Na opinião do procurador jubilado Rui do Carmo, o sistema de prevenção e combate aos crimes de violência doméstica e de proteção das vítimas ainda apresenta deficiências, apontando que o mais recente relatório elaborado pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD) é disso demonstrativo e que embora os factos em análise tenham três anos, “não é possível dizer que, entretanto, as coisas mudaram radicalmente”.

Para o coordenador desta equipa, em funcionamento há quatro anos, falta um sistema capaz de gerar confiança nas vítimas, de modo a que procurem apoio precocemente, e falta que a intervenção seja imediata e não aconteça apenas ao fim de muitos anos de violência doméstica e “de uma situação que se tornou, entretanto, insuportável”.

Rui do Carmo admite que para existir essa confiança das vítimas no sistema, tem de haver confiança nos resultados e isso passa por “melhorar a capacidade de intervenção”, logo a partir do momento em que há uma denúncia de um facto que possa constituir um crime de violência doméstica.

“Tem de haver a capacidade de intervenção imediata, quer no sentido de proteção da vítima e de contenção do agressor, quer no sentido de recolha de toda a prova disponível que permita que não aconteça o que acontece hoje, em que 75% dos inquéritos são arquivados por falta de prova e em que cerca de metade dos que vão para a fase de julgamento acabam em absolvição”, defendeu.

Salientou que se a recolha de prova, no âmbito de uma intervenção criminal, continuar assente no relato da vítima e no que a vítima vai fazer com o que lhe aconteceu, “os números continuarão a ser estes”.

“A vítima tem uma natural ambiguidade relativamente à colaboração no processo, tem uma natural fragilidade em encarar todas as morosidades do processo e toda a conflituosidade que o início do processo gera, é natural que isso aconteça”, explicou.

Defendeu, por isso, que quando há uma denúncia por violência doméstica é preciso “atuar imediatamente no sentido de obter outros meios de prova”, algo que já está definido no manual de atuação funcional, publicado no ano passado e que define “toda a intervenção que deve ser feita nos primeiros três dias após a denúncia”, não só relativamente à proteção da vítima, evitando o agravamento da sua situação e que o agressor prossiga com a violência, mas também em relação à recolha e preservação da prova.

“Quer a prova dos elementos e vestígios encontrados, retirada das armas que o agressor possa ter com ele, análise e documentação de todas as lesões que a vítima possa ter, a identificação de pessoas próximas que possam ter conhecimento daquela conflitualidade, naqueles dias ou no passado, e que nos permitam fazer a história daquele conflito e retirar elementos que conjugados com aqueles que na altura são recolhidos possam elucidar o que se terá passado”, defendeu Rui do Carmo.

O coordenador da EARHVD explicou que todos estes meios de prova “têm de ser obtidos imediatamente porque muito disto, se não se obtém imediatamente, perde-se definitivamente”.

“E ficamos com a sempre falível, e naturalmente falível, declaração da vítima e é meio caminho andado para o processo não ter êxito e cada vez que um processo destes não tem êxito é um pulso de ânimo no agressor”, alertou.

No entanto, Rui do Carmo assume-se contra um possível agravamento das penas previstas para este tipo de crime, defendendo antes que o sistema judiciário seja capaz de aplicar as penas que existem atualmente.

“Não vale a pena estarmos a fazer grandes ameaças se depois se descobrir que afinal a capacidade de as tornar efetivas não é tão significativa quanto deveria ser”, justificou.

Defendeu que a preocupação tem de estar na capacidade em aplicar o quadro de punição existente, desde logo diminuindo “significativamente as taxas de não esclarecimento dos inquéritos”, mas também verificando se a taxa de absolvição resulta ou não da dificuldade de levar a julgamento a prova necessária.

Além desta preocupação, salientou que é preciso também garantir que a pena aplicada à pessoa condenada “é uma pena que tem efetivamente efeitos de prevenção”, não só para dissuadir outras pessoas de praticarem o mesmo crime, mas também para a reintegração do agressor.

Disse não se sensibilizar muito que haja muitas penas de prisão efetivas ou suspensas, defendendo que o que tem de ser critério é que, quando haja uma pena de prisão suspensa de execução, haja efetivamente um programa de intervenção junto do agressor “que não seja apenas o passar do tempo da suspensão da execução da pena de prisão”.

“É importante que as obrigações que são impostas a quem é aplicada uma pena de prisão suspensa da sua execução, no âmbito deste crime, sejam efetivamente capazes de modificar o comportamento e que sejam obrigações efetivas, isto é que é importante”, defendeu.

Acrescentou, por outro lado, que é preciso capacidade para aplicar os programas para agressores de forma significativa.

“Se não modificarmos isto, de que vale a pena dizer que quem pratica um crime de violência doméstica tem 30 anos de prisão ou 50 anos? Tudo são palavras ocas que não modificam rigorosamente nada”, rematou.