Ao primeiro livro, Sónia Nogueira Marcelo não esteve pelos ajustes e deixou bem vincado no título da obra o mote que a faz mover: a “Guerra ao Açúcar”. Ele é omnipresente no nosso dia-a-dia, até mesmo em alimentos insuspeitos como o fiambre. O açúcar vicia-nos, adoece-nos e não contribui a nossa qualidade de vida.
Sónia, também autora do blogue “Dicas de uma Dietista”, afirma o seu manifesto contra o “principal inimigo da nossa saúde”. E fá-lo, quando necessário, referindo marcas, alertando para a responsabilidade dos pais para com os filhos em matéria de alimentação, para o engano que pode constituir uma leitura pela rama das especificações “Diet”, “Magro” ou “Light”.
Sónia, a leitura das primeiras páginas do seu livro deixa-nos uma ideia marcante. O açúcar é nosso inimigo, mas a industria alimentar também parece não ser nossa aliada.
A indústria alimentar vai um pouco ao encontro do que o consumidor quer e este também procura alimentos com mais açúcar. De qualquer forma, de há alguns anos a esta parte, muitos consumidores têm alterado a forma como encaram a sua alimentação, mais consciente e procurando alternativas. Nessa perspetiva, a indústria tem mais cuidado e apresenta-nos produtos sem açúcar e integrais.
De qualquer forma continua a haver muito marketing e manipulação das expetativas, certo?
Sim, a indústria continua, por exemplo, a produzir os mesmos tipos de produtos, cereais e iogurtes açucarados para crianças. Vemos com frequência alegações que vão ao encontro das expetativas do consumidor, como o “zero por cento”, “rico em fibra” em “cereais integrais”. O consumidor acaba por aderir ao produto. Um exemplo clássico é o Kinder para crianças, alegadamente com uma grande percentagem de leite. Os pais adquirem o produto dada essa característica. Na realidade tem muito açúcar, mais de cinco pacotinhos, dos que se vertem no café, por cada 100g. Não é bom, obviamente, nem para as crianças nem para os adultos.
Uma das coisas a que não se coíbe é a chamar as coisas pelos nomes. Faz menção explícita a marcas. Há muita hipocrisia neste campo? Ou seja, apontamos o dedo ao açúcar em geral, mas pouco a quem o veicula?
Para o livro fiz uma seleção de alguns dos produtos mais conhecidos, que encontramos nas grandes superfícies comerciais. Baseei-me, ainda, na tabela da composição nutricional dos alimentos portuguesa. A indústria genericamente não muda. Se colocar no mercado um produto sem açúcar ou adoçante grande parte dos consumidores não vai gostar. Temos, aqui, uma questão de educação do gosto. Há que ir tirando algum açúcar, substituindo-o por outros alimentos.
A Sónia cita a Organização Mundial de Saúde no que respeita à quantidade máxima de açúcar que devemos ingerir por dia, duas colheres de sopa. Na realidade não vemos o açúcar na colher. Onde se esconde ele?
Sim é essa a quantidade, ou seja duas colheres de sopa mas rasas. O açúcar está em todos os alimentos, de forma natural ou adicionada. Menos na carne, ovos, peixe, gorduras. De resto, vai encontrá-lo nos cereais para pequeno-almoço, nas barras de cereais, nos leites papas e iogurtes para bebés, no leite genericamente. Há iogurtes com mais de dois pacotinhos de açúcar por 100g de produto. Molhos para temperar com cinco pacotes por cada 100g. As embalagens são apelativas, comunicam com as nossas emoções e aspirações. Vamos atrás da imagem e esquecemos o rótulo.
Continuamos sem saber ler rótulos, ou será que poderiam ser mais claros?
Poderiam ter o sistema semáforo. Ou seja, o conjunto de nutrientes mais saudáveis figurando a verde, passando pelo amarelo até ao vermelho, a evitar. Facilmente alguém menos familiarizado com questões nutricionais faz uma leitura do rótulo e pondera as suas compras.
O que costumo dizer é que os alimentos que nos chegam da natureza não têm rótulo. Sempre que compramos um produto com rótulo há a junção de pelo menos dois ou três ingredientes, o que até pode não ser mais. Posso ter umas bolachas com aveia, mel e um pouco de óleo. Agora, se tiver um produto com 20 ou mais ingredientes, alguma coisa já não está bem.
É chocante verificar que alguns alimentos que aparentemente são inofensivos escondem muito açúcar. Quais são aqueles que lhe parece mais premente um alerta?
