandemia agregou fatores que tiveram efeitos negativos no sono. Nós, que trabalhamos na área ligada aos distúrbios do sono, assistimos a mais pedidos de ajuda em relação ao sono. Sabemos que o stress, a ansiedade, as incertezas aumentam as queixas associadas ao sono, nomeadamente as insónias. Todos nós já experimentamos o momento em que chegamos à cama preocupados com determinado assunto e ficamos a laborar sobre ele duas ou três horas. O que aconteceu com a pandemia é que este assunto não foi pontual, mas muito prolongado, associado à doença, à vida profissional, às economias pessoais, à sociedade, à saúde dos familiares. Foi uma carga de preocupação brutal. Acresce que vivemos bombardeados com informação de manhã à noite. Sendo esta informação importante num determinado ponto de vista, foi contraproducente noutros aspetos, porque nos deixou num permanente estado de alerta.

Acresce que durante os confinamentos as pessoas se viram obrigadas a permanecerem no mesmo espaço 24 horas por dia, a esbaterem os horários e fronteiras entre o trabalho e descanso. Stress, ansiedade e incertezas devido à pandemia, criaram o cocktail perfeito para o aumento dos distúrbios do sono.

Está demonstrado que a estratégia mais eficaz no tratamento, por exemplo da insónia, não é farmacológica, é a terapia cognitiva ou comportamental.

No seu livro fala-nos da indústria do sono. Pode defini-la?

Essa indústria tem uma escala grande e com uma perspetiva de crescimento nos próximos anos. Com facilidade nos recordamos de aplicações, de periféricos, monitores, atividades que aparecem como promotores de hábitos de sono saudáveis, ou de monitorização do sono. Não deixa de ser interessante, dado o sono ser um fenómeno natural, tal como a necessidade de comer. Demasiada intervenção ou preocupação excessiva com o sono também pode ser contraproducente, perpetuar um estado de ansiedade e preocupação e gerar expetativas que podem ser irrealistas. Acredito que este mercado tem o seu espaço e acredito que existem soluções que aparecem, ou aparecerão, que poderão ser revolucionárias. Por exemplo, algumas empresas da indústria automóvel estão a aperfeiçoar um monitor de fadiga que alerta o condutor em caso de adormecer, o que poderá evitar muitos acidentes de viação.

“A capacidade de os nossos filhos raciocinarem sobre a informação na internet resume-se a uma palavra: desoladora” – Michel Desmurget, neurocientista
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Ainda no que respeita à indústria. O recurso a fármacos para dormir deve ser sempre um último recurso?

Está demonstrado que a estratégia mais eficaz no tratamento da insónia, para dar um exemplo, não é farmacológica, é a terapia cognitiva ou comportamental, a educação e a adoção de hábitos saudáveis. Na verdade, existem comportamentos errados em relação aos fármacos, porque muitas vezes as pessoas com queixas associadas ao sono, acabam por se automedicar com soporíferos, sedativos, benzodiazepinas, ou procuram uma solução 'mágica'. Os resultados não são satisfatórios e acabam por perpetuar estas queixas e dificultar uma abordagem eficaz do distúrbio de sono no futuro.

Não quer dizer que não possa haver espaço para a terapia farmacológica, mas acompanhada por profissionais com experiência na área e acompanhada por outro tipo de intervenções.

Pontualmente, dormir mal uma noite é natural. Quando se torna um distúrbio frequente e regular, temos um problema. Quanto mais cedo o abordarmos de uma forma adequada e com aconselhamento adequado, mais rápido resolvemos o distúrbio.

Na minha consulta procuro compreender quem está do outro lado da mesa, o paciente, e que este compreenda determinadas recomendações. Talvez por isso tenha escrito o livro. Gostaria que o paciente compreendesse genericamente os mecanismos que regulam o seu sono e como pode intervir nesses mecanismos de forma a otimizar o sono. Repare, receber uma recomendação, sem saber o que lhe está na base, dificulta a aceitação de um caminho.

acabe com as noites em branco
créditos: Editora Planeta

É frequente em consulta surgirem-lhe pacientes que querem reduzir a medicação para dormir?

É raríssimo eu observar em consulta pessoas com queixas de insónia que não estejam medicadas há muito tempo. O mais frequente é as pessoas chegaram à minha consulta com vários anos de queixas e com vários tipos de medicação. Esse é o quadro mais frequente. Em muitos casos, a sua motivação até pode não ser deixar a medicação, mas por perceberem que o seu sono continua a não ser satisfatório. Aí, temos de iniciar um processo de diagnóstico do distúrbio do sono, abordagem e tratamento desse distúrbio e, sempre que possível, o nosso objetivo é atingir um sono saudável, sem necessidade de recurso a terapias farmacológicas. Não quer dizer que não seja necessário mantê-la em determinados casos, até porque pode estar ligada a outros distúrbios associados ao sono.

Nasceu em Braga, estudou em Coimbra e em Lisboa, cidades com uma dimensão considerável à escala portuguesa. Dorme melhor desde que foi para os Açores?

[risos] Sim, nasci em Braga, estudei em Coimbra e especializei-me na capital. De facto, durmo melhor desde que estou nos Açores, não só pela questão ambiental, mas também porque a minha vida se organizou de uma forma diferente. Em Lisboa, fazia turnos, trabalhava em cuidados intensivos. Hoje, tenho um horário predominantemente diurno. Há uns meses, fui passar uns dias a Lisboa, num hotel central. A páginas tantas, diz-me a minha esposa, “esquecemo-nos dos tampões para os ouvidos” [risos]. De facto, nos Açores vivemos numa região rural, com silêncio absoluto, o que se reflete na qualidade do sono.