Quem nunca teve falhas de memória ou falta de foco? Ou, ainda, dificuldade de manter o controlo dos impulsos durante decisões importantes? Todos esses – e outros – processos relacionados com a cognição são estudados pela neurociência e podem ser tratados a partir da estimulação cerebral. É o que promete a startup de neurociência Sensorial.
A empresa recebeu financiamento do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP, e desenvolveu uma solução que usa óculos de realidade virtual para permitir o treino cognitivo a partir de minijogos. Além disso, com o conhecimento adquirido nessa etapa, criou aplicativos para dispositivos móveis, como smartphones e tablets.
Segundo Caio Moreira, doutor em comportamento e cognição e diretor de ciência e tecnologia da Sensorial, o objetivo da empresa é desenvolver soluções para melhorar a vida das pessoas. “A ideia é melhorar a saúde e o desempenho cognitivo, o que, consequentemente, melhora a qualidade de vida”, avalia.
A fim de permitir isso, um dos sistemas criados pela startup emprega realidade virtual para avaliar a reação, a tomada de decisão, o controlo de impulsividade, a atenção e o uso da visão periférica. “A partir daí, temos uma noção do perfil cognitivo do usuário e podemos definir o que seria importante estimular para melhorar o seu desempenho”, explica Moreira.
De acordo com o investigador, os apps móveis, embora não permitam a imersão possibilitada pela realidade virtual, unem a estimulação cognitiva com o movimento. “Quando estamos em movimento, a frequência cardíaca aumenta e há a mobilização de diferentes componentes no organismo, o que promove a plasticidade cerebral”, explica Moreira. “Com base nisso, por meio de um aplicativo que desenvolvemos, batizado de Sensorial Moove, a ideia é, a partir do movimento, criar um ambiente de maior plasticidade cerebral e, com a estimulação direcionada, desenvolver as capacidades cognitivas.”
Durante o PIPE fase 1, os investigadores da empresa aplicaram o treino cognitivo em atletas da equipa masculina da categoria sub-17 do Palmeiras e da equipa feminino de volei das categorias sub-15 e sub-19 do Barueri. Em ambos os casos, o treino incluiu duas sessões semanais durante cinco semanas. Moreira afirma que houve registo de ganhos cognitivos e indicações de transferência deles para a prática.
No clube Palmeiras, por exemplo, os atletas que participaram no treino cognitivo tiveram mais ações ofensivas em campo. “Já no Barueri, as jogadoras que tiveram maiores ganhos foram as que mais melhoraram a velocidade de resposta no treino”, diz. Ainda está a ser discutida a definição dos protocolos para o treino cognitivo, mas investigações conduzidas na empresa apontam que entre 30 e 50 minutos por semana de uso da tecnologia já oferecem ganhos.
Recentemente, a tecnologia foi usada para melhorar o desempenho do guarda-redes Ederson, que atua no clube inglês Manchester City e como titular na seleção brasileira. Com a solução, o atleta melhorou a capacidade de se manter concentrado, bem como desenvolveu a atenção, a reação e a visão periférica.
O objetivo é que ele seja mais ágil para decidir e agir em campo. A necessidade surgiu porque Ederson atua em equipas com ataque agressivo e fica muito tempo sem tocar na bola durante o jogo.
Por isso, precisa de ter mais capacidade de concentração e melhor controlo de impulsividade, bem como tomar melhores decisões ao longo da partida. Essas habilidades podem ser decisivas num contra-ataque. O treino do guarda-redes com os óculos ocorre, em média, duas vezes por semana.
Algumas atividades do atleta são intercaladas com estímulos físicos. É comum que, entre as séries de força, por exemplo, ele faça exercícios cognitivos de velocidade de decisão. O objetivo é treinar o cérebro a não descansar após o esforço – ou seja, ele deve compreender que a pausa não representa um momento para desconectar.
O Manchester City venceu a Liga dos Campeões, o campeonato de futebol mais importante do continente europeu, em junho na época 2022-2023 pela primeira vez, e Ederson foi um dos destaques da equipa na reta final da competição. Em setembro, o atleta foi indicado ao prémio de melhor guarda-redes de 2023 no Fifa The Best.
Outras áreas de atuação
A Sensorial oferece soluções para indústrias, empresas e centros de saúde. “Atualmente, estamos a desenvolver um projeto-piloto voltado para pessoas acima dos 50 anos numa academia, por exemplo. Estamos a investigar se o uso de atividades cognitivas durante o treino físico influencia o risco de queda – muito frequente a partir dessa faixa etária. Os primeiros dados recolhidas são muito animadores”, afirma Moreira.
A startup atua, ainda, numa indústria petroquímica e num frigorífico com o objetivo de reduzir o índice de acidentes causados por erro humano. “No frigorífico, por exemplo, isso envolve profissionais que manipulam substâncias altamente explosivas ou máquinas de corte. Na petroquímica, a ideia é monitorizar os fatores de extração de minérios para evitar riscos.”
O processo desenvolvido na petroquímica foi aplicado pela primeira vez no fim de 2020. A equipa regressou após 18 meses, em 2022. “Ao avaliar indivíduos que tinham participado na primeira ocasião, constatamos que os ganhos obtidos foram mantidos”, diz Moreira.
Estudos apontam que os ganhos cognitivos conquistados a partir de treinos específicos podem começar a ser perdidos três meses após o fim da atividade, mas há casos em que eles são preservados por até cinco anos. “Isso pode representar que alguma reconfiguração cerebral foi mantida no dia a dia graças a outras atividades exercidas pelo indivíduo”, estima.
O objetivo da Sensorial é criar soluções que atinjam o maior número possível de indivíduos. “O telemóvel está nas mãos da maioria das pessoas e, geralmente, é usado para ações prejudiciais ao cérebro. Ficamos satisfeitos por poder desenvolver produtos que possam trazer ganhos – principalmente para a saúde.”
O investigador lembra que, atualmente, é preciso estar atento a cada vez mais estímulos ao mesmo tempo, o que torna muito difícil manter a atenção às tarefas. Nesse contexto, um dos planos da startup para o futuro é usar a estimulação cognitiva em conjunto com movimento para garantir ganhos para crianças e adolescentes.
Para o investigador, as medidas objetivas indicadas pelos testes de cognição permitem que o participante se conheça melhor. “Se eu tenho um determinado desempenho numa atividade e esse rendimento começa a cair, isso pode estar associado a vários processos – resultantes da modificação de como o cérebro funciona”, diz. “Queremos estar nas mãos de muita gente para promover saúde e bem-estar.”
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