A granola que se tornou uma moda. A generalidade das granolas, que adquirimos nos supermercados, está cheia de açúcar. Outro caso que me chocou particularmente é o fiambre de aves. Não tem uma quantidade significativa de açúcar, mas ele está lá, na composição, como conservante ou intensificador de sabor. Outros dois exemplos gritantes, são as barras de cereais e os iogurtes gregos. Neste último caso, alguns referem “zero porcento”, mas é de matéria gorda, não de açúcar. Podem ter até dois pacotinhos de açúcar. Com frequência lanço um desafio aos meus pacientes, que vertam dois pacotes de açúcar num copo com água. Não vão conseguir beber.
Sónia, estamos de facto viciados em açúcar?
Sim. Se começar desde cedo a consumir açúcar, ao longo dos anos o organismo irá pedir mais. O açúcar proporciona-nos bem-estar, relaxamento, mas é um estado de graça momentâneo.
Quais são os sinais mais evidentes desta dependência?
Tornam-se mais evidentes quando a pessoa deixa de consumir alimentos com açúcar. Ao fim de dois ou três dias sem o alimento doce, o individuo tenderá a apresentar fadiga, sonolência, irritabilidade, mau humor. Digo aos meus pacientes que é normal. O organismo estava habituado a ter uma energia constante, como se bebesse um café de hora a hora. Se retira esse estímulo tem de reaprender a funcionar sem ele.
Quais as principais maleitas associadas ao consumo excessivo de açúcar?
Muitas. Além da obesidade, a mais visível e a diabete tipo 2, aumento do colesterol, temos as doenças cardiovasculares. Neste caso, o açúcar aloja-se nas artérias provocando um estreitamento o que pode provocar enfarte do miocárdio. Há estudos que fazem a relação entre açúcar e a doença de Alzheimer, com degeneração das células do cérebro pelo consumo excessivo. Aponto, ainda, casos de infertilidade, aqui associados à obesidade, com incapacidade para engravidar; doenças de pele, estrias, rugas. Repare, quando toca com as mãos num bolo, constata que estas ficam pegajosas. É isto que o açúcar faz internamente ao nosso organismo, cola-se às células. Um contexto onde muitas bactérias nocivas, patogénicas, começam a proliferar, pois ingerem o açúcar que o organismo não está a absorver. Muitas destas doenças são silenciosas.
A tantas vezes repetida “falta de tempo” não será antes uma justificação para não assumirmos a nossa dependência ao açúcar?
É tudo questão de prioridades. Porque não dispensar ao fim-de-semana duas ou três horas para estar em família, a preparar refeições. Uma sopa, por exemplo. Reservar tempo para ir ao mercado, revelar às crianças a origem dos produtos, chegar a casa com esses alimentos, confecionar algo caseiro. A criança vai associar esse alimento à partilha familiar e preferirá esse prato ao bolo industrial.
A Sónia inclui no seu livro um teste ao vício que temos pelo açúcar. Funciona um pouco como o grilo do Pinóquio; este teste fala-nos à consciência?
Acho que há muitas pessoas que não têm consciência da quantidade de açúcar que consomem. Como não colocam no café e têm cuidado no supermercado nas escolhas que fazem, consideram que não são viciadas neste nutriente. Contudo, quando respondem às questões que deixo no meu teste ou quando respondem à questão do que guardam na despensa, percebem que os cereais e as bolachas estão cheios de açúcar.
Limpar o organismo do açúcar é um processo penoso. Isto porque tomando à letra a sua abordagem ao vício, não é fácil uma desintoxicação. Como devemos começar.
Não é fácil e isso é explicado no meu livro “Guerra ao Açúcar”. É como qualquer outro vício. As primeiras semanas, meses, não são fáceis pois inibimos a substância que nos traz prazer. Agora, se a pessoa estiver mentalizada, tiver motivação e perceber que tem de viver com mais qualidade e saúde, é sempre possível.
Não podemos encarar o açúcar como uma componente do prazer?
Sim, por isso é que somo viciados nele [risos]. Não sou radical e este livro não nasce para as pessoas abdicarem totalmente do açúcar. É um alerta para as pessoas perceberem se o estão a consumir em excesso. Se assim poderão fazer algo pela sua saúde. Agora, se tem uma festa, por exemplo, esporadicamente e de forma moderada pode consumir doces.
Gostaria de ter a sua opinião no que respeita aos adoçantes?
Se de todo não conseguir dispensar o doce, será um mal menor. Se a pessoa colocar uma pastilha de adoçante e beber dois ou três cafés por dia, não me parece grave. Agora, um consumo excessivo, por exemplo, cinco cafés, mais iogurtes e gelatinas com adoçante, ai já é excessivo.
Há açúcares bons?
Açúcar é sempre açúcar. Podemos ter alguns melhores, no sentido de nos fornecerem mais vitaminas e minerais, como por exemplo o de coco. A stevia não tem calorias, os xaropes de agáve, de acer, acabam por ser adoçantes naturais melhores do que o açúcar branco. Mas, uma vez mais sublinho. Por serem melhores não vamos colocar o dobro, ou em vez de comer um bolo, achar que pode comer dois. E temos de pensar que um alimento não nos traz apenas um nutriente. Vai-me fornecer a farinha, a gordura. Um excesso calórico de que não necessito.
Também temos o açúcar amarelo. É menos nocivo do que o branco?
O açúcar mascavado tem as mesmas calorias face ao branco e faz o mesmo mal. A única diferença é vir diretamente da cana-de-açúcar e, assim, manter as vitaminas e os minerais.
Mais grave é quando estamos a viciar as nossas crianças no açúcar. Gostaria que comentasse.
É uma situação alarmante e considero que a culpa é dos pais. Uma criança quando nasce não faz escolhas alimentares. Recebe o leite materno ou formulado que é açucarado. Nascemos com o gosto inato para o doce. Se nos derem algo amargo não vamos gostar. Se formos fomentando esta base inata para apreciar o açúcar, com alimentos ricos neste nutriente, como as papas, os preparados em boiões, os iogurtes açucarados, a criança vai acomodar o gosto a estes alimentos. Em oposto, a alimentação do bebé deve apresentar as frutas como opção doce, o iogurte natural e a sopa de legumes. É claro que o pequenito chega ao infantário e vai contactar com o doce. Mas vai reagir de forma diferente, vai estranhar.
E mais tarde, estarão imunes ao açúcar?
Mais uma vez entra a questão hábito. O adolescente vai conhecer os alimentos pouco processados, as granolas caseiras, por exemplo. Em casa cumprirá uma alimentação regrada e a ida ao fast food, apresenta-se como uma exceção.
Considera que os termos “Light”, “Magro”, “Diet” são puro marketing e enganosos?
A indústria utiliza-os de forma correta de acordo com a legislação. O consumidor é que não sabe o que significam na prática, pois associam um menor valor calórico e o sem açúcar, ao comer sem culpas. No produto “Magro” há uma redução do teor de gordura, continua a ter o mesmo açúcar do produto original, o “Light” pode ter a redução de 30% de um ingrediente, a gordura, o açúcar, ou outros. Já os produtos “Diet”, são um alimento específico para determinado um grupo da população. Neste caso pode não ter redução de nenhum nutriente em especifico.
A Sónia trabalhou afincadamente no seu livro. O que gostaria que cada leitor sentisse com a leitura de “Guerra ao Açúcar”?
A pessoa ser capaz, de forma autónoma e com algumas ferramentas, conseguir iniciar algo, fazer escolhas melhores. É claro que se a pessoa perceber que é difícil, que está perante uma adição, deve procurar o especialista.
A sua prática clínica ajudou-a na escrita da presente obra?
Sim. Geralmente pergunto ao paciente o que come. Há um choque quando digo à pessoa que não pode comer determinado alimento por ter muito açúcar. Percebi que as pessoas não estão minimamente alertas para o que consomem. Têm a ideia de fazer uma alimentação regrada quando muitas vezes não é assim.
A Sónia propõe-nos no seu livro um plano detox também em torno de receitas caseiras. Como o estruturou?
A primeira semana apresenta receitas mais restritiva e a partir daí adicionamos alimentos com um teor de açúcar superior. Há quem pergunte, não pode ser ao contrário. Não, porque a pessoa tem de cortar radicalmente com o sabor doce. Tem de se habituar a um paladar menos doce.
Todo este processo de comunicação com o leitor começou com o seu blogue, “Dicas de uma dietista”…
Comecei por ai, receitas que fazia em casa com redução de açúcar e percebi que as pessoas gostavam e partilhavam. Não posso enquanto nutricionista dizer a alguém para não consumir açúcar e não apresentar alternativas saudáveis.
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